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segunda-feira, novembro 29, 2004

Malinconia Lusitana  

1. Agora que Franco Maria Ricci se aproximou de Portugal, a revista que há poucos meses deixou de ser dele (embora dele conserve as iniciais efémeras) dedicou, pela primeira vez, um artigo a uma obra de arte alegadamente portuguesa. Para mim, ver os Painéis, ditos de Nuno Gonçalves, nas páginas da minha revista de arte de cabeceira (eu sei que há quem a odeie) espicaçou-me muito mais a luso "auto-estima", do que os nossos feitos no Euro, a escolha de Durão Barroso para a Comissão Europeia ou os discursos presidenciais. Mas não façam muito caso. Eu não sou exemplo para ninguém, a não ser para mim, o que além de egocêntrico é tautológico.
Devo algumas explicações preliminares? É bem certo que as devo. Como recordei em crónica já velhinha ("Do Infeliz Machado à Décima Segunda Noite", PÚBLICO, 2 de Janeiro de 2004), Franco Maria Ricci, esse tal que fez jogo homófono com Ephemeris (leiam em voz alta, e obtêm FMR, iniciais dele e título da revista) entrou em acordo com a Bertrand de Zita Seabra e editou, no Natal de vai fazer um ano, O Presépio Barroco Português, livro magnifico sobretudo dedicado a Machado de Castro.
Ao que li algures, prepara-se para reincidir em co-edições portuguesas e, se não estou em erro, com o celebre Atlas de D. Manuel, que a Bertrand irá lançar sob os seus auspícios.
Enquanto isto, e enquanto se dedica a uma fabulosa série de livros sobre as colecções do Vaticano (já saíram dois, mas ainda faltam dez) abandonou a revista que fundara em 1982 e entregou-a a Marilena Ferrari. Mudou o formato (agora mais alto e, sobretudo, mais largo) e mudou a numeração. O número publicado em Abril-Maio de 2004 foi o último número algarismado à árabe (nº163). A parir de Junho-Julho de 2004, o numeral passou a cursivo. Uno, due, tre. Reminiscência da Revolução Francesa, nova era? Felizmente, nada disso. Como logo explicou a nova directora no seu primeiro editorial, a mudança fez-se sob a sábia égide do Príncipe de Salina: se tudo muda é para que tudo fique na mesma. Aliás "tudo" é um exagero dela. O herói de Lampedusa e de Visconti nunca disse tal coisa, mas limitou-se advogar a mudança de algumas coisas para assegurar a permanência. Para lá do formato e da numeração, ainda não dei por transformações capitais. Ela lá terá as suas razões para chamar ao Príncipe de Salina "maestro de transizione".
A principal mudança de que me dei conta foi mesmo essa a que me referi no inicio e que levou a que o "numero tre", que tem na capa um "mascherone" da decoração escultórica da base do sepulcro de D. Pedro de Toledo, vice-rei de Nápoles de 1532 a 1553, consagre um artigo ao famigeradíssimo políptico do Museu de Arte Antiga.
É certo que já em tempos tinha havido um precioso texto (com preciosas reproduções) sobre os marfins indo-portugueses. Mas a pintura portuguesa - se acaso o foi e lá chegarei - nunca havia tido tais honras. E serão coisas minhas - serão certamente - mas alguns pormenores das gloriosas reproduções (fotografias do português José Pessoa) pareceram-me "mieux que nature", eventualmente tocadas pela graça da vizinhança com o sepulcro do pai de Eleanora de Toledo, essa Eleanora de Bronzino, de mim e de pouca gente mais.

