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sexta-feira, outubro 31, 2003

O Homem da Fé 

1-"A esperança espanta o próprio Deus", disse Péguy. Claudel, pela voz de Joana d'Arc na fogueira, proclamou que ela era a mais forte das três virtudes teologais.
Da caridade, não foi preciso esperar pelos hinos dos poetas. O amor de dilecção (agapê) foi posto no cume da hierarquia dos carismas por São Paulo, na celebérrima passagem da primeira Epístola aos Coríntios (13, 1-13) que é sempre tão bom recitar: "Ainda que eu falasse todas as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver a caridade sou como o bronze que soa ou o címbalo que ecoa. Ainda que tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda as ciências, ainda que tivesse a plenitude da fé, dessa fé que move montanhas, se não tiver a caridade nada sou" (...). "A caridade é a que nunca passa. Desaparecerão as profecias. Calar-se-ão as línguas. Desaparecerá a ciência (...)". "Quando era menino falava como menino, pensava como menino, raciocinava como menino. Quando me fiz homem, desapareceu em mim o que de menino em mim havia. Por agora, vemos como através de um espelho, confusamente, mas um dia veremos face a face. Hoje, só conheço imperfeitamente. Mas um dia virá em que conhecerei como sou conhecido.
"A fé, a esperança e a caridade ficarão para sempre e só elas para sempre ficarão. Mas a maior de todas é a caridade".

2 - Misteriosíssima é esta hierarquia que secundariza, não secundarizando, a fé e a esperança, como secundariza, não secundarizando, os dons do Espírito Santo, exaltados logo de seguida, no capítulo 14 da mesma Epístola.
No mesmo Paulo (Rom. 1 5, 16) pode ler-se o paralelo entre a fé e a esperança, quando o Apóstolo das Gentes se refere a Abraão como aquele que "esperou contra toda a esperança". E esperou porque teve a fé, a "fé que lhe foi contada".
Antes de Abraão, houve certamente lugar para a esperança e para a caridade. Adão e Eva esperaram ser perdoados, Noé esperou sete dias pelo segundo voo da pomba, que lhe voltou com um ramo de oliveira no bico e, depois, esperou outros sete dias até a pomba nunca mais lhe voltar.
A caridade (agapê e eros) acompanha a evolução da humanidade de Adão a Térah. Se ela não houvesse, o homem não teria conhecido a mulher e a mulher não teria conhecido o homem, e Eva não teria podido dizer que, por Iavé, outro homem nascera. Mas terão tido a fé, essas gerações nascidas à porta do jardim, que querubins de espada na mão guardavam para as impedir de voltar junto à árvore do bem e do mal? Sempre me interroguei sobre a razão da fé nessas gerações iniciais, interrogação que tem sentido radical quando se sabe que Abraão é chamado o pai da fé.
Porque Abraão é o primeiro - ou foi o primeiro - a ser tentado a duvidar da palavra de Deus, que o mesmo é dizer a duvidar de Deus. Como era possível que o mesmo Deus que o fizera gerar um filho na velhice, que fizera a velhíssima Sara conceber um filho, esse Isaac a quem tinha prometido tantos prodígios para com ele estabelecer uma aliança perpétua, como era possível que o mesmo Deus o mandasse matá-lo e oferecê-lo em holocausto como um cordeiro?
Mas Abraão não duvidou.
Penso nas páginas escritas por Kierkegaard (Temor e Tremor) quando assumiu o pseudónimo de Johannes de Silentio, para quatro vezes narrar o que se passou na madrugada em que Abraão saiu de casa, beijou Sara e levou com ele Isaac, para subir a montanha de Morija.
Isaac era a única esperança de Abraão, e Deus mandava-o cravar o cutelo nessa única esperança. "Mas Abraão creu e não duvidou: creu no absurdo." (...) Não virou os olhos para a direita e para a esquerda, esperando angustiadamente uma salvação. Não fatigou o Céu com orações. O Omnipotente punha-o à prova, e ele sabia que esse sacrifício era o maior que se lhe podia pedir. Mas também sabia que nenhum sacrifício é o maior quando é Deus que o pede. E levantou a faca."
Kierkegaard, que ainda estou a citar, descreve, depois, todas as hipóteses possíveis para Abraão evitar o gesto infanticida. Podia ter-se morto, imolando-se em vez do filho. Podia ter imolado o cordeiro. Podia ter pedido a Deus que o poupasse, como muito antes pedira a Deus por Sodoma e Gomorra. Mas - volto a Kierkegaard - "não teria dado testemunho da sua fé, nem da Graça de Deus, mas teria mostrado quão terrível é subir a montanha de Morija. Nem Abraão, nem a montanha de Morija teriam sido esquecidos. Seriam tão lembrados quanto o são. Mas a montanha seria lembrada, não como a Ararat, onde a Arca se deteve, mas como um lugar de horror. "Foi lá" dir-se-ia, "que Abraão duvidou".
De cada vez que penso sobre o mistério da Fé, penso nas palavras com que Kierkegaard termina, no livro que refiro, o que chamou o "elogio de Abraão". "Eu sou aquele que não esquecerá nunca que tiveste que esperar cem anos para que te fosse dado, contra toda a esperança, o filho da tua velhice, esse filho que só conservaste porque levantaste o teu punhal contra ele. Eu sou aquele que não esquecerá nunca que, aos cento e trinta anos, não foste mais longe do que a fé".

