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sexta-feira, janeiro 30, 2004

Para as Bandas da "Playboy" 

1 - Uns artiguitos, por aqui e por acolá, informaram-me que a "Playboy" fez 50 anos. Primeiro pensei: "Meu Deus, como o tempo passa!" Depois, melancólico, realizei que as mais tenrinhas das "bunnies" de há 50 anos têm hoje a minha idade. Marilyn - na celebérrima foto nua do número 1 - era bastante mais velha. O que vale (vale a quem?) é que o tempo não corre à mesma velocidade para os homens e para as mulheres. Marilyn morreu, ainda quase todas vocês nem nascidas eram. As coelhinhas desmamadas de 1953 têm agora idades assustadoras. Mas aquele que, ainda hoje, continua a ser tratado por Hef (Hugh Hefner, o patrão), nascido no mesmo ano de Marilyn (1926) continua, aos 77 anos, mais Viagra menos Viagra, a "dating" três coelhinhas em simultâneo e a ter um harém permanente de vinte e tal. A acreditar em Pedro Rolo Duarte, Sting, que entre parêntesis já vai nos cinquenta e picos, compara-o "a uns daqueles imperadores romanos decadentes, cercados pelos bárbaros da Internet, que estão a acabar com o seu império". Mas as fotos da festa das bodas de ouro, que se podem ver na "Playboy" de Fevereiro de 2004, já à venda por aí, mostram-no em bastante boa forma e excepcionalmente num impecável "tuxedo". Duvido que os bárbaros, quando lá chegarem e se lá chegarem, consigam o mesmo estardalhaço.

2 - Em 1953, ano XVIII da Revolução Nacional, indecências como a "Playboy" não chegavam a Portugal, mesmo se, vistos de hoje, esses números de antanho nos apareçam tão puros e castos. Foi na maluca década seguinte que comecei a ouvir falar dela e a comprá-la às escondidas em Paris, usando do álibi de tantos "intelectuais" da época: nela colaboravam nomes maiores da literatura americana. A quem nos apanhava com a boca na botija, respondíamos que a tínhamos nas mãos por causa de Norman Mailer e não das mulheres nuas. A partir daí, não me lembro bem. Começou a haver coisas bem mais escandalosas ou já nada escandalizava ninguém, como se lamentava o velho Breton, de barbas até ao umbigo. Mas o mito permaneceu e pelos vistos permanece, já que, desse tempo, só a "Playboy" subsiste. E não conheço ninguém que, pelo menos de nome, ou de escaparate, a não conheça. E ainda há quem tenha pudor de a comprar seja a quem for. Mas isso são outras histórias e eu venho hoje para contar a minha.

