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sexta-feira, março 25, 2005

Encarnação Assumpta 

1. Isto de Páscoas mudou muito. Isto de igrejas, ainda mais. Falo por mim, evidentemente. Por quem haveria eu de falar?
Quando eu andava de calções (vesti as primeiras calças compridas aos 13 anos e ainda houve quem achasse que eu parecia um marçano), o Aleluia cantava-se ao meio-dia de sábado, por isso mesmo chamado Sábado de Aleluia.
A missa jubilatória era precedida pela bênção do fogo novo, pela procissão do Lumen Christi e pela bênção do círio pascal. "Terra trémuit et quiévit, dum resurgéret in judicio Deo, alleluia" ("A terra tremeu e calou-se quando o Senhor, na sua justiça, ressuscitou, aleluia"). O que agora se celebra de noite (na noite de sábado para domingo) celebrava-se de manhã, no fim da epístola (Epístola de S. Paulo aos Colossenses, 3, 1.4), quando o celebrante cantava o Aleluia por inteiro três vezes, elevando a voz a cada uma delas. A cor dos paramentos mudava do violeta para o branco, pois de branco estava vestido o anjo que acolheu as três mulheres, no túmulo vazio do Salvador, e lhes deu a boa nova. (Mc, 16, 1-7). Era então, também, que todos os sinos começavam a tocar e que as igrejas, cobertas de crepes desde a noite de Quinta-Feira Santa, retomavam o aspecto normal. Depois, era uma longa vigília, já festiva, mas ainda não inteiramente proclamada, até ao Domingo de Páscoa, que, para mim, era uma réplica cinzenta do Natal, se me temer mais da memória do que da heresia. Não havia presentes, havia amêndoas, sobretudo essas, em forma de bonequinhas, com licor lá dentro, importadas de França. Faziam-se visitas, mas não havia almoços ou jantares de tios e primas, pelo menos na minha urbana família.
Quinta e sexta-feira santas eram dias de recolhimento. A sociedade civil seguia mais ou menos o luto da Igreja e os cinemas "nobres" (as salas como deve ser) anunciavam que "devido à solenidade do dia hoje não há espectáculo". As salas mais plebeias tentavam um compromisso e passavam Vidas de Cristo ou O Rei dos Reis de Cecil B. DeMille.
Quinta-feira Santa visitavam-se as igrejas e, como a Baixa era o centro de tudo, a Encarnação, o Loreto e os Mártires eram as mais visitadas. Era a minha avó quem nos levava (pelo menos a mim e à minha irmã mais nova). Recordo igrejas escuríssimas, imagens veladas e o cheiro a mofo e a clausura. Não era nada de muito diferente do que conhecia da igreja da minha paróquia (S. Sebastião da Pedreira), só que tudo era menos familiar, como quando me levavam a visitar parentes ou relações mais distantes, de quem não conhecia os cantos à casa, e não sabia bem onde me meter, nem os crescidos sabiam bem onde me meter. Digamos que era um dia cerimonioso, para dizer o mínimo ou para dizer o máximo.

