sábado, julho 31, 2004
O Protagonista Ausente
1. Quem leu as minhas duas últimas crónicas (PÚBLICO, 16 de Julho, PÚBLICO, 23 de Julho) sabe já que fui a Génova para ver Rubens e, sobretudo, a exposição L'Età di Rubens.
Eu sabia, à partida, que não ia ver uma grande exposição monográfica, uma dessas tantas dedicadas ao pintor. Se fosse esse o meu objectivo, melhor seria viajar uns meses antes e ir até Lille, onde, neste mesmo ano, se reuniram muito mais obras dele. Mas sabia que ia ver os palácios que marcaram Rubens para o resto da vida (os róis de Rubens) e sabia que ia ver - no Palazzo Ducale - os Rubens encomendados pela riquíssima oligarquia genovesa, a primeira a genuflectir perante o génio do pintor. A maior parte desses Rubens partiram de Génova há muito tempo e estão espalhados pelos museus da Europa e da América. Se, agora, boa parte deles voltaram a Génova, foi para orientar um centro mais construído em torno do seu fantasma do que da sua presença. O poder de Génova - poder imenso nos séculos XVI e XVII - é inseparável da imagem que Rubens deu desse poder, quer através do famoso livro que dedicou à Strada Nuova, de que já aqui falei, quer através dos fabulosos retratos dos grandes senhores e das grandes senhoras de "La Superba", retratos largamente devedores de Tiziano, mas onde a grande pintura veneziana se funde com a pintura flamenga para criar uma nova majestade e uma convulsão nova.
"Uma cultura artística europeia" - escreveu Argan - "no século em que a Europa politica moderna se fundou" (século XVII, explico eu) "só podia nascer da confluência de duas grandes tradições: a italiana e a flamenga. O ponto de convergência foi Génova, a cidade que, após a vitória de Lepanto, quando o tráfico mediterrânico se libertou da ameaça turca, assumiu uma importância económica e politica verdadeiramente europeia". Capital Europeia da Cultura, no preciso ano em que se comemoram os 400 anos da primeira visita de Rubens a Génova, os promotores das festividades souberam, argutamente, voltar-se para Rubens, a fim de redimensionar a cidade nessa perspectiva, entendida, agora, ao sabor dos ventos que sopram e confiando ao tempo de Rubens essa viagem de ida sem volta da Europa do século XVII à Europa de hoje.
Não é por acaso que, à saída do Palazzo Ducale, o visitante depara com uma transcrição, em enormes caracteres, de um artigo de um tal Armando Torno (Corriere della Sera, 10 de Março) em que se recorda o grego Simónides e a célebre passagem em que se diz que a cidade é mestra do homem. Acrescentam-se depois estas linhas sintomáticas: "Um passeio na via Garibaldi equivale a uma viagem na arte e na beleza. Basta caminhar alguns minutos nessa rua para compreender o que é a Europa". Dêem o devido desconto aos lugares-comuns. Não se compreende (eu pelo menos não compreendo) o que é a Europa, mas compreende-se o que foi a Europa, ao tempo em que o maior dos seus pintores foi também um dos maiores dos seus diplomatas e se moveu incessantemente entre a Flandres natal, a Itália dos papas, dos doges e dos Gonzaga de Mântua, a Espanha dos Filipes e a França de Luís XIII, aprendendo com todos e a todos fecundando.
2. Um pouco de cronologia nisto, por favor. Era chegado o tempo dela e não vos faço nenhum favor.
Para poupar tempo e espaço, refreio-me sobre as origens familiares de Rubens e as reviravoltas religiosas da família. Saibam apenas que o pai de Rubens só escapou à fogueira, por adultério e bruxedo (amores com a Princesa Ana da Saxónia, mulher de Guilherme o Taciturno) porque a própria mãe de Rubens jurou, sobre a Bíblia, pela vida dela e dos quatro filhos, que o marido jamais lhe fora infiel. Marido que foi huguenote e depois católico, conforme quem mandava na Flandres e o poder dos espanhóis nela. Mas diz-se que o catolicíssimo filho, futuro servidor do Papa e de majestades fidelíssimas, lia Lutero às escondidas e sempre foi atraído pelas ciências ocultas.
Aos 23 anos (Rubens nasceu em Siegen em 1577), já com alguma reputação como pintor, fez a primeira viagem a Itália, onde Vincenzo I Gonzaga, duque de Mântua, o contratou para a sua corte. Mantegna, os maneiristas, o Giulio Romano do Palazzo del Te, foram os mestres, pacíficos ou frenéticos, da sua exuberante teatralidade.
Oito anos viveu Rubens em Itália, que percorreu de lés a lés. Em 1603, o Gonzaga confia-lhe a primeira missão diplomática. À frente de um largo séquito, foi a Madrid presentear Filipe III e conquistar as boas graças do Duque de Lerma. Foi no regresso que entrou em Itália por Génova, tinha 27 anos. Ambrogio Spinola e Nicola Pallavicino, dois dos mais magníficos entre os magníficos de Génova, amaram-no e disputaram-no, o que lhe trouxe invejas e ciúmes, de que sempre soube desembaraçar-se em proveito próprio. Foi nesse ano (ou numa segunda estada, em 1605) que recebeu a primeira encomenda muito importante: o retábulo do altar-mor da Igreja de Jesus, representando A Circuncisão. É certamente a mais operática das circuncisões jamais pintadas, com a espectacular divisão entre a cena bíblica (uma Nossa Senhora ainda rafaelesca, desviando os olhos e pousando a mão no ombro) e o céu à Giulio Romano, com miríades de anjos e os tão poderosos efeitos de claro-escuro.
Da mesma época, e para a mesma Igreja, são Os Milagres do Beato Inácio de Loiola, não menos teatrais e pré-barrocos.
Mas são os únicos Rubens que em Génova nunca mudaram e nunca saíram da igreja para onde foram pintados. Eles o confirmaram como favorito da urbe e da Soberba e parecem ter determinado a longa série de encomendas (1606-1607) que se traduziram em dezassete retratos da nobreza velha e da nobreza nova da cidade, dos quais se conservam doze.
O mais célebre - agora espalhado por toda a cidade como marca emblemática da Capital da Cultura - é o de Brigida Spinola Doria, actualmente na National Gallery de Washington. Os publicitários retiveram-lhe os olhos e o sorriso, mas o mais espantoso é o vestido de seda, captado em "plano americano" e que foi provavelmente a veste nupcial da mulher de Giacomo Doria, retratada aos 22 anos.
"Il Signor Pietro Paulo Rubens, gentilluomo fiamingo et eccellentissimo Pittore e molto amico mio", como o apresentava Paolo Agostino Spinola, primo e cunhado da imponente Brigida, assinou, nesse retrato, uma das suas obras-primas (em todo o sentido da palavra) reforçando a representação (em exteriores, com a presença de uma arquitectura clássica no fundo) e prolongando a altura de Brigida através de uma cortina encarnada escuríssima que esvoaça entre as duas colunas que a enquadram. As mãos compridíssimas e branquíssimas, o leque na mão direita, e a entufadíssima gola de rendas, contrastam com o rosto nubente (quase tímido) tornando aquela mulher numa "montagna di stoffa", salpicada de jóias, nascida para a luz e feita de luz, ser de prata, emanador de tal luxo e tal calma que a volúpia só decorre do excesso delas.
Mas é esse o meu retrato favorito? Ou é o de Gian Carlo Doria, o marido, retrato equestre onde tudo voa, desde o cavalo de patas no ar e cauda imensa, até ao cão que, na mesma posição, galopa tanto como o cavalo, à frente dele. Árvores, montada, cão, céu, tudo voa, tudo está em pé, no ar, menos o retratado, insolitamente calmo, como se nenhum movimento deste mundo o pudesse alterar. E esse é outro dos raros Rubens que a Génova pertence e em Génova ficou (no Palazzo Spinola).