3 - Foi em Los Angeles. Primavera de 1995. Estava por lá num congresso das Cinematecas, desses que há todos os anos nas sete partidas do mundo.
Quem chega a esses congressos recebe sempre, entre uma data de papelada, vários convites, qual deles o mais chato. Ou é o ministro ou é o presidente da câmara ou é o director de uma instituição cultural, que convida para um "cocktail", geralmente precedido por infindáveis discursos, em que os retardatários já não acham nada de beber nem nada de manjar. Daí o meu espanto, quando, entre vários envelopes, achei um com a inconfundível "trade-mark" e em que Hugh Hefner requestava o prazer da minha companhia para uma recepção em casa dele (a lendária Mansão) dia tal às tantas horas. Apressei-me a confirmar, sem perceber a razão do convite. Embora se anunciasse uma sessão de cinema.
Na tarde aprazada, meti-me num táxi com uns colegas (em Los Angeles, o táxi é o único transporte possível para quem não dispõe de carro próprio) Sunset Boulevard acima ou Sunset Boulevard abaixo. O cinema preparara-me para muito, mas não para a verificação experimental de que ser bi ou tri milionário na América ou na Europa é coisa distintíssima.
O táxi parou à porta de um enorme portão de aço, entre altíssimos e irídicos muros. O motorista tocou em intocáveis botões e, com os nossos convites na mão, respondeu a uma voz de oz com os nomes que os nossos pais nos deram. Os portões abriram-se à sésamo e o táxi entrou, após cuidada contagem dos ocupantes. Seguiram-se três quilómetros de subida (não exagero) por uma estrada ladeada por árvores soberbas, com inscrições em latim. Fosse eu minimamente botânico (desgraçadamente não o sou) e esmagaria os peritos com nomes venerandos. A certa altura, lembrei-me da Rebecca de Hitchcock e do susto da Joan Fontaine da primeira vez que entrou em Manderley. Lembranças não eram lembradas e achei-me diante de uma mansão que parecia a do Senhor de Winter. O táxi contornou-a e descemos num jardim de buxos a perder de vista.
Em pequeno, a minha mãezinha ensinou-me que, quando se é convidado, a primeira coisa a fazer é ir falar aos donos da casa. As regras ali eram diferentes. Numa vasta varanda, inconfundível na "silk red robe" e no "silk red pijama", Hugh Hefner conversava com uns íntimos e com umas íntimas. Nem pensar em lá chegar. Para o impedir, existiam uns polidos e corpulentos guarda-costas que nos saudavam em nome do mestre, enquanto conferiam discretamente o nome que lhes dizíamos com uma lista que tinham. E logo chegaram as coelhinhas, servindo copos, louramente insinuantes. Andando, tremiam-lhes as mesmas coisas que tremeram a Vénus quando subiu ao Olimpo para interceder pelo Gama. Qualquer coisa entre o jardim de Klingsor e o Venusberg.
Depois que de nós afastaram o desejo de comida e bebida, propuseram-nos uma voltinha. Começou pelo muito celebrado Grotto, que, ao princípio, parece a ribeira misteriosa da antiga feira popular e, a pouco e pouco, recorda os lagos e as grutas do rei-virgem da Baviera. Música afrodisíaca, estalactites e estalagmites a que só extremos de boa educação podem chamar símbolos fálicos ou vaginais. Por aqui me fico na descrição, que estas coisas mais vale imaginá-las do que nomeá-las.
Após as vinte mil léguas submarinas, a Arca de Noé. Quero eu dizer, um jardim zoológico a perder de vista, onde não vi feras, mas muitas girafas, zebras, avestruzes e cangurus. O luxo da colecção era a morada dos répteis e o espaço dos aquários. A colecção de peixes do Pacifico era particularmente prodigiosa.

4 - A essas horas, começava a anoitecer, as coelhinhas prometeram o resto para logo e levaram-nos para dentro. Era tempo de cinema. A sala privativa de Hugh Hefner cumulou os meus sonhos. Madeira escura, grandes maples de couro, mesinhas para o cinzeiro e para o copo, ecrã imenso. À frente, cadeirão especial para o anfitrião, que entrou por outra porta e nos introduziu, numa longa prelecção, ao filme que escolhera: a versão de 1939 de "The Hunchback of Notre Dame", realizada por William Dieterle, com Charles Laugthon e Maureen O'Hara. Bem ao meu estilo, contou de como amara o filme aos 13 anos e de como a seguir o foi amando vida fora. Nunca vi mais bela cópia dele.
Finda a sessão, alguns voltaram aos prazeres da mesa, enquanto outros (foi o meu caso) preferiram continuar a explorar os jardins. Não me arrependi, pois que as nossas guias nos levaram ao "santo dos santos", a peculiaríssima "garçonnière" de Hef.
Na sala de entrada, aquela versão da "Última Ceia", onde Clark Gable, James Dean, Marlon Brando, Elvis e sete outros bebem néctar e comem ambrósia. Uma parafernália erótica preenchia cada canto e cada recanto, até nos mostrarem os quartos e as casas de banho. As posições do "Kama-Sutra" ilustravam as portas, sugerindo a especialidade de cada câmara, como parece que foi de uso nos lupanares do século XIX. Entrado no primeiro quarto, fui-me abaixo das pernas, não por culpa delas, mas por culpa do chão, almofadado e elástico e não propriamente destinado à parte do corpo humano conhecida pelo nome de pés. Paredes e tectos de espelhos. Cada quarto cada cor, qual delas mais "kitsch" e mais berrante. Uma rampa de igual moleza levava às casas de banho, muito escuras e subterrâneas. Mas a luz, como tudo o resto, dependia do gosto de cada qual. Também se podiam iluminar feericamente as casas de banho e escurecer os quartos. Ideal para jogar às brincadeiras às escuras, à cabra-cega ou à linda barquinha do lindo luar.