2. Em parte, a distante familiaridade entre essas igrejas explicava-se pela sua datação comum. À excepção de meia dúzia de templos, de idades mais venerandas e de estilo e de traça mais dignos, todas essas igrejas da Baixa ou do Chiado remontam à mesma época, algures entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX, edificadas depois do terramoto, substituindo outras que o cataclismo levara. Como o ouro do Brasil já não permitia S. Roques ou outros faustos joaninos, copiavam remotamente o barroco agonizante, ainda vagamente inspiradas nas igrejas-salão romanas, mas sem pompa nem circunstância.
De 1783 data a Encarnação, substituindo antigo templo, mandado edificar pela condessa de Pontével, D. Elvira Maria de Vilhena, em 1708 e terramotado em 1755. Em 1784, abriram-se as portas dos Mártires, no lugar da antiquíssima ermida afonsina, ao que se diz também arrasada pelo sismo. Em 1785, foi a vez do Loreto, que tinha conhecido primeiro templo em 1517, destruído por um incêndio em 1651, reconstruído em 1676 e também reduzido a escombros no fatídico Dia de Todos os Santos. Sentava-se no trono a senhora D. Maria I, que, por muito pia que fosse, só verdadeiramente cuidou da Basílica da Estrela, que lhe serviu de camarote sacral e de sepulcro.
Não consta de crónicas coevas, nem de crónicas posteriores (séculos XIX e XX) que em momento algum tenham sido muito apreciadas. Foi o Chiado que as nobilitou, não foram elas que nobilitaram o Chiado, a fazer fé em duzentos anos de apressados comentários e de múltiplas desfigurações, devido a incêndios vários, praga habitual, em que a incúria e as velas partilhavam idênticas responsabilidades.
Avanço no tempo e vou reencontrar-me nos meus 20-30 anos, era da minha mais ardente prática católica. Para além de muitas missas por fiéis defuntos e duma certa moda da missa da 1 na Igreja dos Mártires, frequentei-as sobretudo em confissões mais esporádicas longe dos directores espirituais. O Loreto foi a que mais frequentei, talvez porque os padres (geralmente italianos) percebessem pior o português ou me ouvissem mais adormentados e vezeiros, com pressa de chegar ao acto de contrição e à penitência, assaz rotineira e assaz benevolente.
Enquanto rezava os padre-nossos ou as ave-marias, olhava em roda com sombrio espanto e achava aquilo (quer as duas igrejas do largo, quer a dos Mártires, vizinha à Bertrand) repulsivamente feio. Quando me falavam de "tenebrismo", achava o termo adequado ao estado das pinturas e das imagens, sujíssimas e com figurações quase imperceptíveis, fosse o que fosse que lá houvesse sido evocado. Se em 1988 - para dar novo salto no tempo e de bom tamanho - me viessem dizer que o incêndio do Chiado as havia consumido, não choraria uma lágrima. Em boa verdade, há que séculos não as visitava e achava que nada havia nelas para visitar.

3. Até que, o ano passado, por ocasião da exposição Histórias lendas narrativa no Museu das Janelas Verdes (exposição de pintura do século XVII, a que dediquei uma das minhas Casas Encantadas, no PÚBLICO de 26 de Março de 2004, sob o título Trevas e ausências), comecei a pensar que talvez houvesse sido muito injusto com estas igrejas lisboetas e me começou a apetecer revisitá-las.
Pela mesma altura, ouvi falar de um restauro da Igreja da Encarnação em termos bastante elogiosos e por pessoas sem elogio fácil. Falaram-me em idênticas intervenções no Menino Deus e em São Nicolau. Diziam-me - e confirmei que era verdade - que nem o Estado nem a Igreja abriram os cordões à bolsa para elas, mas que essas obras se deviam - exclusivamente - a iniciativas particulares, o que em Portugal é raríssimo. Mais recentemente, chegou-me aos ouvidos que os Mártires também estava a ser restaurado. Não há nada como realmente e decidi-me voltar à Encarnação para juízo próprio.
O que vi excedeu as melhores expectativas.
Para começar, foi a surpresa da luz. O que recordava negríssimo transformou-se num espaço onde o cinzento claro, o rosa e o ocre dominam, em metamorfose radical. O "tenebrismo", em qualquer dos sentidos da palavra, desapareceu para dar lugar a uma visão suave e meiga, que me pôs a pensar no nome da igreja e em Nossa Senhora da Encarnação a quem é dedicada. Se o dogma da Encarnação é antiquíssimo e remonta, na origem, ao versículo do Evangelho de S. João: "Et Verbum caro factum est" ("E o Verbo se fez carne") e à Epístola de S. Paulo aos Filipenses (2, 6-8), muito haverá a dizer sobre o relevo dado ao conceito, e ao que o distingue e confunde dos da Anunciação ou da Concepção, que o Concílio de Trento tanto enfatizou, por oposição ao protestantismo. Basta pensar na quantidade de clérigos e doutores que, na sequência do Concílio, e para me ater a Portugal, apuseram aos seus nomes próprios o termo de Encarnação (Frei António da Encarnação, Frei Baltazar da Encarnação, Frei Gaspar da Encarnação, entre tantos, tantos outros). Encarnação foi novo nome português, da segunda metade do século XVI ao século XVIII.
Revendo agora a grande pintura da abóbada da igreja, que representa a visão da Anunciação pelos Doutores da Igreja, ou a da abóbada da Capela Mor, com a Virgem e a Santíssima Trindade, presidindo à danação dos malditos, do que se trata é de uma lição de teologia tridentina suavizada pela distância temporal e pela rebentação do iluminismo, num clima temperado e grácil. Se as lições do trompe-l"oeil de Bacciccio e de Pozzi foram bem aprendidas, quem pintou essas pinturas já era bem lusitano, chamasse-se Gaspar José Raposo ou José António Mateus, pintores de que nunca ouvira falar mas não são menores.
É ainda belíssima e magnifica a Deposição da Cruz de uma das capelas da nave direita, enquanto na capela do lado oposto há um trabalho escultório notável, entre miríades de anjos e motivos florais rodeando o Cordeiro Místico.
Essas pinturas, essas esculturas, nunca em vida minha as havia visto, cobertas por um verniz acastanhado e sucessivas camadas de pintura que, junto à sujidade e ao fumo, as haviam sumido quase completamente. O que agora se vê é sobretudo um "mistério gozoso", como antigamente se dizia, que nada tem de funéreo ou plangente, para antes ressurgir numa visão assunta.
Um milagre? Não. Apenas um competentíssimo trabalho levado a cabo pelo atelier Junqueira (Carmen Almada e a sua equipa) com o apoio do World Monuments Fund e o impulso inicial de Frederico Lima Mayer. Para chegar à superfície original - disse-me Carmen Almada - foi necessário retirar quatro camadas de verniz e de repinte sobre 1200 metros quadrados de pintura sobre tela. Mas, felizmente, 97 por cento do tecto original estava lá, como lá estavam as cores originais, enegrecidas por diversas intervenções espúrias.
"Passou-se do preto para o branco", disse-me ela. Mais do que isso - penso agora eu - recuperou-se uma Encarnação Assumpta, fundindo os dois grandes dogmas de Maria e revelando a imparável ascensão para as alturas dos corpos transfigurados. Neste princípio do século XXI, uma nova igreja renasceu em Lisboa. Carmen Almada promete ainda mais surpresas para os Mártires e para a recuperação das pinturas lendariamente atribuídas a Pedro Alexandrino.
Resta acrescentar que, como habitualmente, documentos não faltavam. Faltava só, também como habitualmente, quem os estudasse e quem, baseado neles, cumprisse o programa original e descobrisse o que fora roubado à nossa memória e à nossa imaginação.
Aleluia!