3 - Se ninguém pode compreender Abraão, como Kierkegaard também disse, é porque ninguém nunca teve a fé de Abraão. Quem é aquele que pode dizer às montanhas que se movam e as montanhas mover-se-ão? Quem são aqueles cuja fé espanta o próprio Deus, como (Mt 8-10) o espantou a fé do centurião e o levou a dizer "Em verdade, em verdade vos digo que nunca encontrei semelhante fé em Israel"?
Homem de fé, mulher de fé, disse-se diz-se de tantos que a tiveram ou disseram ter. Tê-la-ão tido? Recordo "Pickpocket", um filme de Robert Bresson. Lembrando o dia da morte da mãe e determinado acontecimento, o protagonista, um ladrão, dizia ter acreditado em Deus durante três minutos. O católico Bresson comentava: "Não conheço mais ninguém que possa dizer que acreditou em Deus durante tanto tempo". Julgamos - julgam alguns - que sabem o que é a fé, a esperança ou a caridade. Mas se o soubessem, não saberiam o que nós sabemos. A quase todos os que o rodeavam, o Senhor sempre chamou "homens de pouca fé".

4 - Conheci algumas pessoas que julgo tiveram fé, nem que fosse por instantes tão breves como o protagonista de Bresson.
Mas o exemplo de fé mais pasmoso que de tão longe eu tenho presenciado é o do homem chamado Karol Wojtyla, Papa sob o nome de João Paulo II.
Não é o "papa da minha vida", no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo - sobretudo nos últimos anos - dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé.
"Houve homens grandes pela sua energia, sua sabedoria, sua esperança ou seu amor". Mas há os homens grandes pela energia, cuja força provem da fraqueza, grandes pela sabedoria cuja forma está para além do conhecimento, grandes pelo amor que vão para além do amor que a nós próprios temos. João Paulo II é um desses homens. Ninguém mais fraco - a cada momento julgamo-lo chegado ao limite das suas forças - e dessa fraqueza irradia uma força como jamais me lembro de ter pressentido. Ninguém mais longe do que a ideia de sábio pode convocar e ninguém tão perto dessa "loucura da Cruz" de que falam os místicos. Ninguém mais longe da imagem que, por exemplo, guardamos do "bom Papa João", mas ninguém que a cada momento nos faça sentir que tudo o que faz o faz por amor até à imolação de todos os seus poderes, faculdades ou dons, até a imolação da sua própria função papal.
A Igreja, e muitos dos que estão nas margens dela, celebraram agora o Jubileu deste Papa. Em cada uma das suas aparições públicas, eu vi o Homem das Dores ou o Homem da Fé. Muitos serão recordados por muitas outras obras ou palavras ou feitos. João Paulo II será recordado pela Fé.
E, se tanto citei Kierkegaard, termino com palavras dele, roubadas à dedicatória do meu exemplar de "Crainte et Tremblement", na tradução francesa de P.H. Tisseau. O livro foi-nos dado, à Ana Maria e a mim, a 25 de Maio de 1957, por um Amigo, que, hoje, pode saber melhor do que nesses verdes anos, do que copiou e do que nos doou:
"Aquele que ama a Deus não cura de lágrimas nem de admiração. Esquece o sofrimento no amor e esquece-o tão completamente que nenhum traço da sua dor lhe sobreviveria se o próprio Deus não no-la lembrasse. Porque Deus vê no segredo, conhece a aflição, conta as lágrimas e não esquece nada".
Mais não digo e mais não posso dizer.

João Bénard da Costa 31 de Outubro 2003 in Público

sexta-feira, outubro 17, 2003

Um Filme Falado: Uma Desarmante Complexidade 

1 - Quando, em 1957, Chaplin estreou o polémico "A King in New York", Rossellini terá dito: "É o filme de um homem livre."
Enquanto via "Um Filme Falado", o filme de Manoel de Oliveira que hoje se estreia em Portugal, lembrei-me dessa reacção como a mais óbvia. Só um homem livre (coisa muito mais difícil de se ser do que de se falar) podia ter ousado uma obra assim. Obra que não presta contas a ninguém, não pede contas a ninguém e não ajusta contas com ninguém. Obra em que Oliveira põe toda a sua verdade e nada mais que a sua verdade. Na grande idade, alguns artistas conseguiram-no. Um tão grande despojamento que justifica a dúvida sobre se se está perante uma obra de juventude ou perante uma obra de pletórica maturidade. Como aconteceu com Mozart e levou o seu catalogador - Köchel - a datar como obras de verdes anos obras dos anos finais. Mozart morreu novíssimo? Aparentemente. Mas foi ele próprio quem disse que suou sangue para chegar ao que os distraídos classificaram como superficial ou leve. Para se atingir a "leveza" de "Um Filme Falado" talvez não sejam precisos 95 anos, mas é preciso certamente algo que anda lá muito perto, em termos de tempo e em termos de modo. Louvado seja!