2. Chegou a altura de ordenar estas orgias, como diria Dolmancé.
O artigo, com o mesmo título desta crónica, é do francês Yves Hersant, director de estudos da École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris.
Malinconia Lusitana é bem achado. Já Cioran dizia que, "de um modo geral, se podem distinguir na Europa três formas de tristeza: a russa, a portuguesa e a húngara". E se ele tem razão, raras vezes essa tristeza (ou essa malinconia", o que não é a mesma coisa mas anda lá perto) foi tão bem expressa como pelo autor dos Painéis. É mesmo essa a principal razão que me leva a acreditar que eles foram mesmo pintados por um português, sensivelmente contemporâneo daquele que inventou o "nunca tão tristes vistes / outros nenhuns por ninguém".
Já estou a arranjar lenha para me queimar, ou para ficar mais apainelado. Tocar nos Painéis, desde que foram descobertos em 1882, no convento de São Vicente de Fora, em Lisboa, ou, pelo menos, desde que José de Figueiredo, em 1910, escreveu um livro sobre eles, nunca deu saúde a ninguém e arruinou muitas reputações. Num caso até, levou ao suicídio um historiador incauto, que ficou tão triunfante quando julgou ter descoberto um manuscrito que lhe confirmava as teses, que nem sequer reparou que o dito era uma grosseira falsificação, armadilha de rivais que, conhecendo-o, sabiam que ele ia morder o isco. Quando a história se descobriu, impotente para provar a boa fé, preferiu meter uma bala na cabeça a viver o resto dos seus dias com a fama de troca-tintas. Era nos anos 20, quando a honra ainda tinha valor.
Não sei se Yves Hersant sabia desta e doutras histórias (a última tocou de perto o filho de uma amiga minha). Mas a verdade é que decidiu ser muito cauto.
Para entrar na "guerra" (guerra dos cem anos, sem nenhuma Joana d'Arc) adoptou duas posições. Primeira posição: o leitor não é português, o nome de Nuno Gonçalves não lhe diz coisíssima nenhuma e visita pela primeira vez o Museu das Janelas Verdes. Só há, para esse visitante, uma conclusão possível:"o políptico é uma das mais complexas figurações herdadas do Renascimento. Seguem-se ditirambos e algumas observações pertinentes. Relevo a que o faz evocar Alberti e o tratado De Pictura, publicado alguns anos antes da composição do retábulo (a acreditar que este foi pintado entre 1446-48). Hersant recorda-nos que Alberti defendeu, como primeira finalidade da pintura, "dar presenças aos ausentes", ou "fazer ressurgir os mortos aos olhos dos vivos". Além disso, deve despertar-nos os afectos, mostrar acções que nos comovam ou que nos aprazentem, contar uma historia. Hersant vê bem quando diz: "Perante os painéis de Lisboa, a historia escapa-nos. Provocam, certamente, emoções, já que, em termos albertianos, os homens que foram pintados manifestam intensamente o movimento próprio das suas almas. Talvez nos façam sentir com intensidade a presença dos ausentes, de tal modo o pintor observou escrupulosamente a natureza. Mas o essencial, ou o que Alberti tinha por essencial, não está lá, nega-se com obstinação".
Aqui chegado (bem chegado, a meu ver) muda de posição.
Segunda posição: o leitor (ou o espectador) é português. Sendo-o, sorrirá desdenhosamente do acima transcrito. Não é historia o que falta aos Painéis. Pelo contrário, sobra-lhes história, o excesso de histórias acerca deles. Já nos explicaram tudo e o contrario de tudo; já nos deram dois Nunos Gonçalves; já nos juraram que não houve Nuno Gonçalves nenhum; já nos traçaram histórias diversíssimas; já nos juraram que o santo é S. Vicente ou é o Infante Santo, ou é outro, ou é mesmo outra; já os expuseram como dois trípticos ou em disposição políptica; para muitos, falta um sétimo quadro (painel central); para outros faltam quatro, senão mesmo nove. Já ouvimos dizer que foram pintados antes de 1440 e cerca de 1460. Contra as teses "vicentinas" e "fernandistas", já houve a acutilante proposta de Vitorino Magalhães Godinho (1959) segundo o qual os Painéis representariam a passagem de poder do Infante D. Pedro (regente do reino) ao jovem rei D. Afonso V, em 1446. Mas também já se chamou à hipótese Godinho, hipótese marxista encapotada, tornando o suposto ou real Nuno Gonçalves num Fernão Lopes da pintura, cronista da burguesia contra os senhores feudais.
Após se auto-flagelar com as hipotéticas reacções portuguesas, Hersant põe-se numa terceira posição. Façam como eu. Ou "sejam como eu". "Suficientemente estrangeiro para que qualquer das ideologias nacionais não possa prevalecer sobre a análise estética; mas suficientemente português para que Gonçalves me atinja no mais profundo de mim próprio". Tanto se lhe dá como se lhe faz que um dado personagem seja X ou outro Y. O que lhe interessa, o que o comove, é que no Políptico (se for Políptico) "emerge uma consciência (...) consciência impossível na Idade Média". O Políptico é uma maravilha "porque interroga ao mesmo tempo a identidade individual e a identidade de uma nação". Cada figura está separada de todas as outras "por uma imperceptível película", "mas, ao mesmo tempo, "no espaço conceptual concebido pelo pintor, cada um não é mais do que elemento de um corpo social que, a um nível superior, também toma consciência".
Daí vai desaguar num texto antigo doutro francês (René Huyghe) e por um afluente na "malinconia lusitana". Como alguns terão adivinhado, chega a mau porto, com a sacrossanta invocação da "intraduzível saudade".