João Bénard da Costa 25 de Março 2005 in Público

terça-feira, março 22, 2005

O pai e o silêncio 

1. Houve um tempo, tempo de que me lembro muito bem, em que, dos dias para tudo quase todos os dias, só havia um dia especialmente assinalado. Esse era o Dia da Mãe, celebrado a 8 de Dezembro, na Festa da Imaculada Conceição de Maria. Dos pobres pais não se falava, embora eu duvide que esta precedência cronológica da Mulher sobre o homem sirva de conforto ou lenitivo face à recente questão das quotas. Não era Dia da Mulher, como agora se usa, mas celebração da maternidade. Se bem me recordo, o então cardeal-patriarca aproveitava o doce dia e a doce palavra para enaltecer as mães de muitos filhos ou as mães que tinham os filhos que Deus mandava. É claro que para tanto era indispensável uma ajuda masculina, mas suspeitava-se que essa ajuda fosse prestada por motivos prazenteiros, enquanto a Mulher, pelo contrário, cumpria o seu dever.
O certo é que não me lembro de Dias do Pai, embora o 19 de Março, dia de São José, fosse, nesses tempos, dia santo de guarda.
A tradição do Dia do Pai confunde-se-me, em percurso autobiográfico, com a mudança do Dia da Mãe para data móvel, tão móvel que me aconteceu mesmo esquecê-la. Houve até um ano - estava uma filha minha a divertir-se na América - em que esta telefonou de lá para dar beijo à Mãe em dia dela. Enorme pasmo e enorme enleio. A filha-pródiga lembrava-se da Mãe, de além-Atlântico, com chamada que, simbolicamente, ao que creio pela única vez, não foi paga ao destinatário. Filhos outros, e marido bem pertinho na mesma casa, tinham-se esquecido por completo. As consequências só não foram mais devastadoras porque alguém reparou a tempo que os Dias da Mãe não coincidiam nem nos continentes nem nos conteúdos. Ou seja, era Dia da Mãe na América, não o era em Portugal. Ninguém tinha que pintar a cara de preto e à minha filha "americana" só lhe restava repetir a dose.
Começava-se então a ouvir a frase - também eu fiz minha - que com tanta mudança tinham dado cabo do Dia da Mãe. Frase tão feita como aquela que rezava: "Cá em casa nunca se ligou ao Dia do Pai." Eu, às vezes, protestava que era injusto, mas com fraquíssima convicção. É de pequenino que se torce o pepino e em pequeninos - nem eu nem os meus filhos - tínhamos sido torcidos para o Dia do Pai.
A coisa só mudou no tempo dos meus netos, há uns vinte a esta parte. Seja num dia, seja noutro, as escolas fazem tal alarido, a comunicação social tal algazarra, o comércio tal proveito, que não há perigo que qualquer das datas progenitoras passem despercebidas. Até eu passei a receber presentes no Dia do Pai. Eu que nunca os dei e, que em matéria de honrar pai, só me lembro de ter sido obrigado, em hora mais remota, a copiar do livro da 3ª Classe para as mãos paternas, o extraordinário verso por cuja fidelidade juro à fé de quem sou: "Amo o meu Pai / como não amei, não amo, nem amarei / mais ninguém / a não ser a minha Mãe." O autor era autora e certamente nunca ouvira falar do complexo de Electra, que a conclusão do verso não consegue ocultar.
Mas é certo, voltando aos dias de hoje, que, se se perderam, ou se deixaram perder, quase todas as origens míticas e religiosas dos dias para tudo ou dos dias para nada (nem sequer Santo António venceu em Portugal o ignoto São Valentim, no Dia dos Namorados) o Dia do Pai é praticamente o único, cuja génese é óbvia.