2 - Começo pelo título. Aparentemente nada de mais corriqueiro, quase um pleonasmo, pois que, com raríssimas excepções, há quase oitenta anos que todos os filmes o são. Estou com curiosidade de saber como o vão traduzir para inglês ou para americano: "A Talkie"? Literalmente, devia ser assim, embora a "Variety" lhe tenha chamado "A Talking Picture", o que, sem trair, não é exactamente a mesma coisa. Mas quando nos pegam na mão para nos lembrar o óbvio, é porque o óbvio não é tão óbvio como aparenta sê-lo. Para gente não poliglota, os filmes falados noutras línguas ou não são ouvidos, são lidos (no caso das versões legendadas), ou são ouvidos (no caso das versões dobradas) em fala de gente que fala a nossa fala, ou seja em fala que a gente do filme não falou. Em "Viagem ao Princípio do Mundo", um dos filmes de Oliveira que mais se aproximam deste, uma velha analfabeta da raia minhota perguntava do sobrinho, nascido em França e que só falava francês: "Por que é que ele não fala a nossa fala?" Essa pergunta está implícita em todos os filmes falados, como está implícita em todas as traduções e tem sido um dos temas predilectos de George Steiner.
Pois bem. Neste filme, há um jantar que reúne um actor americano, de origem polaca, no papel do capitão do navio (John Malkovich), uma actriz francesa, no papel de uma rica mulher de negócios (Catherine Deneuve), uma actriz italiana, no papel de um famoso modelo (Stefania Sandrelli), e uma actriz grega no papel de uma célebre cantora (Irene Papas). É um jantar de circunstância, pois que o circunstancial capitão convida para a sua mesa as três celebridades que levava a bordo. A conversa é circunstancial, "uma espécie de jogo", como lhe chama o capitão, pois que cada um ou cada uma resume a história da vida, com paragem nas datas mais marcantes: nascimento, casamento ou não casamento, filhos ou não filhos. Nada de indiscreto, nem de confidencial. Conversa de salão ou jogo de sala. Mas o que sai fora das normas (de todas as normas) é que o capitão fala inglês, a empresária francês, a ex-modelo italiano e a cantora grego. E todos se entendem perfeitamente. Graças às legendas, também o espectador os entende, como notava com pertinência o crítico da "Variety", que se esqueceu, contudo, de sublinhar que essa sequência proíbe a dobragem, que lhe retiraria por completo o sentido.
Mesmo que admitamos, como hipótese, que os quatro dominam as quatro línguas (não parece ser o caso), nenhum fala a fala do outro. Como aliás é notado, a situação é a inversa do mito de Babel. A língua não é barreira mas continuidade sem ruptura. É a falar que eles se entendem, no diálogo mais antiglobalizador que alguma vez ouvi em cinema. Mesmo que um dos temas de conversa seja a globalização e que a grega recorde que os "founding fathers" americanos ponderaram seriamente a hipótese de o grego ser a língua dos Estados Unidos, o que, caso tivesse acontecido, daria hoje ao grego estatuto universal, em vez de um estatuto cada vez mais regional que Irene Papas tanto lamenta.
Numa mesa próxima estão uma professora de História e a sua filha, ambas portuguesas (Leonor Silveira e Filipa de Almeida). Quando, mais tarde, o capitão as convida para se reunirem aos quatro (antes fizera à professora convite mais dúbio), o "milagre" interrompe-se e é na língua "global" (o inglês) que Leonor Silveira dialoga com os habitantes da outra mesa. A nossa fala, ao longo do filme, não é comunicável senão entre portugueses (mãe e filha, ou ambas com Luís Miguel Cintra, a fazer de Luís Miguel Cintra, quando, "por acaso", se encontram no Cairo e aquele lhes faz de cicerone).
Por que é que Portugal não sai de Babel? É uma boa pergunta que pode ajudar a perceber por que é que o destino das duas portuguesas é o único que é diferente do destino de todos os outros passageiros do navio. Portugal é um caso à parte? Neste filme, é-o. Há contactos, mas não faz parte do jogo. Sempre "off", é, no fim, o que fica mais "in", no sentido mais radical da expressão.