5 - Quando voltei à Mansão, já havia poucos convidados, entretanto saídos ou entretanto recolhidos. Comecei a admirar a colecção de pintura de Hefner, sobretudo os seus Fragonard. Foi nessa altura que o homem de pijama de seda se aproximou de mim e a conversa voltou ao corcunda.
Contou-me ele então que sempre gostara tanto de ver filmes como de falar sobre eles. Mas, outrora, os amigos fugiam a sete pés dessas conversas intermináveis, sobretudo do seu requinte supremo que era contar um filme tintim por tintim. Por isso, quando ficou rico e famoso, resolveu organizar aquelas sessões. Eram sobretudo um pretexto para ele falar, demasiado sabendo que os agradecidos convidados não ousariam pateá-lo ou virar-lhe as costas. "Agora, como viu" (e fora bem verdade) "ouvem-me em religioso silêncio e, no fim, dão-me muitas palmas. All that money can buy".
"All", depois de tudo o que eu vira, era um exagero. Mas ficou-me a sensação (talvez errada) de que, pelo menos em 1995, ele se divertia bastante mais com essas cinéfilas palestras do que com as coelhinhas. Pelo menos, quando nos despedimos, já não havia coelhinhas nenhumas e ele estava a meio de me contar a versão de Lon Chaney (1923) do romance de Victor Hugo.
As almas têm, às vezes, encontros singulares.

João Bénard da Costa 30 de Janeiro 2004 in Público

sexta-feira, janeiro 23, 2004

O Rei, a Perna de Frango, as Coxas da Moça e o Apalpão  

1 - Há quinze dias, disse aqui todo o bem que penso da tradução de Frederico Lourenço de "A Odisseia". Hoje, limito-me a introduzir um excerto do texto "Uma Dinastia Sensível" de M.S. Lourenço. Apesar da relação de causa a efeito (ou de efeito a causa), não me move qualquer nepotismo ou qualquer compadrio. Aconteceu, simplesmente, que passei o fim do ano passado a ler o Homero de Frederico Lourenço e vivi o início do ano presente a pensar quotidianamente na actualidade do referido excerto. "Honni soit"...

2 - De resto, vou ser muito preguiçoso, já que, dada a extensão da passagem que vou citar, pouco haverá de mim nesta crónica. Limito-me a indicar-vos o tempo e o modo.
Foi mesmo n'"O Tempo e o Modo", revista ultimamente tão badalada, que M.S. Lourenço publicou "Uma Dinastia Sensível" (nº 62-63 - Setembro-Outubro de 1968), precisamente o exemplar da revista que assinalou o trambolhão de Salazar e o pinote de Marcello.
Que texto era esse? Uma glosa a uma famosa anedota sobre D. João VI. Dizia-se que o rei, assaz desbragado, comia pernas de frango que tirava dos bolsos, enquanto metia as mãos pelas saias das raparigas. O filho, D. Miguel, não era melhor: organizava largadas de touros contra os ministros reunidos em conselho.
M.S. Lourenço contou esta história com tema e variações. Cada versão dela era narrada com uso de diversas figuras de estilo e de diversas figuras de retórica: calão marxista, calão tradicionalista, à neo-realista, em "pastiche" de Agustina, ao estilo da "filosofia portuguesa", em silogismos, como jornalista adjectivante, como argumentista de um filme histórico à Leitão de Barros, etc., etc. As muitas pátrias da língua portuguesa para uma história pátria e bem pátria. Quem a quiser ler na íntegra (é um conselho que me permito) encontra-a na antologia de "O Tempo e o Modo" que o Centro Nacional de Cultura recentemente editou.
Mas a versão da história que me tem perseguido, ao sabor dos pátrios discursos deste luarento Janeiro, não é nenhuma dessas. É a versão em que um político concede a um jornalista uma entrevista sobre os acontecimentos acima sumariados. Passo ao que interessa, sem mais preâmbulos. "Remember".