2. Ou não é nada óbvia.
Porque se pode perguntar - e com alguma pertinência - porque se comemora o Dia do Pai em dia de santo que pai nunca foi, São José, castíssimo esposo de Maria. Só gente muito heterodoxa foi capaz de comentar (Mt 1, 25-28 - "e nunca a conheceuaté ao dia em que ela deu à luz o filho, ao qual ele deu o nome de Jesus"), observando que o texto nada diz sobre o que se passou depois. Em relação a outra passagem (Mt 12,46) em que o mesmo evangelista fala de irmãos de Jesus, exegese estabeleceu há muito que, em hebreu e aramaico, o termo utilizado designa também parentes próximos. Por último, são muito tardias e espúrias as versões que atribuem a S. José filhos de casamento anterior, pelo menos tão tardias e espúrias como as que sustentam que ele viveu até aos 111 anos.
De resto, sabemos muito pouco de S. José. O Evangelho segundo S. João não lhe faz qualquer referência. Dos sinópticos, Marcos também o ignora. Dos evangelhos canónicos, Mateus e Lucas são as fontes privilegiadas, sobretudo o primeiro.
Logo na genealogia de Jesus Cristo se diz, a terminar, que "Jacob gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, a que se chama de Cristo".
Depois (Mt 1, 18-28 e Mt 2, 13-26) são narrados os três sonhos de José: o primeiro impediu-o de "repudiar sem escândalo" Maria, quando descobriu a gravidez dela, "antes de terem vida em comum". Disse-lhe o Anjo nesse primeiro sonho: "José, filho de David, não temas tomar conta de Maria, tua mulher. Porque ela gerou por obra e graça do Espírito Santo. E dará à luz um filho, a quem chamarás de Jesus, pois é ele quem salvará o povo dos seus pecados' (...) Depois de acordar, José fez o que o Anjo do Senhor lhe tinha mandado e tomou Maria com ele."
O segundo sonho segue-se à visita dos Magos. "O Anjo do senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma contigo o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto. E permanece no Egipto até que eu te previna. Pois que Herodes vai procurar o Menino para o mandar matar.' José levantou-se, e, de noite, levou consigo o menino e sua Mãe e fugiu para o Egipto onde ficou até à morte de Herodes."
O terceiro sonho aconteceu quando Herodes morreu. "O Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o menino e sua Mãe e regressa à terra de Israel, pois que morreram os que queriam tirar a vida ao Menino.' José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e regressou à terra de Israel. Mas, informado que Arquelau sucedera a Herodes no trono da Judeia, receou voltar para lá. Avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e fixou-se numa cidade chamada Nazaré."
Sempre me deu que pensar este papel dos sonhos no "amadurecimento" de José. É a sonhar que acredita na virgindade de Maria e decide viver com ela e assumir, perante os homens, o lugar de pai do Menino. É a sonhar que toma resolução de acordar Maria e o Menino e de os levar com ele numa perigosa viagem para o Egipto; é a sonhar que toma a resolução (quantos anos depois?) de voltar a Israel, embora só num quarto sonho posterior (o mais elipticamente referido) o tenha confirmado na decisão, não onírica, de se fixar na Galileiae não na Judeia. Alguns comentadores têm falado na oniromancia de José, que contrasta com os ensinamentos do Eclesiastes que recomendava desconfiança: "Os sonhos têm deitado a perder muita gente e quem neles acreditou sucumbiu" (XXXIV, 1-8). José, pelo contrário, acreditou e, porque acreditou, salvou o Maria e salvou o Menino. A fé dele é como a fé de Abraão: contra toda a evidência.
Por outro lado, é José quem escolhe para o Menino o nome de Jesus e é o primeiro a saber que Jesus virá ao mundo para o resgatar do pecado.
Por fim (se fim pudesse haver emtudo isto), Mateus define José com um único adjectivo: "Justo" ("era um homem justo").
O Padre Bartolomeu do Quental, em 1661, no Sermão sobre São José (aproximável de passagens de Santa Teresa de Ávila), comenta admiravelmente o uso da palavra justo.
"E o que custa a um homem justo ser filho de Deus? O que custou a José. Nada. Diz o Evangelhista que São José, como fosse justo, não quis entregar sua Esposa... não entregar, claro está, que é não fazer nada e, não fazendo nada, foi São José justo... Muito devemos hoje a São José por nos facilitar tanto com o seu exemplo uma coisa tão grande como é ser justo não fazendo nada, e foi justo (...) Os outros Santos ensinam-nos a ser justos obrando; São José é Santo de tão boa graça que nos ensina a ser justos não fazendo."