3 - Navio. Quase todo o filme se passa nele, viagem de uma mãe e filha pelo Mediterrâneo, matriz da civilização de que vivemos os dias finais. Essa situação levou alguns críticos estrangeiros a comparar este último Oliveira a "E La Nave Va" de Fellini. Só que este navio não vai. À excepção da parte final da viagem, quando o Mediterrâneo não é mais dele, só o vemos imobilizado nos vários portos (Marselha, Nápoles, Atenas, Istambul, Cairo, Aden) ou num belíssimo plano recorrente, em que a proa rasga as águas azuis. Ao princípio (largada do Tejo e de Lisboa) há movimento ("travelling" até Belém) mas não há palavras, com o filme falado a começar como filme mudo. Depois, sempre na mesma amurada, em plano em que quase só muda a indumentária das protagonistas, o navio está acostado. Dele, se vê a entrada de Catherine Deneuve (Marselha), de Stefania Sandrelli (Nápoles) e de Irene Papas (Atenas). Catherine Deveuve é filmada em "plongée", num curto plano. Stefania Sandrelli tem uma entrada mais aparatosa. Irene Papas, entrada de vedeta. Mas só passado o Mediterrâneo todos se encontram e só passado o Mediterrâneo vemos o interior do navio, até essa altura nunca desvendado. Já não é meio de viagem, mas sim fim de viagem, já não é lugar de cruzeiro, mas marca de cruz. Barca de Caronte, se preferirem. E, se há filme nos antípodas do de Fellini, é um "Um Filme Falado", certamente o mais clássico e o menos barroco dos filmes de Oliveira. Se se pode dizer que ambos choram o fim de uma civilização, o que é transbordante em Fellini é contido em Oliveira. Nada nos prepara para o desfecho e, no entanto, sem esse desfecho, que é um dos cumes da arte de Oliveira, nada faria sentido. E é um desfecho em "paralítico".

4 - Como a mãe não se cansa de dizer, essa viagem, planificada para ir ao encontro do marido, que a espera em Bombaim, é um cruzeiro porque decidiu aproveitá-la para mostrar à filha os lugares santificados (ou mitificados) da história do Ocidente. É uma viagem de instrução, como se dizia antigamente. É nessa instrução que tropeçam quase todos os detractores (significativamente portugueses) do filme de Oliveira. A mãe, professora de História, conta a História como Luís Miguel Cintra contava a História de Portugal no "Non". Mas em Marselha o que sobressai é um "caniche" branco, são os mercados, é uma conversa em francês com um vendedor de peixe e é uma placa no chão, remetendo para a colonização fenícia e para a invenção do alfabeto. Em Nápoles, o Castel dell'Ovo e a profecia de Virgílio que o assinalou como sinal de perenidade. O Vesúvio. Ou Pompeia, com a pergunta sobre "o que é uma vida devassa", a sobreposição dos guias turísticos e o campo-contra-campo do "décor" "reconstituído" e da ruína. "Cave canem". Em Atenas, a Acrópole e "como podia ser bonito se tudo estivesse como era", fala desmentida pelos fulgurantes planos do Pártenon, do Erectéion e, sobretudo, pelo "plongée" inadjectivável sobre o teatro. Depois, Istambul e Santa Sofia. Depois, o Cairo e a Esfinge.
Mas, a partir de Constantinopla, os sinais são mais elípticos ou crípticos. Junto ao chão, em plano de pés, mostram-se-nos as cruzes do cristianismo deposto. Os caminhos começam a ser caminhos opostos, na direcção de Meca ou na direcção de Jerusalém. No Cairo, a esfinge e os escaravelhos iluminam os vivos e os mortos, visitantes dos abismos e do oculto. O azul é a cor do maligno e o que se vê já não coincide com o que não se vê. Insensivelmente, sem mudança de tom nem mudança de estilo (sempre a mesma vaga névoa, sempre o acidental a significar tanto quanto o essencial) estamos a ser levados para o que todos os mitos ensinam, ou para a moral da fábula. Uma desarmante simplicidade? Eu prefiro chamar-lhe uma desarmante complexidade, pois que não me lembro de ser levado tão longe com tamanho deslizamento. Meu Deus, como tudo pode ser tão aparentemente simples (não há um efeito, não há uma "culminância") sendo tão abissal.

5 - Mas não quero acabar sem dizer que este é um filme - talvez seja o primeiro - que traz a memória do 11 de Setembro e a imagem do mundo que a 11 de Setembro começou.
O plano final é a reverberação (espelhada, depois, no olhar assombroso de Malkovich) dos "plano" que vimos, quando homens e mulheres saltaram das torres. Mas nem mãe nem filha saltam, desobedecendo à ordem do capitão. Já não há tempo. Estão, como estivessem no início, na amurada do navio. Mas o tempo suspendeu-se definitivamente e aquilo que foi viagem para transmitir a memória do passado, já não tem qualquer futuro.
O vento da morte (vento do norte) soprou mais forte, ao contrário do que pediu a belíssima canção de Irene Papas. Ficou-nos a beleza de Outrora? No filme ficou. Do navio, a última imagem é a de Copérnico, o primeiro a dizer-nos que a Terra não é o centro do Universo. E é para outros universos que "Um Filme Falado" nos convoca. Quem, neles, falará a nossa fala? Alguém nos ouve? Alguém nos vê?