Os outros vieram de Bucareste ou de Dublin, de Dorset ou de Karlruhe, ou de colecções particulares. Mas percorrendo-lhes os rostos e os apelidos, é a imagem de Génova que nos trazem, tal como nela mesma a eternidade a fixou, no auge do seu poder político e humano.
3. Em 1608, aos 31 anos, Rubens regressou a Antuérpia e nunca mais voltou nem a Génova nem a Itália.
Mas encomendas de Génova continuaram a chegar-lhe ao longo da vida. Dediquei a última crónica à mais extraordinária, a Juno e Argos. Mas em Génova se reuniram agora, porque para Génova foram pintadas, telas tão célebres como o Lamento de Vénus sobre a morte de Adónis (Ah, esse corpo feminino que levantando a túnica de Adónis vê, do corpo dele, a única parte que o espectador não vê!), o Hércules e Omfale do Louvre, A Serpente de Bronze da National Gallery de Londres, a Djanira ou o Hércules no Jardim das Hespérides da Sabauda de Turim, etc, etc.
Quadros de diversíssimas épocas, doutros Rubens doutras eras, mas que, reunidos em Génova, após uma diáspora de séculos, parecem autorizados pelos retratos majestáticos e tizianescos do inicio, como se nestes começasse a tempestade de cores e de corpos que chegaria nos anos da maturidade.
Centrados no Palazzo Ducale ou ainda dispersos por outros palácios, são 41 os Rubens reunidos nesta primavera genovesa. Em torno deles, os maneiristas de Génova, Van Dyck, que lhe sucedeu como pintor das doges, Caravaggio de quem, segundo a lenda, Rubens teria trazido de Roma o misterioso Martírio de Santa Úrsula, Carracci, Dominichino e tantos, tantos outros.
Nem se pode dizer que a maior presença caiba ao pintor, cabendo embora ao tempo dele. Mas, da história de Génova, tal como a li nos "róis", tal como a vi nos palácios e nos jardins, Rubens é o grande protagonista ou volta a ser o grande protagonista de uma história que se prolonga até quase vinte e cinco anos depois da morte dele (1640). Protagonista ausente (tão pouco tempo viveu em Génova, tão poucos quadros habitam Génova como morada fixa) mas único construtor da imagem de Génova e da visão de Génova. Sem ele, o imaginário de Génova e a transfiguração de Génova não existiriam, nem no tempo nem no espaço
Quando pintou para a Torre de la Parada de Filipe IV, as Metamorfoses de Ovídio, diz-se que pressentiu a morte, ao traçar a metamorfose da Via Láctea. Segundo o seu secretário, sempre sustentou, baseado na arte alquímica, "que a Via Láctea era o caminho abandonado em que se podiam encontrar os vivos e os mortos, em direcção a uma luz sem tempo". Génova, na Strada Maggiore, talvez seja a miragem terrena mais próxima dela.
João Bénard da Costa 30 de Julho 2004 in Público
Eu sabia, à partida, que não ia ver uma grande exposição monográfica, uma dessas tantas dedicadas ao pintor. Se fosse esse o meu objectivo, melhor seria viajar uns meses antes e ir até Lille, onde, neste mesmo ano, se reuniram muito mais obras dele. Mas sabia que ia ver os palácios que marcaram Rubens para o resto da vida (os róis de Rubens) e sabia que ia ver - no Palazzo Ducale - os Rubens encomendados pela riquíssima oligarquia genovesa, a primeira a genuflectir perante o génio do pintor. A maior parte desses Rubens partiram de Génova há muito tempo e estão espalhados pelos museus da Europa e da América. Se, agora, boa parte deles voltaram a Génova, foi para orientar um centro mais construído em torno do seu fantasma do que da sua presença. O poder de Génova - poder imenso nos séculos XVI e XVII - é inseparável da imagem que Rubens deu desse poder, quer através do famoso livro que dedicou à Strada Nuova, de que já aqui falei, quer através dos fabulosos retratos dos grandes senhores e das grandes senhoras de "La Superba", retratos largamente devedores de Tiziano, mas onde a grande pintura veneziana se funde com a pintura flamenga para criar uma nova majestade e uma convulsão nova.
"Uma cultura artística europeia" - escreveu Argan - "no século em que a Europa politica moderna se fundou" (século XVII, explico eu) "só podia nascer da confluência de duas grandes tradições: a italiana e a flamenga. O ponto de convergência foi Génova, a cidade que, após a vitória de Lepanto, quando o tráfico mediterrânico se libertou da ameaça turca, assumiu uma importância económica e politica verdadeiramente europeia". Capital Europeia da Cultura, no preciso ano em que se comemoram os 400 anos da primeira visita de Rubens a Génova, os promotores das festividades souberam, argutamente, voltar-se para Rubens, a fim de redimensionar a cidade nessa perspectiva, entendida, agora, ao sabor dos ventos que sopram e confiando ao tempo de Rubens essa viagem de ida sem volta da Europa do século XVII à Europa de hoje.
Não é por acaso que, à saída do Palazzo Ducale, o visitante depara com uma transcrição, em enormes caracteres, de um artigo de um tal Armando Torno (Corriere della Sera, 10 de Março) em que se recorda o grego Simónides e a célebre passagem em que se diz que a cidade é mestra do homem. Acrescentam-se depois estas linhas sintomáticas: "Um passeio na via Garibaldi equivale a uma viagem na arte e na beleza. Basta caminhar alguns minutos nessa rua para compreender o que é a Europa". Dêem o devido desconto aos lugares-comuns. Não se compreende (eu pelo menos não compreendo) o que é a Europa, mas compreende-se o que foi a Europa, ao tempo em que o maior dos seus pintores foi também um dos maiores dos seus diplomatas e se moveu incessantemente entre a Flandres natal, a Itália dos papas, dos doges e dos Gonzaga de Mântua, a Espanha dos Filipes e a França de Luís XIII, aprendendo com todos e a todos fecundando.
2. Um pouco de cronologia nisto, por favor. Era chegado o tempo dela e não vos faço nenhum favor.
Para poupar tempo e espaço, refreio-me sobre as origens familiares de Rubens e as reviravoltas religiosas da família. Saibam apenas que o pai de Rubens só escapou à fogueira, por adultério e bruxedo (amores com a Princesa Ana da Saxónia, mulher de Guilherme o Taciturno) porque a própria mãe de Rubens jurou, sobre a Bíblia, pela vida dela e dos quatro filhos, que o marido jamais lhe fora infiel. Marido que foi huguenote e depois católico, conforme quem mandava na Flandres e o poder dos espanhóis nela. Mas diz-se que o catolicíssimo filho, futuro servidor do Papa e de majestades fidelíssimas, lia Lutero às escondidas e sempre foi atraído pelas ciências ocultas.
Aos 23 anos (Rubens nasceu em Siegen em 1577), já com alguma reputação como pintor, fez a primeira viagem a Itália, onde Vincenzo I Gonzaga, duque de Mântua, o contratou para a sua corte. Mantegna, os maneiristas, o Giulio Romano do Palazzo del Te, foram os mestres, pacíficos ou frenéticos, da sua exuberante teatralidade.