3. Depois, São José só volta a surgir nos Evangelhos (Lc 2, 41-54) no episódio, precisamente situado aos doze anos de Jesus, em que este, sem que José e Maria se apercebessem, ficou sozinho em Jerusálem, no Templo, em vez de voltar com eles para Nazaré. Quando descobriram que o tinham perdido, voltaram para trás, repetindo uma jornada de marcha. Três dias o procuraram em Jerusálem e três o não acharam. Quando finalmente o encontraram (o Menino entre os Doutores) quem o censorou foi a Mãe: "Meu filho, porque nos fizeste isto? Vê como teu Pai e eu te buscávamos, angustiados.' E Jesus respondeu-lhes: 'Porque me procuravam? Não sabem que tenho que me ocupar dos assuntos do meu Pai?' Mas eles não perceberam as palavras que ele acabara de dIzer."
Mais uma vez, São José é o todo silencioso. Não disse a Maria que a pensou repudiar. Não lhe disse a razão das idas e vindas para o Egipto ou da escolha de Nazaré como morada deles. Não censorou Jesus, embora Maria lhe atribua angústia idêntica à dela. Se os Evangelhos nos reportam algumas (embora escassas) trocas de palavras entre Jesus e sua Mãe, nenhum traço ficou de qualquer palavra entre Jesus e José. Mas é no momento em que Maria lhe fala do pai ("o teu Pai") que Jesus responde citando outro Pai, que não aquele pobre velho.
Velho? Se os apócrifos falam de um José muito mais velho que Maria, os canónicos não dão qualquer indicação sobre a idade. Mas todas as imagens sempre retrataram José como um velho, num lapso demasiado gigantesco para ser inconsciente, como que explicando pela idade a abstinência dele.
Depois, José desaparece numa imensa elipse. Quando morreu? Não sabemos.
Ele que foi o silencioso "como a terra orvalhada" (no belo verso de Claudel, que cito em tradução de Pedro Tamen) fez-se silêncio e ocultação. Que mais bela definição se pode dar do Pai e do seu papel em dia dele, do que chamar-lhe, como Claudel lhe chamou, "Patriarca interior do dia-a-dia"? Termino com antiquíssima oração: "Jesus, José e Maria / Acompanhai-me hoje, agora e sempre / e na hora da agonia."