João Bénard da Costa 17 de Outubro 2003 in Público

sexta-feira, outubro 10, 2003

Adolf Hitler no Céu 

1. Já meia-noite com vagar soou. Se começo a escrever a minha crónica a estas horas, foi porque me deixei ficar a ver a SIC Notícias num "especial" sobre a libertação de Paulo Pedroso, notícia que abafou completamente o outro caso do dia: a nomeação de Teresa Patrício Gouveia como ministra dos Negócios Estrangeiros. Foram duas boas notícias, num só dia. Sou, por princípio, contra prisões preventivas, gosto muito de Teresa Patrício Gouveia. Pode haver quem barafuste com a aproximação. Eu sei que não será o caso de Teresa Patrício Gouveia. Alegrias são alegrias, ainda que uma me venha de uma pessoa que mal conheço (só na penitenciária fui apresentado a Paulo Pedroso) e outra de uma pessoa que conheço há muitos anos e até já foi minha secretária de Estado, quando esteve na Cultura.
Repito: uma boa quarta-feira, depois de uma semana de intrigas e mais intrigas, de escândalos e mais escândalos. Uma semana à portuguesa, que quarta-feirou em odor de civilização. Em Londres, não se faria melhor. Às vezes - muito raramente, é certo - sabe bem não ter que dizer: "Este país!".
Não me vou explicar mais. Quem me conhece já sabe o que penso do processo da Casa Pia e não me apetece voltar com a bota à Ribeira Torta. Quem não me conhece, não tem nada que ver com as razões por que gosto de Teresa Patrício Gouveia.
Mas, sem dúvida nenhuma, esta obsessiva conversa sobre crimes e castigos, culpados e inocentes, infractores da lei ou zeladores da lei, arrependidos e desarrependidos, contribuiu (ao menos subconscientemente) para eu me lembrar de um texto de que não me lembrava há muito tempo, tanto tempo que, se me lembro de quem me falou dele, não me lembro, e bem gostava de me lembrar, de quem o escreveu. Podia ter sido Jorge Luís Borges, mas acho que não foi.
De subconsciência em subconsciência, foi-me crescendo uma frase que li outro dia e desta vez sou eu quem não quer dizer de quem (não, não foi o Eduardo Prado Coelho). Era a frase seguinte: "Por mais que as religiões mansas (ou sonsas, como preferirem) sofismem sobre isso, o que se faz não se desfaz. Pode corrigir-se, mas é tudo o que se pode - fica lá o esforço da borracha marcado, inapagável." Dito de outro modo, "once a crook, always a crook", a frase que mais aterrorizava Fritz Lang (se fosse mais cedo e eu tivesse mais espaço, contava-vos a história de "You Only Live Once", onde Henry Fonda faz de E.T.).

2. Estava-se uma vez numa conversa dessas, quando o meu incitado amigo me perguntou se eu conhecia o conto "Adolf Hitler no Céu". Um pacífico cidadão morria e ia muito naturalmente para o céu. Quem foi o primeiro imortal que lhe saltou ao caminho? Adolf Hitler. Sem blasfémia, o flébil morto não quis acreditar no que via. Pensou num sósia, ou em Charles Chaplin a brincar. Mas o outro, sem vanglória nem rebaixamento, confirmou-lhe a identidade. E só por já ser bem-aventurado (manso ou sonso, segundo a minha fonte) não o esbofeteou, ao ouvir uma citação bíblica: "Misteriosos são os caminhos do Senhor." Se fosse numa anedota, o recém-chegado tinha ido fazer queixa a S. Pedro. Como não era, envolveu-se em discussão teológica. Das várias perguntas de Hitler, retive três: "Aqui, no Céu, ficavas mais contente se soubesses que eu ardia no Inferno?" "Não te ensinaram na terra que era pecado desesperar da própria salvação?" "Não leste a parábola da vinha e do vinhateiro?" No fim da longa conversa (que não era o último discurso de Hitler, mas o primeiro discurso do anti-Hitler) foi o justo quem se começou a interrogar se merecia estar onde estava. "Outro absurdo", respondeu-lhe o outro. E terminou com uma citação de M.S. Lourenço, ou que eu retive como hipotética aproximação de M.S. Lourenço:
"Eram onze horas quando o dono da vinha encontrou pelas esquinas operários que esbocejadamente bibliotecavam.
Antes destes, grupos de outros operários operavam a vinha. Disse então o mestre da vinha: vinde à vinha, enchei os lenços. Necessito de quem me faça água-pé.
Foram eles, supõe-se que agilmente.
No fim, quando a cada um deu o que cada qual, gritaram os primeiros:
Para que serve ser primeiro?
Resposta do senhor da vinha: para a água-pé, não há primeiro nem último, há apenas água-pé.".
Como numa parábola zen, foi nessa altura que o morto entrou mesmo no Céu, sem ver mais Adolf Hitler nenhum, mas também sem ver S. Francisco de Assis nenhum.