3 - "Pensa V. Exa. que o Rei saiu efectivamente do palácio?
A pergunta, tal como está formulada, presta-se a equívocos que convém, inicialmente, desfazer. Por um lado, não interessa apurar o que os indivíduos, particularmente considerados, pensam acerca deste ou daquele acontecimento. A esfera privada da opinião merece todo o respeito e pode mesmo dizer-se que é de direito natural garantir esse domínio. Por outro lado, não é menos certo que na medida em que nós trazemos para a discussão toda esta gama de problemas, alguns esclarecimentos podem surgir e novas directrizes serem, digamos assim, corrigidas pela discussão útil e pelo debate construtivo.
Tem V. Exa. conhecimento que o Rei estivesse nesse momento a comer uma perna de frango?
Com efeito, não é agora a primeira vez que oiço a versão, que adiante já qualificarei, da perna de frango. Quanto a mim, julgo que as nações e os povos lucrariam singularmente em criar condições que impedissem o aparecimento de rumores, que outra finalidade não podem ter que não seja a agitação vazia, sem propósito verdadeiramente humanizador. Julgo que é uma tendência do Estado moderno e que actua predominantemente em duas linhas de força: uma que chamarei centrífuga e que é mais aquela a que me refiro acima e a complementar força centrípeta que é aquela que a sociedade tem que desenvolver se quiser permanecer para lá das modas passageiras e transitórias. Para mim tenho que nos devemos, agora e mais do que nunca, agarrar àquele conjunto de princípios imutáveis depositados na sabedoria das nações e na consciência dos povos. Eles constituem um denominador comum subjacente às diversas culturas e às diversas expressões políticas que essas culturas materializaram.
Julga V. Exa. que havia intenção, por parte do Rei, de violar a moça?
Julgo que se tem vindo a observar que o conjunto da opinião geral a esse respeito é particularmente animador. Se exceptuarmos uma pequena minoria sem peso real no conjunto do problema, podemos afirmar que a parte representativa e útil deixou de ver o problema desse modo. De resto, à medida que as próprias iniciativas e os pormenores da vida do Rei vão sendo conhecidos, mais se afirma a convicção de que a nossa tese acabará por triunfar. Pode mesmo dizer-se que já vão aparecendo sinais, que aumentam de dia para dia, indicando que num futuro próximo estaremos nesta mesma sala a considerar a questão dum modo bastante mais optimista.
Devemos então interpretar que V. Exa. opina pela ausência de intenção?
De modo algum a minha resposta autoriza essa interpretação. Mais uma vez ocorre dizer que o interesse público e o bem comum estão em causa quando se produz qualquer espécie de informação deficiente ou, o que seria pior ainda, intencionalmente deformadora. Existe uma função pública a ser desempenhada neste particular e que é de extensa importância.
Como interpretar então os testemunhos das pessoas que viram a moça com as saias levantadas?
Não é fácil responder a essa pergunta, não em razão da matéria de facto que ela encerra, mas antes dos problemas especificamente jurídicos que nela se contêm. Não pretendo sugerir que são falsos todos os testemunhos que se pretendem trazer para esclarecimento do problema ou da situação que estamos a enfrentar. O que tenho em vista é afirmar que eles não representam nem a substância das coisas nem as qualidades formais exigidas para o testemunho. Quando, contra toda a evidência dos factos, contra toda a razão, a experiência, a bom senso das gerações, um testemunho contraditório se ergue, creio não exagerar se pretender que esse testemunho é falso. Não é falso no domínio puramente factual. Mas é intrinsecamente falso. É falso pela necessária