3. Fica-me pouco espaço e pouco tempo para desordenar a orgia, o que não é propriamente um mal.
Quanto a mim - para me colocar na terceira posição de Hersant - ainda nada nem ninguém me convenceu tanto como Jorge de Sena, num luminoso ensaio de 1963, publicado em São Paulo, na Revista de História. Sabendo perfeitamente que ousava muito, Jorge de Sena limitou-se a dizer que só sabemos que não sabemos nada. Desmonta a autoria de Nuno Gonçalves e combate o "crime" (a palavra é dele) de retirar os Painéis à arte portuguesa. E conclui "O centro deles sempre estará na Flandres sem que, por isso, os painéis deixem de ser da melhor pintura do século XV, nem deixem de ser tesouros artísticos, iconograficamente portugueses, que Portugal possui".
Passaram-se mais de 40 anos sobre este artigo e nunca o vi convincentemente refutado. Mas, folheando as páginas da FMR, basta-me a mesma certeza que Sena tinha. E Sena sabia, como eu sei, que ao falar-se da "melhor pintura do século XV" se está a falar de Van Eyck e de Van der Weyden, de Uccello e de Antonello. Basta ou não basta?

João Bénard da Costa 26 de Novembro 2004 in Público


domingo, novembro 21, 2004

O Segredo da Porta Fechada  

1. Em tempos que já lá vão, um primo meu, que se fosse vivo tinha feito anos ontem, contou-me uma história bem típica dos "efeitos do real" nos primórdios das sessões cinematográficas por esse Portugal profundo.
Numa vila alentejana, passou um filme que tinha como protagonista uma actriz de pernas bem bonitas, que, a certa altura, subia umas íngremes escadas. Um espectador mais atrevido resolveu tentar a sorte. À segunda visão, comprou duas plateias na primeira fila. Ocupou uma e, quando chegou a tal cena, estiraçou-se ao comprido e, de cabeça bem baixa, olhou para cima, tentando uma boa espreitadela para os pedaços de pernas escondidos pelas saias da rapariga. Segundo o meu primo - que quando contava um conto acrescentava um ponto - não se deu por vencido. Sempre que o filme passou, lá estava ele, esparramado, à espera da visão deleitosa. Mas "a malandra" tinha artes e ele nunca viu mais do que vira da primeira vez, do alto do balcão.
Graças a Deus, que não se deve invocar em vão, a vida não é como os filmes. Da última vez que fui a Roma - e foi na semana passada, mas não vou invocar em vão outros altos nomes -, consegui mesmo espreitar debaixo das saias da cidade e ver algumas coisas que esta encobre ao comum dos mortais. Não se tratou de ver pernas. Tratou-se de ver Piranesi.