3. Volto à terra. Ouviram essa frase em dezenas de filmes, leram-na em dezenas de livros. Julgo que ainda se usa nos estados dos Estados Unidos que não aboliram a pena de morte. Depois de feita a prova, "beyond a reasonable doubt", da culpabilidade de um assassino, sem atenuantes, o juiz condenava-o a ser pendurado na forca até que a morte o levasse. Breve pausa. E, depois, estas palavras: "Que Deus tenha misericórdia da sua alma.".
Ou seja - se não pensaram nunca, pensem bem nisso -, o juiz mandava matar aquele homem, ou aquela mulher, tirar-lhe a vida, que o próprio Cristo viera redimir, mas anunciava, ao mesmo tempo, que Deus podia ser mais misericordioso do que ele. A justiça dos homens era e é (ou podia ou pode ser) mais severa do que a justiça divina. Quem deu aos humanos poderes que os homens admitem que Deus pode não exercer? "Não julgues e não serás julgado." "Quem nunca pecou que atire a primeira pedra." Mas todos julgamos, todos atiramos pedras e eu acredito que nenhum de nós será condenado por isso, que vale de lágrimas só existe aquele que habitámos ou habitamos. A ressurreição é o mistério que me faz acreditar que esta minha fé não é estulta e que não há nada inapagável ou forçosamente pagável.

4. Outra história, esta lida há muitos anos no hoje tão esquecido Giovanni Papini.
Altas horas da noite, um padre recebe a visita de um colega, demente. Quer saber se o sofrimento de Cristo, na paixão, foi infinito. O acordado resolve ser paciente. Levanta-se da cama, veste um abafo, e responde-lhe que evidentemente sim, pois, sendo Cristo Deus, o seu sofrimento só em termos de infinito se pode conceber. O outro, crescentemente alucinado, pergunta-lhe então como é que os homens podem aceitar a alegria eterna, sabendo que, por mais que tenham sofrido, tão-pouco sofreram por comparação com Cristo. Só há uma maneira - uma só - de mostrar gratidão ao Senhor. Sofrer infinitamente, como Ele sofreu. Como esse sofrimento é inacessível nesta vida, há que procurá-lo na outra. A danação eterna é o único meio para sofrer tão infinitamente como o Filho do Homem sofreu. Para tal, é compulsivo morrer em pecado mortal.
Conta-lhe de seguida um ror de pecados abomináveis que cometeu nas últimas semanas, meses ou dias. Não houve crime, por mais horrível que fosse, que não tivesse cometido. Tenciona culminá-los com o suicídio. Assim terá por certas as chamas do inferno.
O colega tenta todos os argumentos para o chamar à razão. O pecado do orgulho, querer comparar-se a Jesus Cristo. "Ainda bem que descobriste mais um", responde-lhe, com lógica demencial, o alucinado. "Deus vai-te dar a graça do arrependimento, nem que seja no último segundo."
Perante essa hipótese, para ele terrível, o desassisado recupera alguma calma. Levanta-se e abre a janela. Logo se agarra ao incerto antagonista, pega nele com toda a força e atira-o borda fora. Segue-o no mesmo segundo. "Agora estou certo de não me arrepender", é o último brado. Afinal o mais incerto. Quem sabe o que se passou nos instantes que lhe antecederam a morte, esmagado no solo? O paradoxo do padre que queria ser Deus é indemonstrável.

5. Tem direito a outra história, de todas a que mais me perturba.Também foi um amigo quem ma contou, atribuindo-a a Hannah Arendt. Se bem entendi, é num ensaio sobre Brecht.
A escritora, amiga do poeta, escreveu-lhe para Berlim-Leste, nos últimos anos da vida dele, quando Brecht escolheu viver na RDA. Censurou-lhe muitos actos que lhe eram atribuídos, muitas coisas que ele calou, muitas omissões que foram perdição de outros. É um requisitório implacável e arrasador.
Mas, no fim da carta, Hannah Arendt não ameaça Brecht com Pêro Coelho, nem com nenhum dos círculos de Dante. Como eu, não acreditava nessas coisas nem as achava compatíveis com a infinita misericórdia divina. Diz-lhe apenas isto (obviamente cito de cor): "Quando morreres, o Senhor não te mandará para nenhum inferno. Mas mostrar-te-á todas as peças, todas as novelas, todos os poemas, que tu e só tu podias escrever e dir-te-á: 'Por causa do que foste, não os escreveste. Agora, ninguém mais os escreverá'."
É uma variação sobre a célebre porta de Kafka? É. Mas Kafka, dos escritores que conheço, aquele que, com Dostoievski ou Musil, mais fundo foi aos abismos da irrisória justiça humana, da irrisória culpabilidade humana, também só nos disse sempre que o inferno é o nosso fim, e nunca o nosso princípio. O resto é Kierkegaard e a alternativa impossível. Não haverá balanças. Haverá apenas o que só cada um de nós podia ter preenchido e não preencheu.
Inapagável? Se o fosse, Adolf Hitler não podia estar no céu, nem talvez nenhum de nós. "Que não sejam julgados como puros espíritos / Que não sejam pesados pela balança justa / Que sejam como a vinha e o trigo maduro / Que nunca são medidas no flanco da colina."
Para acabar, deixo de ser incerto. Estes versos são da "Eve" de Charles Péguy e neles o poeta faz esse pedido à mãe do género humano. A tradução é de Manuel de Lucena.