força evidente das coisas. É ainda falso formalmente, porque irrepresentativo. Não podemos hipotecar as nossas decisões e os nossos juízos mais graves ao primeiro testemunho que se nos apresentar. E tenho para mim que as sociedades muito aprenderão se se libertarem do jugo do testemunho. Não pretendo com isto dizer que o testemunho como tal, enquanto força pública e orientada para o interesse nacional, seja em si um erro. Ao contrário, o direito das gentes há muito que o consagrou. O que é com certeza um mal é o uso arbitrário do testemunho. Submeter todos os interesses ao testemunho como se ele fosse uma força omnipotente: é aí que reside, no meu entender, o mal. Por esse motivo eu creio que a tendência haverá de ser de colocar o testemunho, de o enquadrar nas coordenadas gerais do interesse colectivo. Em minha opinião é o Estado o órgão que por excelência poderá obter um verdadeiro rendimento moral do testemunho, na medida em que for capaz de criar estruturas que o desenvolvam e possibilitem o seu exercício.
Vê V. Exa. alguma relação entre os garraios e a dissolução da reunião?
É por demais óbvio que não há qualquer relação. Sob nenhum pretexto se poderá dizer que a reunião foi dissolvida. O Rei, de resto, conserva como uma das suas prerrogativas a suspensão temporária de uma reunião ou até do seu adiamento. Ainda se poderá sempre acrescentar que o aspecto exterior de uma reunião que termina por ter chegado ao fim da agenda de trabalho tem o mesmo aspecto da reunião a que nos referimos. É do conhecimento geral que nem sempre se consegue cumprir um horário marcado. Os atrasos que inevitavelmente surgem justificam sobejamente que alguns ministros se apressem para a saída.
Mas se o curro e a sala de reuniões são, como se presume, salas diferentes, como explica V. Exa. a presença dos garraios?
Sem dúvida que a essa pergunta não se pode responder sem que uma questão prévia seja resolvida. Porque o problema que se oculta subtilmente sob essa forma é o seguinte: como se pode pensar que a unidade se fragmente? Como admitir a presença de elementos diferentes numa realidade una? Julgo que as respostas que ao longo dos séculos os homens têm dado para este problema merecem uma reflexão atenta e um exame rigoroso. Foi ambição minha, e o futuro dirá se válida ou não, oferecer uma solução que conjugasse a continuidade do evoluir com as respostas mais conformes à razão, a moral e ao direito. Porque se é certo que é na continuidade de um processo histórico e na obediência a essa continuidade que as nações se radicam, não é menos certo que é necessário por vezes que alguns pontos de descontinuidade se apresentem para revitalizar a tradição. Uma sociedade que só vive de tradições é uma sociedade morta. Uma sociedade que só vive de inovações deixa de ser uma sociedade civilizada e regressa à anarquia tribal. E alguns sinais vemos hoje no Velho e sobretudo no Novo Mundo indicando que o direito tribal se está a tentar sobrepor ao direito que a cultura e a civilização das gerações conseguiram produzir. Creio por isso que no interior de um organismo uno não pode haver divisões. A divisão mata: a unidade fortifica. Quando a razão e a moral mostram à evidência que o organismo é uno, não se pode tolerar que ele se fragmente. Porque ao fragmentar-se desaparece. É preciso um esforço cada vez mais intenso, uma vigilância a cada hora mais generosa, para evitar divisões. A unidade é rica em potência, contém todas as virtualidades. Nada do que é conforme à moral e à razão necessita de se realizar fora dela. Mas isto sabe-se desde os gregos: e eu não estaria aqui a repeti-lo se não visse a ruína a aproximar-se das consciências e dos povos que o esquecem.»