Oito anos viveu Rubens em Itália, que percorreu de lés a lés. Em 1603, o Gonzaga confia-lhe a primeira missão diplomática. À frente de um largo séquito, foi a Madrid presentear Filipe III e conquistar as boas graças do Duque de Lerma. Foi no regresso que entrou em Itália por Génova, tinha 27 anos. Ambrogio Spinola e Nicola Pallavicino, dois dos mais magníficos entre os magníficos de Génova, amaram-no e disputaram-no, o que lhe trouxe invejas e ciúmes, de que sempre soube desembaraçar-se em proveito próprio. Foi nesse ano (ou numa segunda estada, em 1605) que recebeu a primeira encomenda muito importante: o retábulo do altar-mor da Igreja de Jesus, representando A Circuncisão. É certamente a mais operática das circuncisões jamais pintadas, com a espectacular divisão entre a cena bíblica (uma Nossa Senhora ainda rafaelesca, desviando os olhos e pousando a mão no ombro) e o céu à Giulio Romano, com miríades de anjos e os tão poderosos efeitos de claro-escuro.
Da mesma época, e para a mesma Igreja, são Os Milagres do Beato Inácio de Loiola, não menos teatrais e pré-barrocos.
Mas são os únicos Rubens que em Génova nunca mudaram e nunca saíram da igreja para onde foram pintados. Eles o confirmaram como favorito da urbe e da Soberba e parecem ter determinado a longa série de encomendas (1606-1607) que se traduziram em dezassete retratos da nobreza velha e da nobreza nova da cidade, dos quais se conservam doze.
O mais célebre - agora espalhado por toda a cidade como marca emblemática da Capital da Cultura - é o de Brigida Spinola Doria, actualmente na National Gallery de Washington. Os publicitários retiveram-lhe os olhos e o sorriso, mas o mais espantoso é o vestido de seda, captado em "plano americano" e que foi provavelmente a veste nupcial da mulher de Giacomo Doria, retratada aos 22 anos.
"Il Signor Pietro Paulo Rubens, gentilluomo fiamingo et eccellentissimo Pittore e molto amico mio", como o apresentava Paolo Agostino Spinola, primo e cunhado da imponente Brigida, assinou, nesse retrato, uma das suas obras-primas (em todo o sentido da palavra) reforçando a representação (em exteriores, com a presença de uma arquitectura clássica no fundo) e prolongando a altura de Brigida através de uma cortina encarnada escuríssima que esvoaça entre as duas colunas que a enquadram. As mãos compridíssimas e branquíssimas, o leque na mão direita, e a entufadíssima gola de rendas, contrastam com o rosto nubente (quase tímido) tornando aquela mulher numa "montagna di stoffa", salpicada de jóias, nascida para a luz e feita de luz, ser de prata, emanador de tal luxo e tal calma que a volúpia só decorre do excesso delas.
Mas é esse o meu retrato favorito? Ou é o de Gian Carlo Doria, o marido, retrato equestre onde tudo voa, desde o cavalo de patas no ar e cauda imensa, até ao cão que, na mesma posição, galopa tanto como o cavalo, à frente dele. Árvores, montada, cão, céu, tudo voa, tudo está em pé, no ar, menos o retratado, insolitamente calmo, como se nenhum movimento deste mundo o pudesse alterar. E esse é outro dos raros Rubens que a Génova pertence e em Génova ficou (no Palazzo Spinola).
Os outros vieram de Bucareste ou de Dublin, de Dorset ou de Karlruhe, ou de colecções particulares. Mas percorrendo-lhes os rostos e os apelidos, é a imagem de Génova que nos trazem, tal como nela mesma a eternidade a fixou, no auge do seu poder político e humano.
3. Em 1608, aos 31 anos, Rubens regressou a Antuérpia e nunca mais voltou nem a Génova nem a Itália.
Mas encomendas de Génova continuaram a chegar-lhe ao longo da vida. Dediquei a última crónica à mais extraordinária, a Juno e Argos. Mas em Génova se reuniram agora, porque para Génova foram pintadas, telas tão célebres como o Lamento de Vénus sobre a morte de Adónis (Ah, esse corpo feminino que levantando a túnica de Adónis vê, do corpo dele, a única parte que o espectador não vê!), o Hércules e Omfale do Louvre, A Serpente de Bronze da National Gallery de Londres, a Djanira ou o Hércules no Jardim das Hespérides da Sabauda de Turim, etc, etc.
Quadros de diversíssimas épocas, doutros Rubens doutras eras, mas que, reunidos em Génova, após uma diáspora de séculos, parecem autorizados pelos retratos majestáticos e tizianescos do inicio, como se nestes começasse a tempestade de cores e de corpos que chegaria nos anos da maturidade.
Centrados no Palazzo Ducale ou ainda dispersos por outros palácios, são 41 os Rubens reunidos nesta primavera genovesa. Em torno deles, os maneiristas de Génova, Van Dyck, que lhe sucedeu como pintor das doges, Caravaggio de quem, segundo a lenda, Rubens teria trazido de Roma o misterioso Martírio de Santa Úrsula, Carracci, Dominichino e tantos, tantos outros.
Nem se pode dizer que a maior presença caiba ao pintor, cabendo embora ao tempo dele. Mas, da história de Génova, tal como a li nos "róis", tal como a vi nos palácios e nos jardins, Rubens é o grande protagonista ou volta a ser o grande protagonista de uma história que se prolonga até quase vinte e cinco anos depois da morte dele (1640). Protagonista ausente (tão pouco tempo viveu em Génova, tão poucos quadros habitam Génova como morada fixa) mas único construtor da imagem de Génova e da visão de Génova. Sem ele, o imaginário de Génova e a transfiguração de Génova não existiriam, nem no tempo nem no espaço
Quando pintou para a Torre de la Parada de Filipe IV, as Metamorfoses de Ovídio, diz-se que pressentiu a morte, ao traçar a metamorfose da Via Láctea. Segundo o seu secretário, sempre sustentou, baseado na arte alquímica, "que a Via Láctea era o caminho abandonado em que se podiam encontrar os vivos e os mortos, em direcção a uma luz sem tempo". Génova, na Strada Maggiore, talvez seja a miragem terrena mais próxima dela.
João Bénard da Costa 30 de Julho 2004 in Público
domingo, julho 25, 2004
Cem Olhos para Rubens
1. Nas Metamorfoses (Livro I, 584-750) narrou Ovídio a história de Io, a bela ninfa da Tessália pela qual Júpiter se apaixonou. Para conseguir os seus intentos, tomou, dessa vez, a forma de uma nuvem, que obscureceu por completo o bosque onde se escondera a virgem que daria a felicidade a quem quer que a possuísse.
Mas Júpiter, como se sabe, era casado com a ciumentíssima Juno, que por demais conhecia os ardis do marido e a sua divina propensão para infidelidades conjugais. Do alto do Olimpo, espantou-se que o fulgor do dia se transformasse em noite e suspeitou do que a nuvem ocultava.
Rapidamente, precipitou-se para a terra e dissipou as névoas. Júpiter, também já habituado às costumeiras interrupções da consorte, só teve tempo para metamorfosear Io numa bezerra, que, da sua primitiva forma, só conservou a formosura. Juno não se deixou enganar pelo bicho nem pelo rabo de fora. Com doces falas gabou-lhe as formas e pediu a Júpiter que lha desse. O deus debateu-se entre o amor e o pudor. Percebeu que recusar a vitelinha à mulher e irmã, era revelar que ela era mais do que tenra vitela. Deu-lha.
Nem era questão de levar o animal para o Olimpo. Mas deixá-la a pastar era tentar acima das suas forças, o senhor que, com o seu ceptro, rege o universo. Por isso a confiou ao centauro Argos, o monstro de cem olhos, de que só dois se cerravam no sono, deixando os outros noventa e oito bem abertos. E, como os olhos lhe cobriam toda a cabeça, quer Io estivesse diante dele, quer estivesse atrás, sempre a via e sempre a vigiava.