2. Indirectamente, devo o apetite ao Vasco Pulido Valente. Aconteceu que este Verão, antes dele ir gozar férias romanas, me perguntou onde é que podia ver Piranesi. Fiquei um bocado perplexo. Do célebre arquitecto e gravador do século XVIII (1720-1778) só conhecia algumas gravuras, ou de reproduções, ou de as ter visto numa já longínqua exposição lisboeta. Tinha uma vaga ideia de ter folheado, uma vez, um catálogo "raisonné" de Focillon, o autor onde mais tinha aprendido sobre ele. Era muito provável, se o Vasco se fosse meter nos arquivos do Vaticano ou da Regia Calcografia, que encontrasse umas centenas de gravuras, mas, como é próprio da espécie, também as encontraria em Londres ou em Paris, em Madrid ou em Sevilha. Ir a Roma para ver Piranesi? Pareceu-me bizarro.
Mas já que não há nada como realmente, fui tirar teimas onde estas se desteimam. E foi assim que descobri, com esta idade e com esta doença, que em Roma existem mesmo os únicos edifícios de um homem que, se toda a vida se apresentou como arquitecto, nunca construiu mais nada. São eles a sede do Priorado de Malta e a igreja contígua de Santa Maria dell'Aventino, obras de 1765, ou seja da plena maturidade de Piranesi.
Quando o Vasco Pulido Valente voltou, falei-lhe disso. Mas não era isso que ele procurava nem vira. Como descobri depois, dificilmente as podia ter visto. A Ordem de Malta não abre ao público nem os seus recantos, nem os seus recintos. Os guias turísticos, se os referem, não mandam espreitar debaixo das saias, mas mandam espreitar pelo buraco da fechadura. A quem passar pela Piazza dei Cavalieri di Malta, para além do parque que coroa o Aventino, e na extremidade ocidental deste, aconselham que se encoste bem um olho ao buraco da fechadura do portão, para ver, muito em frente, ao fundo de uma longa álea de buxo, a cúpula de S. Pedro. Há mesmo guias que citam essa espreitadela como uma das curiosidades de Roma ou um dos gozos celestiais da "Roma secreta".