De 1 a 22 de Janeiro, parece que os políticos portugueses têm usado, para a justiça ou para a economia, para as relações internas e para as relações externas, como principal fonte de inspiração esta notável entrevista.

João Bénard da Costa 23 Janeiro 2004 in Público

sábado, janeiro 17, 2004

A Guerra às Avessas 

1 - Quanto mais penso nesse filme, mais espantado fico. Na verdade, nem é no filme, relativamente banal e ensosso, mas no fim do filme. Se há, não conheço uma figura semelhante. A raiz quadrada de um número sem raiz quadrada. "Três quartas de cinema" ou "três quartas partes pretas de lã carneira?". Não estou a louvar nada nem a simplificar nada, embora as citações venham do poema de Cesariny, de que me lembrei a páginas tantas por razões que explicarei lá para o fim desta página.
É certo que estou no princípio e por isso convém que me explique antes que se faça ainda mais tarde.

2 - O filme, de que vos poupo o título original em russo, chama-se qualquer coisa como "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra", a acreditar nas traduções ocidentais, já que, antes deste Janeiro, nunca tinha sido exibido em Portugal.
Realizou-o um certo Ivan Pyriev (1901-1968) em 1944, ou seja, há 60 anos. Passou num ciclo que a Cinemateca está a finalizar, dedicado aos gelos e degelos do cinema soviético entre 1926 e 1968. Ou seja, a filmes que ou foram proibidos pela censura estalinista e dos camaradas que se seguiram, ou a filmes que foram mudados de cabo a rabo pelas mesmas censuras (em certos casos, por várias vezes e com cortes diferentes) ou a filmes que, pelo contrário, de tão perto seguiram a linha oficial que o tempo os tornou inacreditáveis e ainda mais reflectores que as obras tesouradas.
Quando se programam ciclos destes há riscos vários. Os mais ingénuos ou os mais distraídos acreditam que vão ver filmes de resistentes, que heroicamente denunciaram Estaline nos anos 30, 40 ou 50, Krustchev nos anos 50 e 60, ou Brejnev nos anos 60. Basta pensar duas vezes para perceber que filmes desses jamais podiam ter existido na União Soviética. Quem pensasse em filmar um plano sequer de crítica explícita ou implícita já estava na Sibéria (na melhor das hipóteses) antes de pegar na câmara. O que foi proibido ou censurado foi-o por razões circunstanciais, na maior parte dos casos difíceis de detectar a esta distância temporal e sabendo-se o que se sabe hoje. Aprende-se mais com os ortodoxos do que com os humilhados e ofendidos. Pyriev era desses ortodoxos. Um labrego segundo os amigos, mas um labrego com talento, que sabia do ofício, o poder prezou e o público - que-tem-sempre-razão - adorou. Vários filmes dele foram sucessos colossais na URSS, com muitos milhões de espectadores, coisa de povoar os sonhos dos gémeos lusos do século XXI.
"Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" foi um dos maiores. Filmado em 44 - em plena guerra e não depois dela -, conta a história de um bravo soldado russo (no cinema soviético, todos os soldados são bravos) que se apaixona por uma corajosa enfermeira (no cinema soviético, todas as enfermeiras são corajosas). Encontram-se por aqui e por acolá, cantam muito, na boa tradição do musical e, lá para o meio do filme, combinam casório para o fim da guerra. No dia desse fim, marcam encontro numa ponte de Moscovo, às seis da tarde. Mas eis que o soldado fica sem uma perna em combate. Como alma nobre que era, decide que não vai impor um inválido à bela enfermeira. Um amigo que lhe vá explicar que ele morreu, que ela não pense mais nele. Mas os amigos são para as ocasiões. A meio da piedosa mentira, o portador da má nova arrepende-se do que está a mentir. Conta-lhe a verdade e a rapariga corre para o hospital, para lhe jurar que não é perna a mais perna a menos que a aquece ou arrefece. Chegou a tempo. O soldado pensou melhor e achou-se egoísta, individualista e pequeno-burguês. Repetem a jura anterior. Só que, depois, é a rapariga quem apanha com um estilhaço e o espectador é levado a crer que ela morreu.
O soldado nada sabe. E, às seis da tarde, no dia do fim da guerra, lá está na ponte, à espera da noiva. Passam as 6, passam as 7 e nem novas nem mandados. Mas filmes destes, a leste como a oeste, fizeram-se para acabar bem. Quando protagonista e espectadores já desesperam, a moça, supõe-se que incólume, aparece-lhe e lá vem o abraço e beijo finais.
É evidente (até por este resumo o é, quanto mais pela visão do filme) que Pyriev viu muito cinema americano. Concretamente viu "Love Affair" de McCarey (1939), obra que, mai-lo seu "remake", "An Affair to Remember" do mesmo McCarey, e mai-los "remakes" feitos depois desse, suponho conhecida pela maioria dos meus leitores, Charles Boyer (ou Cary Grant) a combinar encontros no Empire State Building, com Irene Dunne (ou Deborah Kerr) a ser atropelada, a ficar paraplégica e a decidir desaparecer para não estragar a vida ao amado.
"Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" é uma variação sobre o mesmo tema, história de azares e de sortes.

3 - Mas não é isso que me embasbacou. Não precisei de chegar a esta idade para saber como o longo braço de Hollywood chegou até ao país dos comunistas e como os filmes mais exaltadores da glória do proletariado seguiram receitas capitalistas, disfarçadas com temperos locais.
O que é inédito é que, em 1944, quando ainda havia tropas alemãs em território russo e o desfecho embora previsível não fosse ainda de favas contadas, Pyriev não tenha hesitado em figurar o dia V, como se todo consumado fosse.
Eu sei que não faltam na história do cinema (até na história do cinema soviético) representações de futuros longínquos, isso a que se costuma chamar "ficção científica". Eu sei que ficções do real ou com o real foram o pão-nosso de cada dia. Mas nenhum filme ocidental, dos anos da guerra, ousou jamais mostrar o fim, antes de o fim chegar, ou deu dois passos em frente para olhar do futuro vitorioso o passado sangrento. Também nunca houve - nem nos mais delirantes filmes de propaganda anticomunista - representações da queda do Kremlin ou da queda do Muro. Neste caso, Pyriev não hesitou. Em 44, mostrou 45, na guerra mostrou a paz. Há quem diga que o fez para dilatar a crença de que o dia da vitória estava próximo. Afinal de contas, a "Marselhesa" ("le jour de gloire est arrivé") tanto se cantou no início das grandes guerras como no fim delas. E, como Pyriev até nem se enganou muito (a Alemanha rendeu-se um ano depois da estreia do filme), podemos absolvê-lo dessa antecipação pela premonição. Porque é que eu fiquei tão embasbacado?