O rei dos deuses não aguentou uma tal separação. Mandou chamar Mercúrio, o filho da mais luminosa das Plêiades, e ordenou-lhe que, com os seus cantos e a sua flauta, adormentasse Argos e o matasse. Mercúrio teve muito que cantar e contar. Mesmo quando conseguiu fazer cair as pálpebras sobre cinquenta olhos, os outros cinquenta continuavam zelosos. Mas, por fim, o monstro adormeceu e logo Mercúrio lhe cortou a cabeça.
Mal o soube, Juno voltou a descer dos céus e retirou, um por um, os olhos mortos de Argos, colocando-os nas caudas e nas asas da ave que a personifica: os míticos pavões. Depois, em tremenda ira, subiu para o seu carro e, sob a forma de um moscardo, perseguiu a rival por todo o oriente e todos os rios do oriente, até chegar ao Nilo. Junto ao rio dos rios, finalmente a alcançou e ia matá-la, quando Io soltou um longo lamento, misto de mugido e lágrimas, suplicando a Júpiter que pusesse fim ao seu penar. Júpiter condoeu-se e jurou à mulher que nunca mais, no futuro, a doce ninfa seria para ela motivo de dor.
Amansada a cólera da deusa, a desventurada recuperou a forma humana e "o cândido esplendor da sua beleza". Mais tarde deu à luz Epáfos e Ovídio conclui dizendo que "agora é uma deusa, venerada pelas multidões em vestes de linho e em todas as cidades se erguem templos dedicados a Io".
Muitos séculos depois, Galileu deu o nome de Io ao maior dos satélites de Júpiter, o único que, por ter um movimento de rotação rigorosamente igual ao seu movimento de translacção, tem sempre voltada para ele a mesma face.
2. Como mil outras das Metamorfoses de Ovídio, a história de Io foi representada mil vezes. Ou abraçada por Júpiter, em êxtase envolvida pela nuvem. Ou, já transformada em bezerra, triste de morrer. Ou na cena em que Juno pede ao marido que lhe dê o animal. Ou junto ao Argos de tantos olhos fixos nela. Ou no episódio da morte de Argos.
Mas a mais avassaladora das representações é a de Rubens, que agora vi em Génova, no que, para mim, foi o momento supremo da exposição L' Età di Rubens (ver Público, 16 de Junho).
É um quadro imenso (2 metros e 49 de altura por 2 metros e 96 de largura) onde, aparentemente, Io não está representada. Aliás, o quadro chama-se Juno e Argos e o que vemos é o momento em que a deusa reveste os seus pavões com os cem olhos de Argos. Á primeira vista, o que se impõe é, do lado esquerdo, um pavão colossal, com as asas todas abertas em leque e, do lado direito, a deusa de peitos desnudados e com um vestido encarnadíssimo até aos pés. Levantou-se do seu carro e, com uma outra mulher, igualmente de peito nu, está concentrada em algo que só algum tempo depois chama a nossa atenção. Antes de vermos "a acção", reparamos também no soberbo corpo nu de Argos, já sem cabeça, e com a carne tingida pela morte, jacente no chão aos pés da deusa, que não olha para ele. Diz-se que, para pintar esse corpo possante, expressivamente revolto numa última torsão, Rubens se inspirou no desenho de Tizio de Miguel Ângelo, hoje em Windsor, na colecção da Rainha.
De modo que temos a gigantesca e violácea plumagem de um dos pavões (na tela, há dois), ocupando cerca de metade do quadro, rodeada por três "putti" nus que lhe colocam nas asas os olhos do monstro. Temos os dois altíssimos vultos femininos, ligeiramente descentrados, um todo púrpura e outro todo azul. Atravessando tudo, um segundo pavão, tão dilatado em comprimento quanto o outro o é em largura (as asas todas fechadas, a cauda enorme, e virando-nos o olhar, ao contrario do seu par). E em baixo - única representação masculina - o corpo decepado de Argos.
Duas volutas perfeitas e uma espiral que envolve os corpos e os pavões, como uma rajada de vento, vento inexistente.
Mas afinal que fazem as deusas e para onde olha o pavão que nos vira as costas?
De mais perto, e com alguma atenção, repara-se que a deusa azul (com os cabelos tão louros quanto os de Juno são negros) tem no colo a cabeça enegrecidíssima de Argos e com a mão direita lhe retira, com infinda mansuetude, os cem olhos da lenda. Com a mão esquerda, Juno colhe os olhos, segurando um deles entre o anelar e o dedo grande. Na mão direita, já estão depostos três outros olhos de Argos, que irá colocar, como outras tantas jóias, no atentíssimo pavão de face oculta. Talvez que, depois de já terem dado às crianças os cinquenta olhos que tanto ufanam o pavão de asas abertas, estejam agora a retirar os outros cinquenta, para os colocar no pavão - fêmea, que espera a sua vez. Há ainda o arco-íris no céu, nuvens escuras revoltas (reminiscência dos episódios anteriores do mito, reminiscências de Júpiter) e uma brisa agita os véus das divindades.
Mas falta falar do mais importante. À direita do quadro, segurando o manto de arminho de Juno, há um terceiro vulto feminino, de quem só vemos a cabeça dourada e os cabelos bem agitados pelo tal vento ausente - presente. Não olha para as outras mulheres, não parece ver o que estão a fazer, não olha para o corpo nu de Argos, mas também não nos olha a nós. Com alguma aflição, olha em frente, mas com uma frontalidade indefinida, como se não quisesse ver mais ou como já quisesse ver outra coisa. Alguns comentadores tem identificado essa figura com Io, uma Io já com forma humana, acorrentada ao carro de Juno ou aproveitando-se da distracção desta para iniciar a sua bosfórica fuga.
Seja como for, essa figura só cabeça (inversa da de Argos, só corpo) confere ao quadro um mistério indecifrável e que nenhuma passagem das Metamorfoses esclarece. Ou estará ela a ser puxada para trás, de novo para as nuvens e para o arco-íris, ou seja, de novo, para o abraço de Júpiter?
3. Há muito tempo que me ensinaram a ver que as robustas figuras de Rubens não têm peso e que, ao contrário do que parece, todas são puxadas para cima e mal pisam a terra. Em Juno e Argos, esse movimento ascendente, tão brando que é quase impalpável, atinge o cume no corpo retorcido de Argos e nos cabelos ondulantes da suposta Io. Se a pintura representa uma acção minuciosa (os olhos retirados como pinças da cabeça de Argos) o que temos diante de nós é a acção mais ampla, a acção mais grandiosa. São os cem olhos que cobrem o pavão macho e lhe dão majestade absoluta. São as torrentes de cores, desde as da carne rósea das crianças e das deusas até à carne escura de Argos, desde a gigantesca mancha encarnada do manto de Juno até ao ouro que cerca a cabeça de Io.
Mais ou menos pela mesma altura em que Rubens pintou esta tela (datada pelos historiadores dos anos 30 do Séc. XVII, no fim da vida do pintor) Poussin, seu contracampo francês, escreveu: "Sabemos que existem duas maneiras de ver os objectos: uma, é, muito simplesmente, vê-los; outra, é observá-los atentamente".
Este quadro pode ver-se de qualquer dessas maneiras. Como é que os gregos chamavam a Argos? Argos Panoptes (o que tudo vê). Do panoptismo de Rubens, este é um dos exemplos mais admiráveis. Ninguém nos olha (as deusas têm mesmo os olhos baixos, quase semi-cerrados) mas só há olhos diante de nós. Os cem olhos de Argos, metamorfoseados nos cem olhos dos pavões e nos cem olhos que, para ver Rubens, nos são pedidos.
