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segunda-feira, maio 30, 2005

A última sexta-feira 

1. De 27 de Maio de 1988 a 27 de Maio de 2005 (nestes dois anos, 27 de Maio calhou a uma sexta-feira), habituei-me ou habituaram-me a ler crónicas minhas nas páginas de um jornal. Primeiro, nos bons tempos de O Independente, que nasceu faz hoje 17 anos e talvez seja eu o único a lembrar-me. Here"s looking at you kid, e o kid é o Miguel Esteves Cardoso, que não vejo há que anos, embora não lhe perca o retrato aos domingos no Diário de Notícias. Entre "casas encantadas" (pois, pois, A Casa Encantada também faz hoje 17 anos) e saques de Roma, por lá andei até Novembro de 2001 ou coisa que o valha, pois sempre fui melhor a datar inícios do que fins. Depois, desde 12 de Julho de 2002 (eu não vos dizia?) aqui no PÚBLICO e já lá vão quase três anos.
Ontem (estou a falar do meu ontem de escritor, e não do vosso ontem de leitores) telefonaram-me a dizer que ninguém sexta toda a vida e que aos 17 anos já tenho tamanho para me vestir de domingueiro. Trocado por miúdos: à sexta-feira deixa de haver "casas encantadas", J. B. C. e conversas de farrapos. Mas nada se perde. Só se transforma. Conversas destas, encantos destes e gente como eu fica melhor ao domingo, para ler na cama até tarde, para levar para a pesca ou para levar para a caça, conforme as estações, os tempos e os modos. Animal de hábitos que sou, virei-me um bocado na cadeira (de couro), mas não tinha nenhuma razão crisálida para dizer que não.
Nunca gostei de domingos? É bem verdade e já não gostava 50 anos antes de 1988. Nem dos domingos de Carnide nem dos domingos de pastéis de Belém. Nem dos domingos de Paris, que me lembram o desaparecido que sentia comovido os domingos de Paris (as aspas caíram na tipografia), nem dos domingos da Arrábida, com aquela confusão de camionetes e o pó encarnado a esvoaçar. Nem dos domingos engarrafados da Praia Grande, nem dos domingos dos estádios em que o Barrosa falhava penaltis. Mas também não é aos domingos que tenho que escrevinhar coisas quejandas e, para as reler, narcisicamente, sobra-me tempo, meu Eco. Ao princípio irei estranhar, depois vou-me habituar. Mas sinto um nozinho na garganta, assim como se me despedisse. Não há de ser nada.

2. Mas a verdade é que o dia de ontem me foi muito especialmente especial. Devia estar a lua no carneiro, como diz o Alberto, com quem bebi catarinas à beira-rio. Ao menos bebemos vinho com nome de santa, como ele me lembrou, a certa altura, que alguém dizia em tempos que já lá vão. No carneiro ou não, ia alta a lua, essa lua que, só um bocadinho mais baixa, eu tinha acabado de deixar em Veneza, na antevéspera. Há gente que nasceu com o rabo virado para a dita e nesta semana eu senti-me uma delas. Chegou a altura de vos fazer um desenho, daqueles que me ensinaram há pouco tempo a fazer, para perceberem que não ensandeci definitivamente e que tudo isto pode ter mais nexo do que parece, aliterando ou não. Vamos lá a ver se nos entendemos, que, se não, nem no domingo que vem me convidam para a festa e esta é mesmo a minha última sexta-feira.

3. Subitamente, e por razões que agora não vêm ao caso, mandaram-me ir a Veneza no fim-de-semana passado. Se eu vos contasse o que lá fui fazer, ainda mais louco ou ébrio vos pareceria. Por isso, fico-me por uns instantâneos e julgue-os quem não pode experimentá-los.
Nunca me falaram em Veneza sem que eu estremecesse de cima a baixo muito mais do que estremeceu a criada do Tartuffe. Desta vez, medi-me o pulso e não senti nada. Era como se me dissessem que no dia seguinte ia até Vila Franca de Xira. Já estava um bocado preocupado (e outros por mim), preocupado fiquei ainda mais. Mas logo que o táxi castanho largou à desfilada pela lagoa, os fantasmas desapareceram atrás dos postes e renasceu-me a alma nova que tinha metido nem sei bem onde. Depois, o barco moderou a velocidade e, num fim de tarde inacreditavelmente luminoso, desembarquei à porta do Danieli, onde muitas vezes bebera uns copos, mas onde nunca tinha ficado. E fosse pelo Danieli, fosse pelo que fosse, quando saí do hotel a caminho de São Marcos vi coisas que tinha obrigação de ter visto mais vezes, mas que via agora pela primeira vez.
A bem da contenção, fico-me por cinco, que se vai fazendo muito tarde.