4 - Precisamente, como já disse, por essa sequência final.
Séculos de cinema (passe o exagero) habituaram-nos a ver, documental ou ficcionada mente, o dia da Vitória como um dia de multidões transbordantes, enchendo as ruas, com soldados e paisanos abraçando-se furiosamente, num 25 de Abril em tamanho sobrenatural. A tamanha festa e a tamanha alegria. Tudo o que simbolicamente foi captado na lendária fotografia que deu volta ao mundo do marinheiro e da rapariga em abraço tremendo.
Pyriev, em 44, não tinha milhares de figurantes nem podia filmar nas ruas de Moscovo. Que fez ele? Construiu uns "décors" com a ponte tão citada no filme, ao fundo da qual uma transparência dava a sugestão do Kremlin, iluminado por holofotes. Agarrou em duas dezenas de figurantes, de ambos os sexos, e pô-los a passear de braço dado pela dita ponte. Casais jovens, casais de meia-idade, como domingueiros, como se andassem por ali a ver as vistas. Em primeiro plano, o herói da perna de pau, muito sozinho e muito ansioso. Nalguns cantos, outros vultos solitários, ora de mulher, ora de homem. À vez, vinham chegando os pares esperados pelos ditos cujos. Abraços e beijos e lá iam a passear, juntando-se aos outros. Até que só ficava sozinho o protagonista. Caía a noite e os casais iam para a noite deles, sempre vagarosos e emburguesados, com passos de um coro de ópera convencional, mais se assemelhando a espectros do que a humanos. E, quando por fim chegava a enfermeira, o abraço era tão púdico e tão desengraçado como só o cinema soviético filmou abraços e beijos. Mas tratava-se da girândola final. Pyriev não o esqueceu e, para a sublinha, guardou para esse momento uma largada de fogo-de-artifício digna da festa da Senhora dos Remédios em Forno de Algodres, sem desprimor para a Senhora e para o forno. Na banda sonora, muitos bum-bum-bum. Até encadear com a palavra fim.
E é essa sequência que não deixa de me perseguir desde o dia 7 de Janeiro. No país do "socialismo", na "pátria do povo", na terra dos sovietes, o fim da guerra foi celebrado por antecipação, sem povo, sem operários, sem camponeses, sem massas, sem qualquer desordem, sem qualquer alegria, a não ser a alegria breve de uns casais de namorados.
Moscovo é uma cidade fantasmagórica, inexistente para aquém e para além da ponte sombria e soturna. Ou seja, Pyriev imaginou tudo menos uma real festa popular. É totalmente surrealista, no sentido pejorativo da palavra. Fez frio e medo. Muito frio e muito medo.
Mas, pensando bem, talvez esteja certo. Para voltar a Cesariny e ao surrealismo, na verdadeira acepção da palavra: "Porque é que a enfermeira compra do Alves Redol quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã?" E nem sequer nisso pode mostrar que pensa. Na URSS, qualquer festa espontânea era espontaneamente inimaginável.