4. Este quadro, agora emprestado a Génova pelo Museu da Fundação Wallraf-Richartz de Colónia, esteve em Génova entre 1630 (mais coisa menos coisa) e 1805. Nessa data, o levaram para Inglaterra, onde o acharam de um realismo demasiado cru para ser exposto. Depois, andou perdido, segundo alguns até afogado. Reapareceu na Alemanha em 1894. Voltou agora a Génova (cerca de duzentos anos depois) como vários dos Rubens da exposição.
Outros olhos que não estes (os olhos de Brigida Spinola Doria) são o ex-libris da capital da cultura e figuram na capa do catálogo. Para a semana vo-los mostrarei. Mas os olhos onde os meus olhos ficaram foram os olhos de Juno e Argos, na parede do fundo de uma das maiores salas do Palazzo Ducale. Lá, onde entre dois pavões panópticos, se descobre ainda uma restea de céu, de azul muito claro e de nuvens tão levemente ruborizadas como os rostos das deusas impassíveis.
João Bénard da Costa 23 de Julho 2004 in Público
Mas Júpiter, como se sabe, era casado com a ciumentíssima Juno, que por demais conhecia os ardis do marido e a sua divina propensão para infidelidades conjugais. Do alto do Olimpo, espantou-se que o fulgor do dia se transformasse em noite e suspeitou do que a nuvem ocultava.
Rapidamente, precipitou-se para a terra e dissipou as névoas. Júpiter, também já habituado às costumeiras interrupções da consorte, só teve tempo para metamorfosear Io numa bezerra, que, da sua primitiva forma, só conservou a formosura. Juno não se deixou enganar pelo bicho nem pelo rabo de fora. Com doces falas gabou-lhe as formas e pediu a Júpiter que lha desse. O deus debateu-se entre o amor e o pudor. Percebeu que recusar a vitelinha à mulher e irmã, era revelar que ela era mais do que tenra vitela. Deu-lha.
Nem era questão de levar o animal para o Olimpo. Mas deixá-la a pastar era tentar acima das suas forças, o senhor que, com o seu ceptro, rege o universo. Por isso a confiou ao centauro Argos, o monstro de cem olhos, de que só dois se cerravam no sono, deixando os outros noventa e oito bem abertos. E, como os olhos lhe cobriam toda a cabeça, quer Io estivesse diante dele, quer estivesse atrás, sempre a via e sempre a vigiava.
O rei dos deuses não aguentou uma tal separação. Mandou chamar Mercúrio, o filho da mais luminosa das Plêiades, e ordenou-lhe que, com os seus cantos e a sua flauta, adormentasse Argos e o matasse. Mercúrio teve muito que cantar e contar. Mesmo quando conseguiu fazer cair as pálpebras sobre cinquenta olhos, os outros cinquenta continuavam zelosos. Mas, por fim, o monstro adormeceu e logo Mercúrio lhe cortou a cabeça.
Mal o soube, Juno voltou a descer dos céus e retirou, um por um, os olhos mortos de Argos, colocando-os nas caudas e nas asas da ave que a personifica: os míticos pavões. Depois, em tremenda ira, subiu para o seu carro e, sob a forma de um moscardo, perseguiu a rival por todo o oriente e todos os rios do oriente, até chegar ao Nilo. Junto ao rio dos rios, finalmente a alcançou e ia matá-la, quando Io soltou um longo lamento, misto de mugido e lágrimas, suplicando a Júpiter que pusesse fim ao seu penar. Júpiter condoeu-se e jurou à mulher que nunca mais, no futuro, a doce ninfa seria para ela motivo de dor.
Amansada a cólera da deusa, a desventurada recuperou a forma humana e "o cândido esplendor da sua beleza". Mais tarde deu à luz Epáfos e Ovídio conclui dizendo que "agora é uma deusa, venerada pelas multidões em vestes de linho e em todas as cidades se erguem templos dedicados a Io".
Muitos séculos depois, Galileu deu o nome de Io ao maior dos satélites de Júpiter, o único que, por ter um movimento de rotação rigorosamente igual ao seu movimento de translacção, tem sempre voltada para ele a mesma face.
2. Como mil outras das Metamorfoses de Ovídio, a história de Io foi representada mil vezes. Ou abraçada por Júpiter, em êxtase envolvida pela nuvem. Ou, já transformada em bezerra, triste de morrer. Ou na cena em que Juno pede ao marido que lhe dê o animal. Ou junto ao Argos de tantos olhos fixos nela. Ou no episódio da morte de Argos.
Mas a mais avassaladora das representações é a de Rubens, que agora vi em Génova, no que, para mim, foi o momento supremo da exposição L' Età di Rubens (ver Público, 16 de Junho).
É um quadro imenso (2 metros e 49 de altura por 2 metros e 96 de largura) onde, aparentemente, Io não está representada. Aliás, o quadro chama-se Juno e Argos e o que vemos é o momento em que a deusa reveste os seus pavões com os cem olhos de Argos. Á primeira vista, o que se impõe é, do lado esquerdo, um pavão colossal, com as asas todas abertas em leque e, do lado direito, a deusa de peitos desnudados e com um vestido encarnadíssimo até aos pés. Levantou-se do seu carro e, com uma outra mulher, igualmente de peito nu, está concentrada em algo que só algum tempo depois chama a nossa atenção. Antes de vermos "a acção", reparamos também no soberbo corpo nu de Argos, já sem cabeça, e com a carne tingida pela morte, jacente no chão aos pés da deusa, que não olha para ele. Diz-se que, para pintar esse corpo possante, expressivamente revolto numa última torsão, Rubens se inspirou no desenho de Tizio de Miguel Ângelo, hoje em Windsor, na colecção da Rainha.
De modo que temos a gigantesca e violácea plumagem de um dos pavões (na tela, há dois), ocupando cerca de metade do quadro, rodeada por três "putti" nus que lhe colocam nas asas os olhos do monstro. Temos os dois altíssimos vultos femininos, ligeiramente descentrados, um todo púrpura e outro todo azul. Atravessando tudo, um segundo pavão, tão dilatado em comprimento quanto o outro o é em largura (as asas todas fechadas, a cauda enorme, e virando-nos o olhar, ao contrario do seu par). E em baixo - única representação masculina - o corpo decepado de Argos.
Duas volutas perfeitas e uma espiral que envolve os corpos e os pavões, como uma rajada de vento, vento inexistente.
Mas afinal que fazem as deusas e para onde olha o pavão que nos vira as costas?
De mais perto, e com alguma atenção, repara-se que a deusa azul (com os cabelos tão louros quanto os de Juno são negros) tem no colo a cabeça enegrecidíssima de Argos e com a mão direita lhe retira, com infinda mansuetude, os cem olhos da lenda. Com a mão esquerda, Juno colhe os olhos, segurando um deles entre o anelar e o dedo grande. Na mão direita, já estão depostos três outros olhos de Argos, que irá colocar, como outras tantas jóias, no atentíssimo pavão de face oculta. Talvez que, depois de já terem dado às crianças os cinquenta olhos que tanto ufanam o pavão de asas abertas, estejam agora a retirar os outros cinquenta, para os colocar no pavão - fêmea, que espera a sua vez. Há ainda o arco-íris no céu, nuvens escuras revoltas (reminiscência dos episódios anteriores do mito, reminiscências de Júpiter) e uma brisa agita os véus das divindades.
Mas falta falar do mais importante. À direita do quadro, segurando o manto de arminho de Juno, há um terceiro vulto feminino, de quem só vemos a cabeça dourada e os cabelos bem agitados pelo tal vento ausente - presente. Não olha para as outras mulheres, não parece ver o que estão a fazer, não olha para o corpo nu de Argos, mas também não nos olha a nós. Com alguma aflição, olha em frente, mas com uma frontalidade indefinida, como se não quisesse ver mais ou como já quisesse ver outra coisa. Alguns comentadores tem identificado essa figura com Io, uma Io já com forma humana, acorrentada ao carro de Juno ou aproveitando-se da distracção desta para iniciar a sua bosfórica fuga.