4. Reparei que no ângulo sudoeste e no ângulo sudeste do Palácio dos Doges, quero eu dizer no ângulo entre a Margem dos Escravos e a Piazetta e no ângulo entre o Palácio e a Ponte dos Suspiros, os dois capitéis celebram dois dos mais célebres nus da nossa génese. O primeiro mostra-nos Adão e Eva depois de comerem do fruto proibido. Não há serpente, não há deuses. Apenas dois ramos da árvore, um para cada lado, se vão cravar nos sexos de Adão e Eva, simultaneamente os cobrindo e simultaneamente os designando como origem de todo o bem e de todo o mal.
O segundo capitel refere-se a um dos episódios mais obscuros do Antigo Testamento. Noé, após ter bebido em demasia, cai no chão a dormir, quase nu, só com as vergonhas cobertas por um trapo. Os filhos surpreendem o velho em tais preparos. Que pensam ou que concebem? Desnudar o pai, ou seja, retirar o trapo para verem o que este cobre. Por que é que o sexo é a obsessão mais visível do Palácio na fachada fronteira ao mar de que Veneza era sereníssima senhora, é coisa que não sei explicar nem nenhum Ruskin me explicou. Mas são essas as armas que desfralda em todo o sentido da palavra, e a história do pecado da carne começou a escrever-se em pedra no século XIV nesse "meravigliosi spigoli di pietra".
Depois de reparar no sexo reparei no sangue. Na fachada que dá para a Piazetta, o cor-de-rosa evanescente da fachada e das colunas (o cor-de-rosa mais cor-de-rosa alguma vez alcançado) é interrompido duas vezes em duas colunas, que contrastam com todas as outras por um encarnado fortíssimo. Porquê? Aí mo explicaram. Entre essas duas colunas eram anunciadas as penas de morte decretadas pelo Conselho dos Doges. Junto à morte, detinha-se o rosa e o sangue o substituía, efémero e brutal. Aliás, o mesmo sangue é cor da coluna de um metro que hoje está junto à Igreja de São Marcos, mas, em tempos idos, estava entre a coluna de S. Marcos e a de S. Jorge, frente ao mar. Sobre esse tronco de pedra eram degoladas as vítimas que tinham como última visão o dragão vencido ou o leão alado.
Reparei - e aí mais parei do que reparei - que, perto do Rialto, na Igreja de San Salvador está a Anunciação mais terrível que alguma vez vi, obra célebre de Tiziano, que mil vezes vira em reproduções e só agora vi em carne e osso. Porque se cobre a Virgem com um véu à aproximação de um Arcanjo aterrador, com asas colossais que dominam o quadro enorme? Porquê tanta luz e tanta cor a acompanhar a descida do Espírito Santo rodeado por anjos álacres e pulcros? Ao fundo, no altar-mor da mesma Igreja, a Transfiguração, também de Tiziano, mostra-nos que nenhum dos Apóstolos conseguiu fitar as vestes branquíssimas de Cristo, estabelecendo uma divisão claramente platónica entre o que cega os homens das cavernas (os apóstolos) e o que iguala as Ideias da Luz (Cristo e os profetas).
A quinta coisa em que reparei foi num palácio do Grande Canal, que é dos mais belos e mais ogivados. Ca D"Ario chama-se. O meu guia de ocasião informou-me que estava à venda e que há 50 anos o estava. Porquê? Porque se diz que uma maldição primeva atingirá todos os seus proprietários e até hoje ninguém escapou. Sabem quem foi o último presumível comprador, que chegou a dar sinal, mas que à última hora teve mais medo do que dinheiro? Woody Allen.

5. À noite debrucei-me da janela do meu quarto, num dos últimos pisos do Danieli, e olhei para a água negra cá em baixo, no pequeno canal dos dragões, onde algumas gôndolas jaziam. Em frente, havia uma casa com um belo jardim e, entre as janelas entreabertas, pareceu-me descortinar um vulto que lia de costas viradas para a janela e para mim.
Sem saber porquê, esse choque da luz da janela entreaberta com o escuro da água fechada, esse choque da horizontalidade fronteira com a verticalidade abissal, pareceram-me repetir e recapitular a imagética das fachadas do Palácio dos Doges, os segredos de Tiziano, e continuar a cantar e a contar os cantos eróticos e líricos de fé e de ferro, de sangue e de ouro, de madrepérola e pórfiro que em Veneza se ouvem a cada esquina e em cada rua.
"Senza rumor" dizia, no Senso de Visconti, Franz para Livia, naquele quarto dos Fondamenti Nuovi, onde se abrigavam para as suas tardes de amor. "Senza rumor" voltei a ouvir Veneza agora, ao luar de Maio sobre o terraço do Danieli, ou à cor dos cometas abraçando de rosa e piedade o Palácio dos Doges. Palácio feito também da matéria de que os cometas são feitos ou de que eram feitos, nos contos de fadas os fatos, da cor do vento e da cor das nuvens de princesas enfeitiçadas.
E um dia, enfeitiçado, já estava de novo em Lisboa, como se nada se tivesse passado e como se não tivesse estado a fazer de Caronte, à proa de uma gôndola entre os dragões de Carpaccio e os anjos músicos do Bellini de San Zaccaria. Esta é a vida de hoje? Não, esta foi a minha vida de ontem, o dia dos impossíveis acontecidos.