3. A ocasião faz o ladrão.
Não direi mais, mas decidi-me a não desaproveitar a "ocasião" (única) e a meter cunhas poderosas (daqui lhes agradeço) para ter direito a mais do que a um buraco de fechadura. Estava eu posto em sossego (sossego muito relativo, como é de ver) diante da Fontana di Trevi, quando me tocou o telemóvel. A Ordem de Malta aceitara o meu pedido e a visita estava marcada para as três e meia da tarde. Telefonei a Paolo Pinamonti, meu companheiro de viagem e que também não conhecia os domínios de Piranesi, e dei-lhe a informação. Uns dez minutos antes das tais três e meia da tarde (e depois chamem-me atrasado) desembarcámos de um táxi na Praça dos Cavaleiros, onde já nos esperava o homem das chaves.
A praça, que só vi com mais atenção depois, já é um local singularíssimo. Tem qualquer coisa de feral, para falar à Soares de Passos, e bem podia ser, com os ciprestes ao fundo, um largo de cemitério. Obeliscos, troféus e estelas, ou não estivéssemos já em pleno mundo piranesiano. Um alto muro do lado direito (do lado do Tibre) não deixa ver mais nada. Mas para nós se abriu o portão do tal buraco da fechadura, e o lajedo da praça deu lugar um edifício austero e comprido, encimado por um "torricino" cilíndrico. Percorrida a vastidão, chegámos diante da fachada da igreja consagrada a Nossa Senhora. Esta, com pórtico triangular e imenso óculo redondo, é uma síntese poderosíssima do estilo piranesiano. Imaculadamente branca, parece também imaculadamente simples, numa volumetria que recapitula o classicismo como Piranesi o entendeu. Mas se parece, não o é. Quando a observamos mais atentamente, torna-se evidente uma simbologia críptica que se, por um lado, recapitula muito da heráldica dos Hospitalares (as oito cruzes, as oito esferas, as citações romanas, egípcias, etruscas), por outro escapa a qualquer leitura unívoca. Estamos, obviamente, fora do mundo do barroco romano e jesuítico (que Piranesi tanto combateu), fora da preocupação com as perspectivas e com o claro-escuro, mas estamos também num mundo demasiado nocturno para absorver tanta luz e demasiado críptico para se pretender homenagem à Razão. A simbologia explícita é a simbologia da morte, com a imagem do sarcófago em evidência.
Este sentimento acresce quando se entra na igreja. Uma nave central imensa e despojadíssima, mas um festim escultórico no altar-mor, em honra de São Basílio, elevado ao céu por dois anjos fulgurantes. À primeira vista, nada de mais irrealista do que a posição dos corpos desses anjos, dos quais demoramos a perceber onde começam e acabam os braços e as pernas. Mas, com mais atenção, percebe-se que nada há ali de fantástico ou de irreal e que as torções, aparentemente inverosímeis, correspondem ao esforço de corpos que suportam o gigantesco santo e o elevam. Sem dúvida, é uma cenografia álacre, mas sem dúvida é uma cenografia pulcra. Tanto se pode sustentar que é a mais onírica e demencial representação de uma "ressurreição da carne", como que é a mais ordenada e elaborada figuração dela. De um lado (a estátua vista da ábside, atrás do altar), tudo é geometria e rigor. Do outro, tudo é alucinação e vertigem.
Pouco antes desta obra, compôs Piranesi as suas "Invenzioni di Carceri" (ou as suas "Prisões"), onde muitos vêem o cume da sua arte. Para comentar essa série de famosas gravuras, o termo "labirinto" tem sido o mais recorrentemente utilizado. Labiríntico é o prodigioso jardim que rodeia a igreja e o Priorado, unindo os dois edifícios. Mas labiríntica é também a imagem que convém à fusão de formas e símbolos que neste conjunto arquitectónico tem a sua apoteose. Como escreveu Manfredo Tafuri: "o recto e o verso do altar do Priorado não são separáveis. A esfera, que lhe serve de suporte, na inflexibilidade da sua geometria, junta as duas visões opostas. Mas, ao mesmo tempo, reenviando o observador para o dédalo dos símbolos e das formas enclavinhadas que parecem conduzir-nos ao 'triunfo da ausência', recordam-nos que dos labirintos não se sai nunca. Só nos resta percorrer e voltar a percorrer aquele labirinto numa análise interminável. Operação 'heróica' mas igualmente 'fúnebre', dado que o espaço que se encontra no percurso pelos caminhos é um espaço povoado de espectros" (a igreja era também o futuro sepulcro do Papa Rezzonico, Clemente XIII) "que se agitam tão mais convulsivamente quanto mais nos aparecem imóveis. O labirinto dos 'Cárceres' encarnou no complexo arquitectónico e escultórico do Priorado. Para sair dele, a única possibilidade é a de um 'salto', fruto de uma operação de ruptura. Ruptura que Piranesi exorcizou, mas que ali também evocou como temível mas inelutável destino."