João Bénard da Costa 10 de Outubro 2003 in Público

sábado, outubro 04, 2003

Cinzas de Verão 

1 - 1 de Outubro. Para mim, os anos começam sempre a 1 de Outubro. 1 de Janeiro é só o menos estimulante dos dias da quadra do Natal, uma espécie de cinzento P.S. (vale para "post-scriptum") do Dia do Menino Jesus.
Aos mais novos recordo que, nos meus tempos, era a 1 de Outubro que recomeçavam as aulas, após as férias que nos anos sem exame (e dos sete do liceu, quatro eram anos desses) se espraiavam docemente entre 14 de Junho e 30 de Setembro, dia dos anos da minha avó. Para mim, espraiavam-se literalmente entre 1 de Agosto e 28 ou 29 de Setembro. 1 de Agosto era o dia da viagem, entendendo-se por viagem o percurso entre o nº 86 da Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa, e a Villa Raul na Arrábida. Os quilómetros (46) não encolheram com o tempo, mas sem pontes sobre o Tejo (travessia em "ferry-boat"), camioneta de Cacilhas para Azeitão e mais camioneta de Azeitão para a Arrábida, o percurso era coisa para quatro, cinco horas a que se somavam as horas de espera pelas mencionadas carripanas, exclusivo de João Cândido Bello. Cedo erguer em Lisboa e pôr do sol na Arrábida, onde, felizmente, havíamos sido precedidos pelas criadas, que já tinham posto a casa mais ou menos em condições.
Tudo era diferente, nos rituais do quotidiano. Não havia luz eléctrica, a água provinha de uma cisterna e era levada em jarros para os quartos e respectivos lavatórios. Não havia telefonias nem telefones, não havia cinemas nem lojas. Havia a praia e os banhos, os passeios na serra. Um silêncio total.
Regressar a Lisboa era passar do século XIX ao século XX. A surpresa de carregar num interruptor e fazer-se luz, da água a jorros, do telefone a tocar. À noite, na cama, eu ouvia os silvos dos comboios de Entrecampos e não mais a nortada a fazer ranger as madeiras das portas e dos tectos. Um ano acabara, começava outro, ao reencontrar (ou perder) colegas e professores nos pátios e nas aulas do Liceu Camões. Nunca mais via os primos e as meninas do Verão. Até outro Verão. Mas não o Verão, como eu não o via, com os mesmos olhos. O tempo ainda não passava a correr e um ano na adolescência é maior do que a légua da Póvoa. Nesse tempo, é que a vida eram literalmente dois dias: os dias do Inverno e os dias do Verão.
As coisas então mais importantes para mim também se contavam a dois: os dias do campeonato de futebol e os dias sem campeonato, começou a época, acabou a época. Havia, no defeso, alguns sucedâneos (a Volta em Portugal em bicicleta, por exemplo), mas não era nada a mesma coisa. As temporadas dos cinemas: os grandes filmes chegavam em Outubro e desfilavam até Junho-Julho, quando começam as "reprises". No Verão, muitos cinemas fechavam enquanto os anúncios anunciavam: "Temporada de 1949-50". Havia os amores de Verão e os desamores do Inverno, e só mais tarde começou a ser vice-versa. Havia os pecados de Lisboa e os pecados da Mata Coberta. Havia as missas em capelas de casas ou grutas particulares e havia as missas de S. Sebastião da Pedreira ou do Patronato. Havia um eu de Inverno e um eu de Verão. Como é que eu posso dizer que o ano não começa a 1 de Outubro?

2 - É fácil darem-me cabo do sofisma. Afinal de contas estou a falar da infância e da adolescência e, descontando os anos sem memória, anos desses, em que a vida eram dois dias, não devem ter sido mais de 12. Numa contabilidade feita de hoje, é menos de um quinto da minha vida consciente, ou supostamente consciente. Como é que faço regra de tão breve excepção?
Penso que o cinema tem alguma coisa a ver com isso. Afinal de contas, a Cinemateca sempre fechou para férias em Agosto. Quando reabre, costumo eu tirá-las e só a 1 de Outubro retomo a plena "existencialidade" dela ("existencialidade" ou "essencialidade"?). Mesmo os Agostos em Lisboa, se nada têm que ver com os Agostos de outrora, não são como os outros meses. As salas de cinema estão fechadas, os portões da Barata Salgueiro fecham às 20h, é preciso sair ou reentrar por outras portas. Se os Agostos da cidade já pouco se assemelham ao que me contavam de outras eras ("Lisboa, em Agosto, sem a família, é melhor do que Baden-Baden", contava-se que contavam) são, mesmo assim, bastante mais tranquilos do que os outros 11 moradores do calendário. Como em tudo, a diferença tornou-se mais pequena, mas ainda existe e para alguns continua a ser saborosa. De Setembro pouco vos posso dizer. Hoje, como ontem, é mês em "off" noutros "in". Mas a 1 de Outubro, sim. A 1 de Outubro tudo recomeça e prometo a mim próprio e aos outros a promessa de sempre: "Demain je serais sage." Por exemplo, prometo aos leitores do PÚBLICO que para o próximo Outubro não escrevo mais chaladices destas. Ocupar-me-ei com o devido vagar de um discurso do Presidente da República (fez um dos melhores e mais urgentes discursos dele no dia 30) ou de um político da cena internacional (dia 30 também foi o dia de Blair).