Até domingo, 5 de Junho, dia dos anos da Tia Zina.

João Bénard da Costa 27 de Maio 2005 in PÚBLICO

segunda-feira, maio 23, 2005

Os meus sete papas (II) 

1.Como alguns se lembrarão, estava perto do Taj Mahal quando, tarde e a más horas, soube da morte de João Paulo I, por tão pouco tempo meu quinto Papa.
De lá segui para as Pirâmides e para o Egipto, mas não foi entre faraós que soube do Papa posto em vez do Papa morto. Já tinha regressado à pátria, findo o meu mês de orientes, quando apareceu fumo branco por Karol Wojtyla, que, como o seu efémero predecessor, escolheu dois nomes e os mesmos dois nomes: João Paulo II. Tinha 58 anos e era o mais novo Papa desde 1846 e desde a eleição de Pio IX com 54 anos. Esse Pio IX que morrera cem anos antes da eleição de João Paulo II (a 7 de Fevereiro de 1878) e fora o pontífice de mais longo reinado na história da Igreja (32 anos), se não contar a incerta duração do papado de S. Pedro. João Paulo II, que reinaria 27 anos, seguiu-os de perto.
Mas, em 1978, a grande novidade não foi a "tenra" idade do novo Papa, mas a sua nacionalidade. Pela primeira vez, desde 1523, ou seja, durante 455 anos, o Papa não era italiano e pela primeira vez, em quase dois mil anos de Igreja, o Papa era polaco. Com Wojtyla acabou uma era, que, em categorias adaptadas da história geral para a história da Igreja por Cristiani, no monumental Tu Es Petrus, correspondem à Idade Moderna (1447-1870) e à Idade Contemporânea (1870-1978). Desde o fim do Cisma do Ocidente até ao "ano dos três papas", dos 55 pontífices que se sentaram no trono de S. Pedro durante cerca de 540 anos, apenas dois não foram italianos: o aragonês Calisto III (Papa de 1455 a 1458, que, apesar das suas origens, gerou os italianíssimos Borgia) e o holandês Adriano VI, o tal que pontificou entre 1522 e 1523 e que tanto contrastou com os Medici que o precederam e lhe sucederam (Leão X e Clemente VII) em desgosto pelas artes e pelos ofícios. Mas isso já são outras conversas, pois que nenhum deles foi Papa das minhas vidas, embora nos renascentistas me tenha ficado muito da melhor parte delas. Das outras e desta.

2. "O ano dos três papas" (Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II) foi expressão corrente para o ano de 1978.
Às vezes, penso em como teria vivido esse ano um amadíssimo amigo meu, poeta de 35 Poemas, que partiu deste mundo e destes papas em 1968, dez anos antes do ano trino. Digo-o porque, em 1963, quando morreu João XXIII, ele viveu premonitoriamente a febre papal que em 78 já subira uns pontinhos e em 2005 entrou no delírio a que se assistiu.
Foi ele o primeiro a inventar a expressão "totopapa", enviando-me, e a outros amigos comuns, antes e durante o conclave, listas de probabilidades com os nomes que os eleitos escolheriam, caso viessem a ser os contemplados.
Dentre os inúmeros cartões rectangulares que me mandou, escritos a tinta encarnada, copiei estes:
Probabilidades (Flos Florum)
1 - Siri (Pio XIII, de que Deus nos guarde)
2 - Montini (Pio XIII, João XXIV ou Leão XIV que: vá lá com Deus)
3 - Lercaro (João XXIV - Deus queira)
4 - Confalonieri (João XXIV, Bento XVI ou Clemente XV, que talvez Deus queira)
Hipóteses desvairadas más
1 - Ottaviani (Alexandre IX, Calisto IV, Anastácio V ou Júlio IV)
2 - Larraona (Anastácio V)
3 - Marella (Bonifácio X)
4 - Cerejeira (Urbano IX)
Na altura, todos nos ríamos com estes totopapas, que ele corrigia, emendava e voltava a enviar. Mas a realidade excede sempre a ficção: tanto na morte de João Paulo II, como na eleição de Bento XVI, televisões e jornais ultrapassaram em excentricidade e delírio o meu amigo das "profundidades intactas".
Muitos dos cardeais já nem sei quem são, como esse Lercaro que, pelos vistos, era o favorito dele. Não previu nenhum Paulo VI, mas previu um Bento XVI, que seria - se tivesse sido - o cardeal Confalonieri, "que talvez Deus queira".
Em 1963, no interior de círculos muito restritos e - vá lá - muito especiais, vivia-se assim a eleição de um papa, guardando segredo para os não iniciados que já suspeitavam da nossa sanidade mental, mesmo sem saberem destes desvarios. Quem nos diria - quem me diria? - que 42 anos depois, milhões viveriam momentos desses em delírio ainda maior, imaginando papas hindus, argentinos, chineses e até (como sempre) portugueses?
Tudo - tamanha mudança! - talvez se deva a esse Papa polaco que, entre 1978 e 2005, fez mais pelo pope system do que todos os seus antecessores reunidos. E volto a 1978.