4. "Salto", diz-se no texto transcrito. No fim da visita, e, já no interior do palácio, após a impressionante ascensão à sala onde a Ordem de Malta elege os seus grão-mestres, desde que foi expulsa do Mediterrâneo Oriental e da ilha que lhe deu o nome, vê-se finalmente a impressionante vista sobre o Vaticano e S. Pedro, com o Tibre cá em baixo. O "salto" seria o "salto" entre a teologia romana da Capadócia, de S. Basílio a S. Gregório de Nissa (aliás irmãos) à do século dos papas Rezzonico e Ganganelli?
Na fachada do edifício está escrita a palavra FERT, objecto de duas interpretações. Ou recorda a heróica resistência dos Cavaleiros de Malta aos turcos em Rodes ("Fortitudo Eius Rhodum Tenuit"), ou, terceira pessoa do singular do verbo latino, é o imperativo que nos manda "conduzir, resistir, assumir a responsabilidade de".
Uma igreja no limite de um parque, quase suspensa de um abismo; uma fachada que não se impõe e está separada de uma praça, "virando as costas" a S. Pedro, num edifício que simultaneamente ousa fazer-lhe face e torná-lo única perspectiva (visível até de um buraco de fechadura); um complexo arquitectónico em forma de serpente sobre o monte que os romanos conheciam pelo nome de "mons Serpentarius"; o local onde na Roma imperial se purificavam as armas do exército romano; foi sobre todas estas memórias e foi sobre todos estes símbolos que Piranesi assumiu, uma vez mais, que todas as formas são formas de "contaminação" e que nenhum símbolo ou nenhuma alegoria é símbolo ou alegoria pura.
No último olhar que lancei ao Priorado, a imagem que retive, dominando a igreja, foi a da águia bifronte. Mas não é só a águia, como não são só as serpentes, ou as meias-luas, ou as esfinges (para me limitar, terminando, aos símbolos mais recorrentes) que tem dupla cabeça nesta morada necrófila e vital. Tudo é duplo, tudo é obstinada exaltação do duplo.
Quem vê o que não deve deve o que não vê.

João Bénard da Costa 19 de Novembro 2004 in Publico

domingo, novembro 07, 2004

Recordações Imaginárias: o Tempo da Cabala  

1 - O termo cabala surgiu no léxico político português recente com Ferro Rodrigues, quando este, na sequência da prisão de Paulo Pedroso e de rumores que também o incriminavam (o famoso "e o Ferrinho também não escapa", atribuído a um desembargador folgazão), veio a terreiro avisar que estava em curso uma cabala contra o Partido Socialista, de que era então secretário-geral.
Houve quem o acreditasse, houve quem o ridicularizasse. O que é certo é que, com cabala ou sem cabala, gerou-se, com o tempo, um vasto consenso sobre o "erro monumental" de uma tal acusação, que estaria na base da sua futura desgraça política. Erro dele? Pelo menos, má fortuna não convém dizer, pois que a invocação das casualidades da sorte (ou da deusa da cornucópia e do leme) já demasiado se aproxima de sentidos cabalísticos.
Recentemente, a palavra voltou a dar que falar, quando o ministro Gomes da Silva citou uma cabala urdida pelo PÚBLICO, "Expresso" e Marcello Rebelo de Sousa contra o Governo a que ele pertence. Não vou glosar o tema da "cabala involuntária" que já lhe valeu os mofos de gregos e troianos. Pode-se é agourar (outro vocábulo assaz suspeito) que a expressão lhe vai ficar colada à pele e lhe será recordada de cada vez que abrir a boca que o ofício o impede de cerrar. Tão depressa, mais ninguém se atreverá a falar de cabalas, ou só o fará com superioridade irónica.
Em artigo publicado neste jornal (PÚBLICO, 30 de Outubro de 2004) Helena Matos, muito racionalista, diz-nos: "Venham elas donde vierem (...) as histórias das cabalas produzem em mim sempre o mesmo efeito: nos primeiros minutos começo a olhar para a parede mais próxima na esperança de que a mesma caia e, quem sabe, engula o meu interlocutor. Depois, consoante as horas a que tais relatos ocorrem, ora tenho de reprimir uns óbvios bocejos, ora começo a ser atacada por uma espécie de nervoso miudinho." Convenhamos que a esperança e a reacção mais nervosa têm o seu quê de "cabalístico", pelo menos na ampla acepção que a autora depois dá ao termo, quando passa do significado mais comum ("negociação secreta e artificiosa", "intriga de grupo, partido ou fracção secretamente conluiados para determinado fim") para sentidos de outro calibre, apontando "sociedades secretas, símbolos enigmáticos e forças obscuras" em luta pelo poder. Paredes a cair, lembram-me irresistivelmente o Livro de Daniel, que não é propriamente o melhor exemplo que se pode dar do uso do livro arbítrio, ou, em termos de Helena Matos, dos resultados das responsabilidades dos nossos actos.
Não me move, contudo, qualquer desejo de embirrar com a minha colega colunista. O que me surpreendeu foi ver, metidos no mesmo saco, dislates ministeriais e um suposto ou real "espelho do tempo", traduzido pela atracção provocada por códigos Da Vinci e quejandos, que confirmariam, nos adultos, a "tendência que os livros juvenis de Harry Potter vinham anunciando".