Seja como for, essa figura só cabeça (inversa da de Argos, só corpo) confere ao quadro um mistério indecifrável e que nenhuma passagem das Metamorfoses esclarece. Ou estará ela a ser puxada para trás, de novo para as nuvens e para o arco-íris, ou seja, de novo, para o abraço de Júpiter?
3. Há muito tempo que me ensinaram a ver que as robustas figuras de Rubens não têm peso e que, ao contrário do que parece, todas são puxadas para cima e mal pisam a terra. Em Juno e Argos, esse movimento ascendente, tão brando que é quase impalpável, atinge o cume no corpo retorcido de Argos e nos cabelos ondulantes da suposta Io. Se a pintura representa uma acção minuciosa (os olhos retirados como pinças da cabeça de Argos) o que temos diante de nós é a acção mais ampla, a acção mais grandiosa. São os cem olhos que cobrem o pavão macho e lhe dão majestade absoluta. São as torrentes de cores, desde as da carne rósea das crianças e das deusas até à carne escura de Argos, desde a gigantesca mancha encarnada do manto de Juno até ao ouro que cerca a cabeça de Io.
Mais ou menos pela mesma altura em que Rubens pintou esta tela (datada pelos historiadores dos anos 30 do Séc. XVII, no fim da vida do pintor) Poussin, seu contracampo francês, escreveu: "Sabemos que existem duas maneiras de ver os objectos: uma, é, muito simplesmente, vê-los; outra, é observá-los atentamente".
Este quadro pode ver-se de qualquer dessas maneiras. Como é que os gregos chamavam a Argos? Argos Panoptes (o que tudo vê). Do panoptismo de Rubens, este é um dos exemplos mais admiráveis. Ninguém nos olha (as deusas têm mesmo os olhos baixos, quase semi-cerrados) mas só há olhos diante de nós. Os cem olhos de Argos, metamorfoseados nos cem olhos dos pavões e nos cem olhos que, para ver Rubens, nos são pedidos.
4. Este quadro, agora emprestado a Génova pelo Museu da Fundação Wallraf-Richartz de Colónia, esteve em Génova entre 1630 (mais coisa menos coisa) e 1805. Nessa data, o levaram para Inglaterra, onde o acharam de um realismo demasiado cru para ser exposto. Depois, andou perdido, segundo alguns até afogado. Reapareceu na Alemanha em 1894. Voltou agora a Génova (cerca de duzentos anos depois) como vários dos Rubens da exposição.
Outros olhos que não estes (os olhos de Brigida Spinola Doria) são o ex-libris da capital da cultura e figuram na capa do catálogo. Para a semana vo-los mostrarei. Mas os olhos onde os meus olhos ficaram foram os olhos de Juno e Argos, na parede do fundo de uma das maiores salas do Palazzo Ducale. Lá, onde entre dois pavões panópticos, se descobre ainda uma restea de céu, de azul muito claro e de nuvens tão levemente ruborizadas como os rostos das deusas impassíveis.
João Bénard da Costa 23 de Julho 2004 in Público
sábado, julho 17, 2004
Os Róis de Génova
1. No início do IV acto de A Gaivota de Tchekov, em casa de Sorine, pouco antes da chegada de Irina Nicolaevna Arkadina mai-lo seu reconquistado Trigorine, decorre uma daquelas "conversas de farrapos" em que o escritor foi insuperável. Parecendo que nada se diz, tudo se diz. Tudo sobre tudo num aparente nada sobre nada, com secundários que nunca o são (em Tchekov, não há personagens secundárias) a revelarem tanto do essencial como os chamados protagonistas.
A páginas tantas (já estou a falar de páginas), o pobre Medvedenko, tão mal-casado com Macha, pergunta ao fabuloso personagem que é Dorn - o médico que, no fim da peça, informa em surdina do suicídio de Treplev e que, no fim do primeiro acto, diz a Macha não saber o que fazer nem dela nem do amor dela - qual foi, de todas as cidades, do vasto mundo que ele percorreu, aquela de que mais gostou. "Génova" responde o doutor da mula russa. "Porquê Génova?" quer saber o jovem poeta. "Porque há nas ruas uma multidão excepcional. À noite, quando se sai do hotel, as ruas estão pejadas de gente. Circulamos no meio da multidão, sem saber para onde ir, à direita e à esquerda, em ziguezagues. Vive-se com a multidão, fundimo-nos psiquicamente com ela, e começa-se a acreditar na existência de uma única alma universal. Como aquela alma que, na sua peça, foi o papel interpretado por Zaretchnaia".
A explicação é tão bizarra como bizarro é o personagem, possível "alter-ego" de Tchekov. O que ele diz - aparentemente - aplica-se a qualquer grande cidade (Génova nem é tão grande assim) e, na resposta à pergunta do filho de Arkadina, pode pensar-se (vindo a questão de quem vem) que, num processo mental do género da anedota do busto de Napoleão (se não conhecem, não sou eu quem vo-la irá contar, que anedotas dessas não se contam em salões) Dorn tortuosamente aproveita o pretexto para puxar a conversa para Nina, a "gaivota". Na peça inicial, "peça dentro da peça", a peça de Treplev representada por Nina quando ainda havia verão e lagos, ela definia-se como a "alma colectiva, universal". Ela, ela, era essa alma. "Eu sou a alma de Alexandre Magno e de César, a alma de Shakespeare e de Napoleão, a alma da última das sanguessugas. Em mim, a consciência dos homens confundiu-se com o instinto dos animais. Lembro-me de tudo, de tudo, de tudo, e vivo, de novo, cada uma das vidas que existem em mim".
Era então que a mãe do poeta interrompia pela primeira vez a obra do filho, comentando em voz suficientemente alta: "Que peça tão decadente!". Talvez o médico, no final, quisesse lembrar outra vez tudo, tudo, tudo, dessa noite inicial, em que ele foi o único a gabar o talento dos dois jovens, mas também a fazer ao autor da peça interrompida o aviso envenenado: "Uma obra deve exprimir uma ideia clara, precisa. Você tem que saber porque é que escreve. Senão, se se limitar a devaneios pitorescos sem uma finalidade precisa, vai-se perder. O seu talento será a sua perdição".
Será tudo isso que Dorn quis evocar no final, servindo-se de Génova? Ou Génova, que Tchekov visitou em 1894, dez anos antes de morrer, trinta anos depois de nascer, e que tanto amou, teve, para ele, um sentido especial e foi o pólo que lhe permitiu a passagem da alma individualíssima de Nina à alma colectiva, evocada no principio e no fim de A Gaivota?.
2. Conscientemente, Tchekov não determinou a minha viagem a Génova, cidade que vi agora pela primeira vez. Nem sequer me lembrei que, durante os dias em que estive em Génova, se comemorou o centenário da morte dele, quando os balões de oxigénio já não o conseguiam fazer respirar e lhe deram champagne a beber. Foi a 2 de Julho. Cem anos depois, recebi em Génova a notícia da morte de outro Poeta. "A alma colectiva"? Seja como for, antes de partir, a Manuela de Freitas lembrou-me essa referencia tchekoviana, mas só no regresso a localizai. E nunca sai do hotel à noite, nunca me perdi na multidão, caminhei sempre com um objectivo preciso. Objectivo que não foi Tchekov, mas Rubens e a fabulosa exposição que esteve no Palazzo Ducale, entre 20 de Março e 11 de Julho: L'Età di Rubens. Este ano, Génova foi (é) Capital Europeia da Cultura e essa exposição era uma das várias com que a cidade que para si reservou o cognome de Soberba, se auto-celebrou. Quando pus o pé na rua, com um itinerário bem determinado, estava longe de adivinhar que coisas dessas não existem em Génova e que, uma vez entrado na Via Garibaldi, que antigamente se chamou Strada Nuova, depois Strada Maggiore (decreto de 1558) depois Strada Aurea (até 1882), só restava perder-me nos róis de Génova, de palácio em palácio e só nessa via contam-se treze dos mais soberbos palácios do mundo.