3. Estou a começar a dizer mal de João Paulo II, ou, como alguns já lhe chamam, de S. João Paulo Magnus? Não estou.
Quando foi do Jubileu dele, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo em que disse o que pensava e penso dele, exaltando sobretudo o homem da fé.
Escrevi então e mantenho: "Não é o "Papa da minha vida", no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo - sobretudo nos últimos anos - dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé."
Acima citei a idade com que foi entronizado. Mas parecia muito mais novo, respirando saúde física por todos os poros, o que muitos atribuíam a um passado de desportista. Três anos depois - apenas três anos dessa imagem pletórica - o atentado da Praça de São Pedro fez esse Papa de 60 anos envelhecer 20 em poucos meses. De então para cá, a pujança original quase que se esqueceu e o "atleta" deu lugar a um velhinho, atacado por mil doenças, até, no fim, mal se conseguir mexer ou falar.
Alguns lhe censuraram - velada ou abertamente - o lugar que deu, na sua própria biografia, ao dia 13 de Maio de 1981, em que quase se realizou a sarcástica profecia de Buñuel no filme La Voie Lactée. Mas não é muito fácil compreender como é que se deu tal mudança num homem. Não é a questão da sobrevivência, pois que outros têm recuperado de coisas ainda piores. É a consciência, não proclamada, mas crescentemente interiorizada, de que a sua salvação teve e tem um sentido e que esse sentido só podia ser desvelado com a crescente transfiguração do corpo quebrado num corpo oferecido. Muito e muito se há-de escrever - pressinto-o - sobre os vários sentidos a dar a essa maceração. Por um lado, há a "papolatria" ou os riscos dela, tão temida nos anos 60 e tão escancaradamente recuperada nesta viragem de séculos. Mas reduzir à papolatria o calvário de João Paulo II é perder a dimensão fundamental dele. Falou-se do seu imenso carisma, do seu imenso magnetismo. Que querem dizer essas palavras? Quem saiba que explique e João Paulo II nunca explicou. Acreditou, não só com toda a sua alma (expressão já de si incompreensível), mas com todo o seu corpo e, como só este lhe podia ser imagem, fez dele o grande plano para um mistério insondável.
Por agora - e por mais algum tempo - se falará ainda e muito do Papa que venceu o comunismo, sob o qual viveu desde os 25 anos. Mas não faltam nos textos papais - antes e depois da queda do Muro - advertências ainda mais graves contra a sociedade permissiva e libertária que era, aparentemente, a grande inimiga dos chamados "socialismos reais".
Qual o significado da sua presença junto a Fidel em Cuba, tão estranho, por parte de um, como por parte de outro? Qual o sentido das suas mil viagens? Qual o sentido dos "estádios cheios e das igrejas vazias"? Qual o sentido do seu altivo moralismo? Porque o aplaudiam milhões de jovens que depois não fundavam famílias de 14 filhos, como nos tempos de Maria Teresa da Áustria, ou nem sequer se precipitavam para os ter, como nos tempos da geração dele?
Quanto mais medito na acção deste Papa, mais ela me parece paradoxal, mas de um paradoxo que não desafia a razão, antes a busca. Por isso, grande parte do mistério de João Paulo II só será percebido com a passagem do tempo e com os pontificados que se seguirem ao deste Papa tão tirolês quanto carpático ou, se se preferir, tão terra a terra, como céu a céu.

4. Sabe-se como foi recebida a eleição de Bento XVI, conhecem-se os juízos que já se fizeram. Mas não se tem reparado muito (ou então sou eu que tenho andado muito distraído) que ao turbilhão de Abril (velório e exéquias de João Paulo II, conclave, etc.) se seguiu um estranho e agudo silêncio. Ouve-se Bach no Vaticano (talvez pela primeira vez).
Perguntam-me o que penso. Pensei mal, quando pensei depressa e me vieram dizer que Ratzinger era o novo Papa. Agora espero para pensar. Bento XVI já não é Ratzinger. É o meu sétimo Papa. Seja minha a solidão deste silêncio, como escreveu o poeta dos 35 Poemas, e dos trinta e cinco cardeais.

João Bénard da Costa 20 de Maio 2005 in PÚBLICO

sexta-feira, maio 13, 2005

Os meus sete papas (1) 

1. Agora que isto acalmou um bom bocado, quer em matéria de papas quer em matéria de vigílias, posso dar-me ao luxo de desfiar, nos meus romanizados rosários, contas dos papas da minha vida e de os relembrar um a um, entre arminhos e solidéus, sédias gestatórias ou detidas.
Setenta anos, sete papas. Muitos anos? Não há dúvida. Muitos papas? Assim agora não me parece ou me aparece, mas a uma média de dez anos por papa, pode ser que as aparências iludam. Embora eu tenha vivido o terceiro pontificado mais longo de que a Igreja conserva memória (João Paulo II) e um dos pontificados mais curtos dos últimos sete séculos (João Paulo I).