João Bénard da Costa 18 de março 2005 in Público

quarta-feira, março 16, 2005

Morrer face ao Outono 

1. Esta estranha Primavera de 2005 vai-se infiltrando muito outonal. Em qualquer sentido da palavra, das nuvens e do vento. Olhem bem à volta e reparem nas caras das pessoas.
Já atentaram bem no número de caras que as pessoas agora têm? O número de pessoas é grandessíssimo, eu sei, mas o número de caras é obscenamente maior, porque, nesta estranha Primavera, quase todos andam com várias.
No ano passado, por esta altura, as pessoas andavam com as caras do costume. Não direi com as caras com que nasceram, porque essas, já se sabe, duram umas horas ou uns dias. Também não estou a pensar nas caras com que se fizeram gente e que acabam quando ficam gente feitas. Mas com essa, que vem depois daquela, e que é a cara com que nos habituamos a vê-las, mais ruga menos ruga, mais dente menos dente. Cara com que se começa a parecer a cara dos filhos deles, quando ficam tal pai tal filho. Cara que, às vezes, até se pega à mulher (ou ao marido) que, depois de muitos anos de matrimónio, acontece ficar parecida. Cara que, outras vezes, passa deles para o cão, igual ao dono.
É estranho? Não acho nada.
Uma cara é uma cara e não há assim tantas que não se compreenda alguma economia, sobretudo quando há que baixar o consumo. Estranho é o que está a acontecer agora. Com inquietante dissipação, as pessoas mudam de cara. Experimentam uma, acham que não lhes fica bem, usam outra, depois outra e mais outra. Para mim, que levo tempo a habituar-me a uma cara nova, esta sucessão de caras assusta-me.
Qualquer dia, ainda me acontece o que aconteceu a Malte na Rua Toullier, num 11 de Setembro. Vou por uma rua vazia, e uma mulher deita a cara às mãos, e fica-lhe a cara nas mãos. Que visão será mais horrível? Uma cara do avesso nas mãos de uma mulher? Ou uma cabeça toda nua, esfolada viva, sem cara?
E o Malte, de Rilke para quem não saiba (se não souberem Rilke já não tenho cara para vos aparecer mais), viu isso tudo, em Paris e em Setembro, há um ror de anos. Ver isso em Lisboa, em Março, nos dias que correm, não há cara que aguente. Mas, com o balanço que isto leva, qualquer dia acontece. Pode ser já para a semana. Deus nos acuda, ou aquele rei que era irmão de Valentina Visconti, essa que - diz-se - morreu de desgosto.

2. De desgosto morreu também Niels Jacobsen, um médico islandês magrinho e pálido (eu, pelo menos, imagino-o assim) que, quando era mais magrinho e menos pálido, namorava, na sua gélida ilha, a quente e cúpida Maria Borman (também sou eu quem a imagina assim). A certa altura da vida (porque é que se diz "a certa altura da vida" mesmo para vidas que nunca tiveram qualquer altura?) resolveu fazer uma longa viagen pela Europa, visitar países quentes, a Itália, a Grécia, Chipre. Ela escrevia-lhe, todas as semanas, cartas que sempre começavam por "Meu Amor". Perguntava-lhe se ele se lembrava das tardes outonais em que iam os dois sozinhos passear. Ele respondia-lhe todas as semanas a contar-lhe de povos alegres e de pinhais. Mas, ao fim de seis meses, as cartas deixaram de chegar e as dele ficaram sem resposta.
Escreveu à família, a pedir, por amor de Deus, que lhe dessem novas, mas a família dava-lhe de todos, menos dela. Só sabia que Maria não tinha morrido, pois recebia os jornais de Reykjavik e, das exaustivas necrologias desses tempos, não constava o nome dela.
Pensou nunca mais voltar, tal o medo de a reencontar, quente e cúpida, nos braços de outro. Mas, por fim, regressou, como desde Ulisses ou desde Telémaco, todos regressamos.
A família recebeu-o em festa mas ninguém mencionou o nome de Maria. Ele também não perguntou, por orgulho ou por desespero.
Só que os desesperos em causas de amor ao amor aportam, infalivelmente. Quando Greta Bruble, que ainda era contraparente, veio passar férias de Verão a Reykjavik (e tinha a voz cansada e rolava os "rs" com meiguice e, desta vez, só metade é imaginação minha), o cabelo dela fez-lhe lembrar o cabelo de Maria, a cintura dela fez-lhe lembrar a cintura de Maria. Casaram-se na Primavera, quando as nuvens se confundem com os pântanos gelados e a calma polar amancia as próprias falésias. Niels deixou de se lembrar das tardes outonais.
Depois (e entendam por depois o tempo que quiserem) chegaram uns amigos suecos, médicos como ele, novos como ele, magros como ele, que quiseram visitar os hospitais-modelo atribuídos à Islândia.
Uma dia passaram diante da leprosaria, onde o novo director, que tinha sido aluno do pai de Niels, os recebeu com afeição. Enquanto a mulher do director e Greta preparavam um chá, o director levou-os a visitar as espaçosas salas dos doentes. Havia tanta luz, havia tanta serenidade. Agora sou eu quem vos jura que não inventei nada.
Viram a sala das crianças, a dos homens e, por fim, a das mulheres, que eram cinco. Levantaram-se todas e viraram-lhes as costas, para que os jovens médicos lhes não vissem as caras.
Até que, de repente, Niels parou. Pareceu-lhe reconhecer uma delas, na que estava mais à direita, Maria, a antiga Maria dele. Ainda tentou fugir, mas não pôde suportar a ideia de viver o resto dos seus dias com dúvida tão terrível. Chegou mais perto e eram os cabelos castanhos de Maria, esses cabelos tão crespos que todos os pentes se partiam contra eles. E era a nuca de Maria, essa nuca nervosa que o sofrimento ainda não abatera. E eram os ombros de Maria, esses ombros tão redondos que ela mal conseguia levantar os braços para ir colher cerejas. E eram as ancas de Maria, essas ancas que ele tantas vezes abraçara, quando chegava de mansinho e lhe tapava os olhos com as mãos.
Nesse momento a forma de mulher que se parecia com Maria vacilou e tombou. As outras continuaram de pé, com os fusos de tecer na mão, "como as Parcas quando a morte vai sozinha".
Niels, no regresso, ainda conduziu a carruagem, entre as falésias, sem estremecer e sem deixar que os cavalos saíssem da rota. Mas, logo que chegou a casa, adoeceu. Durante seis meses não se levantou e não disse uma palavra.
E morreu face ao Outono.