2 - Como se sabe (não há nada melhor do que ensinar o padre-nosso ao vigário) cabala provém do termo hebraico "kabbalah", que literalmente, segundo me ensinaram, quer dizer "ensino oculto". Historicamente, está conotado com uma interpretação mística, alegórica e esotérica do Antigo Testamento, que floresceu sobretudo a partir do século XII. Mas também há quem diga que o termo pode ser traduzido por "tradição", pois que as revelações cabalísticas mais não fariam do que permitir a transmissão da mensagem não escrita, comunicada pelo Senhor Iavé a Adão e a Moisés.
Inspiração maior para esta doutrina (que remontaria ao século I da nossa era) é o Livro de Daniel, o mais visionário dos textos da Tora e, talvez por isso, o que mais influenciou (indirectamente) o Apocalipse de S. João.
As visões de Ezequiel apontam um dos mundos mais fantásticos da literatura da Antiguidade, sobretudo na descrição dos quatro animais do carro de Iavé; na "sarabanda cultual" do Templo, com seus monstros e ídolos; na célebre descrição das ossadas renascidas; ou na profecia do Tempo futuro, donde brotaria o rio de ouro.
"Foi no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto, quando me achava entre os deportados, nas margens do rio Kebar, que o céu se abriu e eu presenciei as visões divinas. No dia quinto do mês - era o quinto ano do exílio do rei Jojaquim - a palavra de Iavé foi ouvida pelo sacerdote Ezequiel, filho de Buzi, no país dos caldeus, nas margens do rio Kebar."
"Antes de ouvir a voz de Iavé ('Filho do homem, de pé, que Eu te vou falar') Ezequiel teve a visão do Carro do Senhor, conduzido por quatro animais de forma humana. Tinham quatro faces e quatro asas, cada um (...)." "Tinham uma face de homem e todos os quatro tinham à direita uma face de leão e todos os quatro tinham à esquerda uma face de touro e todos os quatro tinham uma face de águia (...)." "As rodas do carro pareciam ter o brilho do crisólito (...) Quando os animais avançavam, as rodas avançavam junto a eles e, quando os animais se erguiam da terra, as rodas erguiam-se com eles. Para onde o Espírito os guiava, as rodas dirigiam-se também e também, como eles, se elevavam, pois que o espírito do animal estava em as rodas (...). E o que estava sobre as cabeças do animal assemelhava-se a uma abóbada resplandecente como o cristal (...)."
"E, por cima da abóbada que estava sobre as cabeças deles, havia qualquer coisa que se assemelhava a uma pedra de safira, em forma de trono e sobre esta forma de trono, ainda mais por cima, havia um ser com aparência humana. E vi que Ele brilhava como brilha o mínio e junto a ele havia algo como se fosse fogo, envolvendo-o completamente desde o que pareciam ser os seus rins, até abaixo deles. E esse fogo assemelhava-se ao arco que se vê no céu nos dias de chuva (...). Qualquer coisa que tinha o aspecto da glória de Iavé."
Não é muito de espantar que uma tal visão tenha servido de tudo e para tudo. O leão, o touro, a águia e a figura humana foram, no cristianismo, os símbolos dos quatro evangelistas. O carro de fogo, a "merkava" da Kabala, bem como o divino trono, foram a visão prometida aos iluminados, os únicos a poder aceder aos dez números divinos de Deus Criador, através das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Na sua globalidade, esses eram os "trinta e dois caminhos para a sabedoria divina".