2. A bem dizer, o meu primeiro Papa Papa de mim não foi, embora o dr. Freud, que morreu sete meses e dezasseis dias depois dele, me tenha querido ensinar, sem grande resultado, que foi o Papa de que o meu inconsciente mais ouviu falar.
Refiro-me a Pio XI, o Papa Ratti, que reinava em Roma quando eu nasci e morreu, três dias depois de eu fazer quatro anos, a 10 de Fevereiro de 1939, aos 81 anos. Aos quatro anos, alguém se lembra de papas? Acreditem-me ou não, se não me lembro dele, lembro-me muito bem (vá-se lá saber porquê) do dia da morte dele.
Era à hora de almoço. Eu estava em casa de uns tios postiços que moravam no mesmo prédio do que eu, no segundo andar que ficava por baixo da casa da minha avó. Na casa de jantar, havia uma telefonia, dessas com ponteiro, olho luminoso verde e lãzinha branca a aconchegar os baixos. E foi da dita, ou na dita, que deram a notícia da morte do Papa. Não devo ter prestado atenção, pois o que recordo é a voz acaciana do meu velho tio (com idade para ser meu avô) a dizer-me solenemente: "Morreu o Santo Padre." Talvez tenha ficado confundido com a ideia de os santos morrerem. Talvez não associasse padres a santos, de tanto ouvir dizer que os padres ralhavam. Talvez outra razão qualquer. Mas a morte de Pio XI chegou-me em directo. Mais tarde, já grandinho ou já velhote, o Papa que queria que o futuro o conhecesse como "o Papa da Acção Católica", o papa da Mit Brennender Sorge e da Non Abbiamo Bisogno, o Papa que "tarde, demasiado tarde na vida", descobriu que as ameaças à Igreja não vinham só de um lado, e que as do lado oposto não eram menos fortes, esse Papa, Pio XI, dizia eu, olhei-o sempre com particular afecto. A paz de Cristo no Reino de Cristo. Seis meses depois da morte dele, findo um pontificado de dezassete anos (1922-1939) começou a guerra do diabo.

3. Não me lembro de ninguém me ter dito que a 2 de Março desse mesmo ano, ao fim de três escrutínios e no primeiro dia de conclave (coisa que há trezentos anos não acontecia), o cardeal Pocelli, que nesse mesmo dia completava 63 anos, fora eleito e tomara o nome de Pio XII.
As minhas primeiras imagens dele, ascético e severo, remontam aos dias em que Roma deixou de ser cidade aberta e houve igrejas bombardeadas. Pio XII deixou então o Vaticano para consolar os feridos e chorar os mortos. Quando a guerra acabou, gregos e troianos louvaram o Pastor Angelicus e a sua acção em favor da paz. Em 1950, ex cathedra, num Ano Santo a que só não fui pela maldição de uma bruxa, proclamou o Dogma da Assunção de Maria e, aos 15 anos, extasiei-me, mais do que me interroguei, com essa solene afirmação da infalibilidade papal, a primeira (e a única) desde os tempos de Pio IX.
Depois, ele foi o Papa dos meus anos de brasa, os anos da Acção Católica. Formei-me com a Divino Afflante Spiritu, que relançou os estudos bíblicos, ou com a Mediator Dei sobre a renovação da liturgia. Morreu, diz-se, ouvindo a Sétima Sinfonia de Beethoven, que amava mais do que as outras e Jorge de Sena dedicou-lhe um belíssimo poema na Fidelidade: "Como de Vós, meu Deus, me fio em tudo / mesmo no mal que consentis que eu faça / por ser-Vos indiferente, ou não ser mal / ou ser convosco um bem que eu não conheço." Foi a 9 de Outubro de 1958 e soube da notícia no mesmo dia em que soube que ia ser pai pela primeira vez. Para mim, morrera mais do que o meu primeiro Papa. Morrera o meu único Papa. O Papa por antonomásia.

4. Foi assim com algum escândalo (obviamente, o escândalo admissível num crente então fiel e obediente à Igreja) que, a 28 de Outubro, soube que fora eleito Papa o cardeal Roncalli, quase a completar 77 anos, ou seja, muito mais perto das idades com que morreram Pio XI (81) e Pio XII (82) do que das idades com que tinham sido eleitos, em papados sensivelmente com a mesma duração.
Um amigo meu deu voz ao que eu sentia: "Os cardeais terão mesmo ouvido o Espírito Santo ao escolherem um Papa de transição?" (era a explicação mais correcta para a surpresa da escolha: após dois pontificados longos e fortes, um pontificado breve que servisse para pensar no futuro).
A primeira surpresa veio com a escolha do nome de João XXIII, recuperado a um anti-Papa de 1410 a 1415 e que ninguém usara mais desde o século XV. Depois vieram todas, todas as surpresas desse papado inacreditável: a convocação do Concílio, a inauguração do Concílio, a Mater et Magistra a Pacem in Terris. O bom Papa João. Repararam bem quão estranho é chamar bom a um Papa? Mas foi com esse cognome que ele ficou, tão amado pelos não crentes como pelos crentes ou mais ainda pelos primeiros do que por muitos segundos. Vivi, sob ele, os mais exultantes anos do meu catolicismo. Não chegaram a ser cinco. João XXIII morreu a 3 de Junho de 1963, aos 81 anos.