3. Tanto como eu, Génova convida ao desordenamento, mesmo nessa ordenadíssima Strada Nuova, tão apogeu do espírito renascentista quanto gigantesca fuga para o maneirismo e para o barroco. Convém, pois, que eu deixe de "conversar os farrapos" e de errar entre Tchekov e Sophia, e ponha alguma ordem nisto.
Para lá de Rubens (lá chegaremos) outra exposição é maravilha total em Génova e essa poderá ser visitada até 5 de Setembro. Intitula-se L' Invenzione dei Rolli e alguns dos muitos mistérios da cidade adensam-se nela. Para começar, esbarrei com a palavra "rolli" (em dialecto genovês "rollo") Literalmente, pode traduzir-se por "rolos", uma vez que as plantas com os desenhos de cada palácio eram "enroladas" para depois ser mostradas aos hóspedes ilustres da cidade, ou da aristocracia dela, que, segundo os seus gostos, escolhiam o preferido para morada. Mas esses "rolos" não eram apenas de desenhos, com tudo o que de vegetal evoca a palavra "planta". Continham, também, a precisa enumeração do conteúdo de cada palácio, formavam um "ról", no sentido dessas listas que convêm registar por certa ordem e para determinado fim, como os "róis" de peças de artilharia mandados fazer por Afonso de Albuquerque em Ormuz, como o ról de mentiras que Camilo acusou Herculano de ter escrito, ou como o ról da roupa que a freguesa de Beatriz Costa lhe deu para lavar na Aldeia da Roupa Branca.
Génova foi a primeira cidade que fez o ról dos seus palácios, o que permitiu a Rubens em 1622 (dezoito anos depois de ter visitado Génova) editar o seu famoso livro Palazzi Antichi di Genova em que, com base nesse róis e na sua memória, desenhou para a posterioridade fachadas e interiores, numa obra que exerceu enorme influência junto dos grandes arquitectos europeus dos séculos XVII e XVIII. Com base nesses róis (e no livro de Rubens) se efectuou agora o restauro de quase todos esses palácios (bem como a abertura ao público dos que lhe estavam fechados) permitindo a criação de uma rua-museu, obra-prima da cultura arquitectónica e habitacional genovesa.
As razões para a constituição destes "róis" são diversas (simultaneamente, de ordem politica, económica, jurídica, etc). República de muitos senhores e de muitas famílias, a distribuição dos terrenos em lotes e em zonas de construção impôs-se como única solução para que os direitos e privilégios de todos fossem respeitados. Acresce que as lutas entre nobres "velhos" e nobres "novos" eram acesas e que muitos disputavam os melhores pedaços. Donde, a criação de uma comissão "super partes" coordenada pelos legados do Papa e do Imperador, para obrigar a um "acordo constitucional". Data de 1576 - inicio do apogeu da Soberba - o decreto inaugural dos "róis", todos os anos acrescido de novos pergaminhos, que levaram a contar em 1624 trezentos "róis", dos quais cerca de cinquenta para os grandes palácios da cidade antiga. Desenrolar hoje esses "róis" é percorrer Génova e descobrir como da topografia se passou à estética, com palácio a responder a palácio num jogo especular, vertiginoso e único.
4. Diz-se que, durante a Idade Média, junto ao espaço depois ocupado pela Strada Nuova, o único edifício de alguma importância era o prostíbulo, sobretudo frequentado pelos oficiais da guarnição de Casteletto. Alguns nomes de praças e ruas (Piazza Fontana Marose, Via della Maddalena) recordam esse passado medievo.
Não sei se a lenda é vera ou não, mas há uma outra acepção de "rolli" que é importante recordar. É aquela que originou o termo francês "rôles", para designar os papéis (como curiosamente se diz em português) confiados aos actores em peças ou filmes. Ora Génova, no século XVI (e ainda hoje) é sobretudo uma cidade teatral, com os papéis principais confiados aos palácios e igrejas, tanto quanto aos doges da "reggia republicana" a essa meia dúzia de grandes famílias de apelidos conhecidos (Doria, Spinola, Pallavicino, Lomellino, Grimaldi, Brignola, etc) que perpetuaram até finais do século XVIII a grandeza de banqueiros de reis e de senhores dos mares.
Subitamente - pelo menos gosto de o pensar assim - nesse dédalo de ruelas estreitas em torno de um lupanar, abriu-se "la via più nobile che si possa trovar nell'intero mondo". É uma rua relativamente comprida (416 passos escreveu Joseph Furttenbach em 1650) mas estreitíssima (12 passos segundo a mesma fonte). Mas dos dois lados dela erguem-se "imparaggiabili palazzi", de mármore branco, amarelo, encarnado ou negro, ordenados numa perspectiva alucinante e cúbica.
"Strettezza della citá" "Angustezza delle strade". A língua italiana é a mais bela, mas também a mais falaz. Mas são essas as palavras que ajudam, quando, nas ruas angustiantes, olhamos para as casas altíssimas que se comprimem e dilatam, como se estivéssemos no fundo de um navio de que as casas fossem as velas desfraldadas.
A luz de Rubens chegou depois. Aqui a buscarei na próxima crónica.
João Bénard da Costa 16 de Julho 2004 in Público
A páginas tantas (já estou a falar de páginas), o pobre Medvedenko, tão mal-casado com Macha, pergunta ao fabuloso personagem que é Dorn - o médico que, no fim da peça, informa em surdina do suicídio de Treplev e que, no fim do primeiro acto, diz a Macha não saber o que fazer nem dela nem do amor dela - qual foi, de todas as cidades, do vasto mundo que ele percorreu, aquela de que mais gostou. "Génova" responde o doutor da mula russa. "Porquê Génova?" quer saber o jovem poeta. "Porque há nas ruas uma multidão excepcional. À noite, quando se sai do hotel, as ruas estão pejadas de gente. Circulamos no meio da multidão, sem saber para onde ir, à direita e à esquerda, em ziguezagues. Vive-se com a multidão, fundimo-nos psiquicamente com ela, e começa-se a acreditar na existência de uma única alma universal. Como aquela alma que, na sua peça, foi o papel interpretado por Zaretchnaia".
A explicação é tão bizarra como bizarro é o personagem, possível "alter-ego" de Tchekov. O que ele diz - aparentemente - aplica-se a qualquer grande cidade (Génova nem é tão grande assim) e, na resposta à pergunta do filho de Arkadina, pode pensar-se (vindo a questão de quem vem) que, num processo mental do género da anedota do busto de Napoleão (se não conhecem, não sou eu quem vo-la irá contar, que anedotas dessas não se contam em salões) Dorn tortuosamente aproveita o pretexto para puxar a conversa para Nina, a "gaivota". Na peça inicial, "peça dentro da peça", a peça de Treplev representada por Nina quando ainda havia verão e lagos, ela definia-se como a "alma colectiva, universal". Ela, ela, era essa alma. "Eu sou a alma de Alexandre Magno e de César, a alma de Shakespeare e de Napoleão, a alma da última das sanguessugas. Em mim, a consciência dos homens confundiu-se com o instinto dos animais. Lembro-me de tudo, de tudo, de tudo, e vivo, de novo, cada uma das vidas que existem em mim".