3 - Se me demorei no primeiro capítulo do livro de Ezequiel, foi mais por prazer estético do que por intenção programática. O carro atravessou-se-me no caminho da Kabala e não resisti. Se o não travasse (releve-se-me a impenitência), conhecendo-me como me conheço, não sei até onde iria, até porque a visão continua alguns capítulos adiante.
Mas uma tal torrente de misticismo, de que se podiam dar múltiplos e mais esotéricos desenlaces (quisesse eu continuar a resumir a história da Kabala), não exclui, antes inclui (ao contrário do que parece pensar Helena Reis, na sua diatribe contra os ocultismos) duas advertências solenes à responsabilidade pessoal (capítulos XIV e XVIII do mesmo Livro). Ezequiel foi também o primeiro a sustentar, nesses capítulos, que a salvação do homem, ou a sua perdição, não dependem nem dos antepassados, nem dos contemporâneos, nem mesmo dos erros passados. Se o indivíduo (passe o modernismo) agir rectamente, Iavé o salvará e salvará os homens que o seguirem. No pecado e na redenção, só o homem é responsável pelos seus actos, o que já levou tantos comentadores a considerarem-no o primeiro grande individualista da tradição bíblica.
"Se os pais comerem das uvas verdes, os dentes dos filhos rangerão", era provérbio antigo de Israel. Iavé diz a Ezequiel: "Pela tua vida, oráculo do Senhor Iavé, nunca mais repitas este provérbio." "Todas as vidas contam para Mim, tanto a vida do pai como a vida do filho. Só aquele que pecou morrerá."
"Aquele que for justo, que respeitar o direito e a justiça, que não comer no alto das montanhas, que não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel, que não conspurcar a mulher do próximo, que não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza, que não oprimir ninguém, que restituir o que tirou, que não cometer rapinas, que der de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, que não emprestar usurariamente, que não cobrar juros, que desviar a mão do mal, que der testemunho verídico perante os homens, que se conduzir segundo a minha lei e observar os meus costumes agindo segundo a verdade, esse homem é verdadeiramente justo, oráculo de Iavé."
Ignoro se a Kabala desenvolveu esta linha, numa das passagens do Antigo Testamento que mais anuncia o Novo. Não me admiraria nada se o tivesse feito.
É que na história da humanidade, ao contrário do que tantos pensam, só a razão desacompanhada (não estou a falar da razão pura) gerou monstros e gerou a irracionalidade que tanto quis combater. Os dois mestres supremos dos séculos passados - Freud e Marx - dão-nos exemplos abundantes e aqui - ao que julgo - estou de acordo com Helena Matos.
Mas, ao contrário do que ela parece acreditar, são as boas histórias que fazem a História. O mal dos Códigos em moda é serem más histórias. De outras, igualmente "cabalísticas", que vão dos poemas homéricos aos Cavaleiros da Távola Redonda, da "Divina Comédia" aos "Lusíadas", de Proust a Beckett, nunca veio mal ao mundo e pelo contrário veio muito bem. Eu diria, veio o melhor, mas isso já é outra conversa.
Ou, como um dia escreveu George Steiner: "Não há, não pode haver, nesta terra, uma comunidade, por mais rudimentares que sejam os seus meios materiais (...), sem essas narrativas da recordação imaginada a que chamamos 'mito' e 'poesia'. Há, de facto, verdade na equação e no axioma; mas é uma verdade menor."
A Cabala - a única que me interessa - é, também, mito e poesia. "Narrativa da recordação imaginária." Verdade maior.

P.S. - Na próxima semana, vou voltar a fazer uma das minhas "gazetas". Reencontramo-nos a 19 de Novembro.

João Bénard da Costa 5 de Novembro 2004 in Público

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