5. Já quando Pio XII morreu, eles haviam sido os mais "papabile". Refiro-me aos cardeais Alfredo Ottaviani e Giovanni Montini. O primeiro era chefe do Santo Ofício e acusavam-no de reaccionarismo. O segundo, arcebispo de Milão, com fama de homem aberto ao novo e ao moderno. "Cantemos ao Senhor um Cântico novo."
Os dois voltaram a ser falados em 1963. O que eu rezei para um Papa chamado Montini! E ele chegou, sob o nome de Paulo VI, a 21 de Junho, com 65 anos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu tinha apenas 28 anos! E o nome do Papa era o nome do Apóstolo das Gentes.
Poucos meses depois, já se falava de "fundo Roncalli, forma Pacelli", contrastando a rigidez do novo Papa com a bonomia do seu antecessor. Mas o Concílio continuava, começavam as viagens papais (a histórica peregrinação à Terra Santa em Janeiro de 1964) e foi a continuidade muito mais que a ruptura que eu li na encíclica Ecclesiam Suam de Agosto de 1964. Lembro-me que o meu elogio ao texto papal, nas páginas de O Tempo e o Modo, me valeu uma resposta zangada de um amigo ex-católico, então muito mais à esquerda do que eu. Ele, que, agora muito mais à direita, manda para braços anglicanos todos os "protestantes" (mesmo os mais silenciosos) à eleição de Ratzinger, acusava-me então de poetizar e lembrava-me que ao contrário do que dizia o alemão Novalis (compatriota de Ratzinger) o mais poético podia não ser o mais verdadeiro.
Paulo VI na ONU, em 1965. Mas, bruscamente, fez há muito pouco tempo trinta e oito anos, Paulo VI em Fátima, recebido por Salazar. Foi a única vez que vi um Papa. Foi o único Papa que eu vi. Não em Fátima, mas junto ao Mosteiro da Batalha, quando de Fátima ele regressava em carro aberto, olhos imensamente azuis, como nunca até esse dia eu os supusera.
Por esses anos, por esses tempos, mudou muito a imagem pretérita de Pio XII, quando os silêncios do Vaticano perante a Alemanha nazi começaram a ser muito falados. Pio XII devia ter falado? Paulo VI devia ter recusado vir a Portugal? Essa questão - ou essas questões - ainda hoje as não resolvi dentro de mim. Se os olharmos como chefes institucionais (e a Igreja é uma instituição), eles defenderam-na como a deviam ter defendido, sem atrevimentos inauditos e sem riscos temerários para a unidade que lhes cabia preservar. Mas se os olharmos como pastores do povo de Deus (e a Igreja é o povo de Deus) por que temeram se o próprio Cristo garantiu a Pedro que as portas do Inferno nunca prevaleceriam contra as da Igreja?
E foi no tempo do Papa que eu mais "elegi" que eu cheguei à conclusão que o sumo pontífice não podia ser um modernizador mas um contemporizador, não podia ser uma Antígona mas um Creonte (para recuperar uma imagem antiga). Podia escandalizar intelectuais impacientes como eu, mas não mansos ou feros pobres de espírito.
Em 68, com a encíclica Humanae Vitae, Paulo VI enfrentou de peito aberto a revolução sexual nesse ano triunfante. Católicos insurgiram-se por todo o mundo, numa contestação inédita. Quem mudará?
Eu, por certo, mudei, nesses últimos dez anos do pontificado de Paulo VI. Octogesima Adveniens? Mas 80 anos depois da Rerum Novarum, onde estavam as coisas novas? Onde estão hoje, em que a Humanae Vitae é menos contestada do que os seus contestatários de 68?
Talvez por isso esse Papa seja, na minha memória, o mais amargurado e o mais torturado dos papas da minha vida. Por que é que pensar nele me faz pensar na morte?