3 - Mas não estou tão desacompanhado quanto isso nesta crença outubral. Bem sei que a tendência dominante é para o 1 de Setembro, mas setembrar ou outubrar não é o mais importante. O que mais conta, nos nossos ritmos e nas nossas rimas, é esta vontade de partir o ano ao meio, não onde manda o calendário, mas onde nos mandam o sol, a lua e os apetites. E aí basta ver por tudo quanto é sítio. Das omnipotentes televisões aos menos lidos jornais, não há quem não faça a sua época estival, mais "silly" ou menos "silly", conforme os usos e os poderes.
Por exemplo, aprendi alguma coisa com uma dessas "especialidades" do Verão deste ano, no caso em questão a do "Diário de Notícias". O jornal retomou, em versão livre, o célebre "questionário de Proust", assim chamado só porque Proust lhe respondeu duas vezes.
Nas respostas deste Verão reparei numa recorrência que me deu que pensar. À pergunta: "Qual o defeito que lhe inspira maior indulgência", houve, é certo, a resposta genial de Agustina ("o amor"), mas uma significativa percentagem (não fiz estatísticas) respondeu com a estupidez ou a ignorância.
Que a estupidez seja um defeito é discutível (embora um amigo meu, católico, não hesitasse em a considerar um pecado, e mesmo o único pecado veramente mortal), mas que, sendo-o, seja, hoje, tão genericamente desculpável, deu-me que pensar. A condescendência - ou compreensão - com a ignorância ainda mais.
Nunca fui muito nessa conversa de "gerações rascas" ou coisas quejandas. Mas quando tanta gente, nova em anos, se mostra tão tolerante com a estupidez e com a ignorância, pergunto-me se alguma coisa mesmo não se está a passar. "Morte à inteligência" foi um grito horrível ouvido há menos de um século nesta mesma península. Ficou para a História a resposta que teve. Essa história e essa História serão as mesmas habitadas pelos doces domesticadores da estupidez? Já estávamos habituados aos insultos aos "pseudo-intelectuais" na boca de qualquer desgraçado que não se sentia amado nem compreendido e sobretudo não compreendia nem amava o que "essa gente" fazia. Será necessário dar vivas à estupidez ou à ignorância?
Lembro-me de um filme de 1994 - "Forrest Gump" chamava-se - em que o herói (Tom Hanks) era uma espécie de atrasado mental, que só tinha uma pálida ideia dos problemas e conflitos americanos ou mundiais. O filme retratava-o como um típico produto do que se chamou a "baby boomer generation", a que foi dominante entre a ascensão de Elvis e a queda de Nixon. Mas aquilo que no livro (de Winston Groom) serviu de base ao filme - uma sátira, mais ou menos verrinosa, contra essa geração - transformou-se, no filme de Zemeckis, numa apologia do "pobre de espírito", que triunfava, porque milhões de americanos se achavam iguais a ele e queriam que a América e o mundo fossem de homens como ele.
Quando vi o filme, tive o primeiro prenúncio que aquele personagem não representava um tempo passado, mas um tempo futuro. O êxito desse elogio à estupidez deixou-me perplexo. Mais ano menos ano, não iria nova minoria reclamar direitos e a comemoração do Dia do Estúpido?
Estúpido fui eu, porque, infelizmente, essa minoria é maioritária, na América ou em qualquer outro país. Quando as maiorias se unem, sobretudo em épocas globais, adivinham-se os resultados.
Em Portugal, sem querer tomar tão pequena parte pelo todo, fiquei a saber que muitos se não incomodavam nada (ou se incomodavam pouco) com a ignorância e a estupidez alheias. "Deixa-os pousar", como se dizia antigamente na velha história do galo e dos abutres? Talvez seja pior. Porque, olhando o "Diário de Notícias" de 28 de Setembro, vi, na reportagem da chamada "marcha branca" (convite tendencial a almas pacíficas e misericordiosas) um cartaz que pedia para os pedófilos castração e prisão perpétua. Um grupo de monstros infiltrado entre os manifestantes e que os organizadores não puderam controlar? Ficava mais descansado se fosse assim. Porque o mais provável é que nem maus sejam. Que sejam simplesmente ignorantes ou estúpidos, ou as duas coisas ao mesmo tempo, a mais explosiva mistura humana que imaginar se pode. E isso é, de tudo, o que mais me assusta.
Resta-me esperar que sejam as últimas cinzas de Verão e não as primeiras chuvas de Inverno.

João Bénard da Costa 3 de Outubro 2003 in Público

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