Era então que a mãe do poeta interrompia pela primeira vez a obra do filho, comentando em voz suficientemente alta: "Que peça tão decadente!". Talvez o médico, no final, quisesse lembrar outra vez tudo, tudo, tudo, dessa noite inicial, em que ele foi o único a gabar o talento dos dois jovens, mas também a fazer ao autor da peça interrompida o aviso envenenado: "Uma obra deve exprimir uma ideia clara, precisa. Você tem que saber porque é que escreve. Senão, se se limitar a devaneios pitorescos sem uma finalidade precisa, vai-se perder. O seu talento será a sua perdição".
Será tudo isso que Dorn quis evocar no final, servindo-se de Génova? Ou Génova, que Tchekov visitou em 1894, dez anos antes de morrer, trinta anos depois de nascer, e que tanto amou, teve, para ele, um sentido especial e foi o pólo que lhe permitiu a passagem da alma individualíssima de Nina à alma colectiva, evocada no principio e no fim de A Gaivota?.
2. Conscientemente, Tchekov não determinou a minha viagem a Génova, cidade que vi agora pela primeira vez. Nem sequer me lembrei que, durante os dias em que estive em Génova, se comemorou o centenário da morte dele, quando os balões de oxigénio já não o conseguiam fazer respirar e lhe deram champagne a beber. Foi a 2 de Julho. Cem anos depois, recebi em Génova a notícia da morte de outro Poeta. "A alma colectiva"? Seja como for, antes de partir, a Manuela de Freitas lembrou-me essa referencia tchekoviana, mas só no regresso a localizai. E nunca sai do hotel à noite, nunca me perdi na multidão, caminhei sempre com um objectivo preciso. Objectivo que não foi Tchekov, mas Rubens e a fabulosa exposição que esteve no Palazzo Ducale, entre 20 de Março e 11 de Julho: L'Età di Rubens. Este ano, Génova foi (é) Capital Europeia da Cultura e essa exposição era uma das várias com que a cidade que para si reservou o cognome de Soberba, se auto-celebrou. Quando pus o pé na rua, com um itinerário bem determinado, estava longe de adivinhar que coisas dessas não existem em Génova e que, uma vez entrado na Via Garibaldi, que antigamente se chamou Strada Nuova, depois Strada Maggiore (decreto de 1558) depois Strada Aurea (até 1882), só restava perder-me nos róis de Génova, de palácio em palácio e só nessa via contam-se treze dos mais soberbos palácios do mundo.
3. Tanto como eu, Génova convida ao desordenamento, mesmo nessa ordenadíssima Strada Nuova, tão apogeu do espírito renascentista quanto gigantesca fuga para o maneirismo e para o barroco. Convém, pois, que eu deixe de "conversar os farrapos" e de errar entre Tchekov e Sophia, e ponha alguma ordem nisto.
Para lá de Rubens (lá chegaremos) outra exposição é maravilha total em Génova e essa poderá ser visitada até 5 de Setembro. Intitula-se L' Invenzione dei Rolli e alguns dos muitos mistérios da cidade adensam-se nela. Para começar, esbarrei com a palavra "rolli" (em dialecto genovês "rollo") Literalmente, pode traduzir-se por "rolos", uma vez que as plantas com os desenhos de cada palácio eram "enroladas" para depois ser mostradas aos hóspedes ilustres da cidade, ou da aristocracia dela, que, segundo os seus gostos, escolhiam o preferido para morada. Mas esses "rolos" não eram apenas de desenhos, com tudo o que de vegetal evoca a palavra "planta". Continham, também, a precisa enumeração do conteúdo de cada palácio, formavam um "ról", no sentido dessas listas que convêm registar por certa ordem e para determinado fim, como os "róis" de peças de artilharia mandados fazer por Afonso de Albuquerque em Ormuz, como o ról de mentiras que Camilo acusou Herculano de ter escrito, ou como o ról da roupa que a freguesa de Beatriz Costa lhe deu para lavar na Aldeia da Roupa Branca.
Génova foi a primeira cidade que fez o ról dos seus palácios, o que permitiu a Rubens em 1622 (dezoito anos depois de ter visitado Génova) editar o seu famoso livro Palazzi Antichi di Genova em que, com base nesse róis e na sua memória, desenhou para a posterioridade fachadas e interiores, numa obra que exerceu enorme influência junto dos grandes arquitectos europeus dos séculos XVII e XVIII. Com base nesses róis (e no livro de Rubens) se efectuou agora o restauro de quase todos esses palácios (bem como a abertura ao público dos que lhe estavam fechados) permitindo a criação de uma rua-museu, obra-prima da cultura arquitectónica e habitacional genovesa.
As razões para a constituição destes "róis" são diversas (simultaneamente, de ordem politica, económica, jurídica, etc). República de muitos senhores e de muitas famílias, a distribuição dos terrenos em lotes e em zonas de construção impôs-se como única solução para que os direitos e privilégios de todos fossem respeitados. Acresce que as lutas entre nobres "velhos" e nobres "novos" eram acesas e que muitos disputavam os melhores pedaços. Donde, a criação de uma comissão "super partes" coordenada pelos legados do Papa e do Imperador, para obrigar a um "acordo constitucional". Data de 1576 - inicio do apogeu da Soberba - o decreto inaugural dos "róis", todos os anos acrescido de novos pergaminhos, que levaram a contar em 1624 trezentos "róis", dos quais cerca de cinquenta para os grandes palácios da cidade antiga. Desenrolar hoje esses "róis" é percorrer Génova e descobrir como da topografia se passou à estética, com palácio a responder a palácio num jogo especular, vertiginoso e único.
4. Diz-se que, durante a Idade Média, junto ao espaço depois ocupado pela Strada Nuova, o único edifício de alguma importância era o prostíbulo, sobretudo frequentado pelos oficiais da guarnição de Casteletto. Alguns nomes de praças e ruas (Piazza Fontana Marose, Via della Maddalena) recordam esse passado medievo.
Não sei se a lenda é vera ou não, mas há uma outra acepção de "rolli" que é importante recordar. É aquela que originou o termo francês "rôles", para designar os papéis (como curiosamente se diz em português) confiados aos actores em peças ou filmes. Ora Génova, no século XVI (e ainda hoje) é sobretudo uma cidade teatral, com os papéis principais confiados aos palácios e igrejas, tanto quanto aos doges da "reggia republicana" a essa meia dúzia de grandes famílias de apelidos conhecidos (Doria, Spinola, Pallavicino, Lomellino, Grimaldi, Brignola, etc) que perpetuaram até finais do século XVIII a grandeza de banqueiros de reis e de senhores dos mares.
Subitamente - pelo menos gosto de o pensar assim - nesse dédalo de ruelas estreitas em torno de um lupanar, abriu-se "la via più nobile che si possa trovar nell'intero mondo". É uma rua relativamente comprida (416 passos escreveu Joseph Furttenbach em 1650) mas estreitíssima (12 passos segundo a mesma fonte). Mas dos dois lados dela erguem-se "imparaggiabili palazzi", de mármore branco, amarelo, encarnado ou negro, ordenados numa perspectiva alucinante e cúbica.
"Strettezza della citá" "Angustezza delle strade". A língua italiana é a mais bela, mas também a mais falaz. Mas são essas as palavras que ajudam, quando, nas ruas angustiantes, olhamos para as casas altíssimas que se comprimem e dilatam, como se estivéssemos no fundo de um navio de que as casas fossem as velas desfraldadas.
A luz de Rubens chegou depois. Aqui a buscarei na próxima crónica.
João Bénard da Costa 16 de Julho 2004 in Público