6. Estava em casa diante da televisão, quando, em Agosto de 1978, pouco depois da morte de Paulo VI, aos 81 anos e com quinze de pontificado, nos foi anunciado novo magnum gaudium. Contra todas as previsões, apareceu-me como Papa João Paulo I, Albino Luciani, patriarca de Veneza (como João XXIII) aos 65 anos. Nunca me esquecerei da alegria - infantil ou angélica - com que surgiu à varanda e com que deu a primeira bênção. Foi o primeiro Papa a usar dois nomes, em dupla homenagem aos seus mais imediatos antecessores.
À época escrevia crónicas no Diário de Notícias. E o meu texto sobre a eleição de João Paulo I foi tão delirante que Mário Mesquita (à época director do jornal) se espantou com a minha inabalável fé (fé de um ex-católico) no Espírito Santo, que escolhera para Papa o papa do Pinocchio.
Depois fui até aos Japões e pensei mais em budistas, à Sylvia Sidney, do que em papas. Já no regresso, no aeroporto de Nova Deli, vindo do Taj-Mahal, folheei um jornal. Numa página interior, em corpo pequeno, falava-se da morte do Papa. "Meu Deus" - pensei eu - "como este jornal é antigo, o Papa já morreu há quase dois meses." Quando li a noticia, percebi. Quem morrera a 28 de Setembro, depois de um pontificado de 34 dias, fora esse mesmo João Paulo I, de que eu esperava nem sei bem o quê, mas sei quanto.
Nunca acreditei na tese absurda do assassinato. Mas acredito que Deus, às vezes, atravessa muito depressa a vida dos homens.(continua)

João Bénard da Costa 13 de Maio 2005 in PÚBLICO

segunda-feira, maio 09, 2005

Alfreda e os túneis 

1. "A Alfreda precisa de mim na cama dela." Esta simples frase - em post scriptum justificativo para uma nova falta desta coluna a 29 de Abril - escandalizou muito boa gente, ao que parece. Dito isto, logo assento que é bom guardar o sentido das proporções. Boa gente, talvez fosse ou talvez seja. Muito boa gente não foi certamente, que nem as massas me lêem nem eu escrevo para as massas. Digamos que foi uma historieta, com peso mas sem consequências.
Mas, de facto, faltei porque a Alfreda precisava de mim na cama dela. Só que cada um faz a cama como nela se há-de deitar e a cama da Alfreda era estreita demais para dois. Que culpa tenho eu que quem ouve falar em cama se ponha logo a acamar? E se a Alfreda fosse um bebé que precisasse de mim para lhe dar a mão e lhe tirar os medos da noite? E se a Alfreda fosse uma velha que precisasse de mim para me olhar nos olhos, acabada de morrer? A minha ausência, de que tão mal pensaram, pode-se ter devido a desvelos avoengos ou a piedades finais. Que a mente costumeira não conclua, sobretudo quando não conhece a Alfreda e nada pode saber das razões que a levaram a querer-me na cama dela.

2. Para defesa da Alfreda - mais do que para minha defesa, que este é um mundo cão e um mundo macho, como não se cansa de dizer Inês Pedrosa - sou obrigado a explicar que a dita, não sendo de berço nem muito menos anciã, estava entre lá e cá ou mais lá do que cá. Ou seja, o leito era leito de agonia. Um dia o jardineiro viu-a, muita pálida, sentar-se no banco verde do jardim. Depois, caiu para o lado devagar.
Umas horas depois - se não foi assim foi parecido - entrou em coma. Antes chamou algumas pessoas que ela amara ou que a tinham amado. Mandou-lhes dizer que precisava delas, junto à cama dela, para onde a levaram após o acidente. Uma dessas pessoas fui eu. Acham que não devia ter ido? Acham que, a pretexto de uma crónica para o PÚBLICO, devia ter ficado em Lisboa e tê-la deixado só à hora de morrer? Não me têm em tão má conta, pois não?
E assim nos juntámos todos no quarto da Alfreda, junto à cama da Alfreda. Houve um padre que disse "com algum desalento" que "se alguma coisa não se pode ensinar é a sabedoria". Alfreda concordou e acrescentou: "Nem o prazer." Aquela associação surpreendeu-me, até porque nunca tinha pensado quanto era exacta e quanto nunca o prazer se ensina nunca. Depois, eles calaram-se, segundo Agustina porque temiam ter ido longe demais. Segundo mim, essa referência ao prazer foi a sua derradeira palavra.
O padre deu-lhe a extrema-unção e tinha lágrimas nos olhos, lágrimas que ninguém viu porque ele estava no lado mais escuro do quarto. Voltando a Agustina: "A luz do quarto era de um azul opaco e ela parecia irreal, como a Branca de Neve no seu leito à espera de um beijo de amor." Um beijo não lhe dei, mas fiz-lhe uma festa desajeitada na mão, mão que ela tirara para fora dos lençóis, talvez exactamente para essa festa e talvez para que essa festa fosse assim.
Depois, olhei os outros homens e tive a certeza que todos a tinham amado, sem que ela se apercebesse disso. Éramos os espaços em branco dela. Pouco depois, entrou em coma.