3. A história que acabei de contar é o resumo aproximativo de um conto de Giraudoux chamado "L'Ombre sur les Joues".
Giraudoux escreveu-o em 1908, aos vinte e seis anos, num jornal para onde escreveu muitos contos. Só foi publicado oito anos depois da morte dele, em 1952, entre os "écrits de jeunesse", num livro chamado "Les Contes d'un Matin".
"Morreu face ao Outono", traduzi eu. Em francês, Giraudoux escreveu: "Et il mourut vers l'automne", muitíssimo mais bonito. Mas ninguém, no século XX, escreveu melhor francês que Giraudoux (Gide?).
"L'Ombre sur les Joues" contrasta com os outros contos da juventude (da manhã) pelo seu lado trágico. Os comentadores atribuíram-no à influência de Jean-Peter Jacobsen (1847-1885) que Giraudoux, como Rilke, descobriu nos inícios do século passado.
A 1 de Agosto de 1902 a rodin: "Lembro-me muito bem que, há cinco ou seis anos, quando li pela primeira vez um livro inesquecível de um grande poeta dinamarquês (Jean-Peter Jacobsen) só pensei em procurar esse homem e fazer tudo para me tornar digno de ser amigo dele e profeta no coração dele perante todos os que ainda o não tinham encontrado. Mas, no dia seguinte, disseram-me que ele tinha morrido, muito novo, muito sozinho, numa aldeiazinha muito triste, morto pelo clima cruel do seu país sombrio."
Foi por causa de Jacobsen que Rilke visitou, muito mais tarde, a Dinamarca, e consequentemente, foi por causa dele que escreveu "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge".
O livro que Rilke leu foi "Niels Lyhne" (1880), o livro que me levou a mim a ler Rilke, há muitos, muitos anos. Foi Rilke, ou foi Rodin, quem foi profeta de Jacobsen junto de Giraudoux? Disso, já não sei.
Sei é que neste estranho Março de 2005, Jacobsen, Giraudoux e Rilke me apareceram de novo, trazidos por um morto que tinha o mais sereno rosto de morto que já vi. Alguém me disse: "Eu não sou crente, mas acho que é o rosto de um santo." Pensei então em Hjerrgild, o amigo de Niels, e na oração final deste, junto ao corpo agonizante de Niel. "Se eu fosse Deus, preferia conceder a salvação eterna àqueles que morrem sem se converter."
Depois, olhei à volta e reparei nas caras. E lembrei-me de outra frase de "Niels Lyhne", que vem quase a seguir àquela: "Seja como for, é bom ter um Deus a quem dirigir lamentos e orações."
Como o outro Niels (o de Giraudoux) "mourir face à l'automne".

João Bénard da Costa 4 de Março 2005 in Público

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