3. Hoje, as pessoas nascem e morrem quase sempre sozinhas, ou rodeadas por profissionais. Mas é costume recente. Não é preciso ir ao Louvre ver La Mort de Sardanapale de Delacroix, La Mort du Père de Greuze, ou as muitas mortes reais documentadas para a História. Não é preciso ir a qualquer outro museu ver os Nascimentos da Virgem, com dezenas de aias, e a celha com água quente para o banho.
Ainda quando eu nasci, ainda dez anos depois de eu ter nascido (ou mais) o quarto da minha mãe se enchia de cunhadas e amigas, rodeando e ajudando a parteira que ia a casa, até ao momento de se ouvirem os primeiros choros. Só nessa altura se ia chamar o Pai, pois que, até ao parto, o quarto conjugal era um espaço feminino, um reino de mulheres solitárias na dor, no ciúme ou na alegria. Entrava-se neste mundo, consoante as hierarquias, em cerimonial e etiquetas, regidos por rigorosas normas.
Entrava-se e saía-se. Morrer sozinho era a última das desgraças, para os que não podiam esperar mais do que prisão ou hospital. Os outros eram acompanhados pela família (no sentido mais vasto da palavra) que os confortava e, em casos de maior fé, lhes dava recados para serem transmitidos a mortos mais antigos. "Não te esqueças de dizer à tia B... que se continua a fazer a compota de alperce exactamente como ela ensinou." "E diz à tia C... que ainda anteontem consegui fazer a paciência da rainha e não fiz batota." Não inventei recados destes. Ouvi-os de quem os ouviu, nessas noites de agonia em que ninguém se deitava. Depois - se era a dona da casa quem morria - apagava-se o fogão da cozinha, apagava-se o lume. Era o lar que se apagava.
Lembrei-me disto tudo, durante a agonia da Alfreda, quando a irmã dela, essa tão branca Noémia de olhos tão claramente azuis, tanto mandava sair do quarto os circunstantes que mostravam pouco respeito, como os chamava do corredor, porque agora é que lhe parecia que ia ser.

4. O que é o estado de coma? Os médicos - disseram-me - não sabem muita coisa sobre ele. O cérebro pode estar ileso e com funções perfeitamente normais. Só os nervos estão paralisados como pelo efeito dum veneno. É certo que Alfreda não tomou veneno nenhum, nem foi mordida por nenhuma mamba negra, como protestou a irmã e com bastante razão.
Mas a simples ideia de uma pessoa estar meses ou anos com funções normais e nervos paralisados é mais terrífica do que a concepção prevalecente que o moribundo já de nada se apercebe e nada ouve, vê, cheira ou sente. Essa imagem de uma pessoa lúcida e paralisada guardo-a, no máximo do horror, da Thérèse Raquin de Zola, que li quando ainda não se pensa na morte. Farta de aturar o marido e a sogra, Thérèse mai-lo amante decidem dar cabo deles. Só tiveram que acabar com um. A velha teve tal choque ao ver o crime que ficou cega, muda e paralítica. Os assassinos decidiram deixá-la assim. Não podia testemunhar e vingavam-se melhor.
Ninguém suspeitou de crime. Passado o conveniente período de nojo, Thérèse e o cúmplice casaram-se. E toda a gente gabava "a santa da rapariga", que tratava com tanto zelo da ex-sogra, como se mãe dela fora. E a velha Mme. Raquin, a única que sabia tudo, tinha que ouvir impávida esses elogios, ver o casal de assassinos sorrir docemente e deixar que, todos os dias, a deitassem, levantassem e sentassem.
A Alfreda sofreria algo de semelhante no coma em que caíra? Como posso eu saber, como podemos saber? Também há quem diga que a pessoa se sente como num fundo de um túnel. Para outros, essa imagem do túnel - e da luz ao fundo dele - é a reminiscência do momento do nascimento, recuperada à hora da morte.
Agustina em A Alma dos Ricos - e embora seja natural que não tenham percebido, não tenho estado a falar doutra coisa, doutro livro e doutro filme - chamou ao último capítulo Para que saibam o que se passou no túnel.
E diz: "O estado de coma simplificou tanto a vida de Alfreda que o tempo deixou de existir. A infância fazia parte da juventude e esta da idade adulta. Tudo era tão claro e interessante, fora de qualquer complexidade, que o prazer de decifrar todas as coisas invadia todo os seu ser. Um ser vivo e resplandecente, à parte dos outros." Fala do "dilúvio imparável do tempo. Tudo em ligeira confusão, em brando passo, o medo e as intenções maliciosas eram-lhe extraídas como se extrai um dente podre. O mal não existia, só uma passagem de vidas, sem fraude e sem destino".
Essa visão é quase uma visão de céu, mas não é compartilhada por todos. Havia quem visse nela o Mal. E havia quem dissesse "que ela tomara um caminho tão solitário como o das estrelas e não havia uma fórmula para o descrever e compreender".
Seja como for, a mulher que me chamou para a sua cama a 29 de Abril "era uma mulher fora de série" e tudo o que me aconteceu, nessa semana em que andei perdido, foi bastante fora de série.
Mas estou a falar da Alfreda. E, como a Agustina também diz, "os homens sempre inventam quando se trata das mulheres. Uns mais, outros menos".
Eu, que nem sequer inventei uma cama, eu que nem sequer inventei uma coma, andei a percorrer um túnel sem achar luz no termo dele.
Do que nele encontrei, é muito cedo para falar. Mas de vez em quando sabe bem divagar ao fazer desta, sabendo que ao correr da pena se aperta o coração.

João Bénard da Costa 6 de Maio 2005 in PÚBLICO

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