João Bénard da Costa 16 de Dezembro 2004 in Público

sábado, janeiro 10, 2004

Ninguém Que Não Tenha Nome 

1 - A colecção chamava-se "Os Grandes Livros da Humanidade". Julgo que se começou a publicar nos finais dos anos 30 do século passado, ou nos inícios dos anos 40. Editou-a a Livraria Sá da Costa, ao tempo em que também editou os famosos "clássicos" que permitiram o acesso efémero a muito do melhor da nossa literatura e da literatura universal.
Mas Os Grandes Livros da Humanidade eram adaptações dos mais "famosos textos", "destinados a promover nos jovens e no povo o gosto pela cultura". Não sei que resultado tiveram junto do "povo", mas desculpa-se o chavão pela generosidade do propósito. Junto dos jovens, por mim falo. Se aprendi a ler, devo-o, em boa parte, a esses livros brancos de capa a cor que me revelaram, era eu criança, a "Peregrinação e a História Trágico-Marítima", o "Caramuru" e a "Crónica do Condestável". António Sérgio, Aquilino, Jaime Cortesão, João de Barros, Marques Braga, etc. foram os adaptadores. Nem sempre brilhantes, mas quase sempre cativadores.
O melhor resultado - sempre falando por mim e por aqueles que de mim herdaram - foi alcançado por João de Barros (que eu ainda conheci, a buscar os netos à escola, baixinho, muito branquinho e de monóculo) com a adaptação da "Odisseia" de Homero, que foi o segundo título da colecção.
Na capa, figurava-se Polifemo, o Cíclope medonho, aquele que "não se assemelhava / a quem se alimenta de pão, mas antes ao cume cheio de arvoredos / de uma alta montanha, que à vista se destaca dos outros". Imenso e nu, com um só olho na testa, como todos os da sua estirpe, estava sentado no chão de uma gruta, com as partes vergonhosas convenientemente cobertas e segurava na enorme dextra dois jovens que se preparava para comer. Fosse pela capa (de Martins Barata) fosse pela narrativa do célebre episódio, a história do Cíclope que comeu seis dos dez companheiros de Ulisses foi sempre a que mais me fascinou, de entre as terríficas e maravilhosas aventuras de Ulisses, desde que saiu de Tróia, até que aportou em Ogígia, onde vivia Calipso, a deusa de belas tranças, "deusa terrível de fala humana" que dele cuidou e a ele amou (Cantos IX a XII da "Odisseia").
Muito mais tarde, em adaptação de adaptação, bem ao meu jeito e ao meu modo, contei-a aos meus filhos e aos meus netos, não me temendo de assustá-los com os três banquetes antropófagos e com a minuciosa descrição de como Ulisses cegou o monstro, girando no único olho dele o tronco de oliveira em brasa, até o sangue "correr quente em toda a volta". Entre um e outro festim carnal, tinham rido às gargalhadas, quando eu lhes contava como o astuto Ulisses o enganara no nome, dizendo chamar-se Ninguém. "Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me / a minha mãe, o meu pai e todos os meus companheiros." Mais riam quando, já cego, Polífemo chamava os irmãos cíclopes em seu socorro. "Quem te mata pelo dolo e pela violência?". "Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência". E eles iam-se embora, dizendo estas palavras "apetrechadas de asas". "Se na verdade ninguém te está a fazer mal e estás aí sozinho / não há maneira de fugires à doença que vem de Zeus." Ulisses "ria-se no coração", "porque os enganara o nome e a irrepreensível artimanha".
É claro - ou é escuro - que eu reforçava Homero entre os versos 385 e 420 do canto IX (porque é que os cantos nonos são sempre os mais libidinosos, é pergunta para que ainda não achei resposta). Polífemo não se ficava com a seca recusa dos irmãos. Na minha versão, também "destinada a promover nos meus descendentes o gosto pela cultura", sem que eu e eles tivéssemos disso clara consciência, Polífemo insistia: "Não! Não! Não se vão embora! Ninguém me faz mal! Ninguém me mata!" Três vezes o repetia, acentuando desesperadamente o Ninguém maiúsculo. Três vezes os outros o repreendiam. "Se ninguém te faz mal, se ninguém te mata, porque nos importunas a esta hora da noite e nos arrancas ao sono?" Entre a maiúscula e a minúscula, entre o nome definido e o pronome indefinido, Polífemo se perdia para gáudio de várias gerações de benardzinhos.

2 - Conheci, pois, a "Odisseia", mesmo se contada às crianças, em mui tenra idade e dei-a conhecer a crianças de igual tenrura. Além de Polífemo, o Cavalo de Tróia, Círce "a das muitas poções mágicas", a ilha das duas sereias, Cíla com as doze pernas, os seis pescoços e as três filas de dentes, a Caríbdis temível, sugadora da água escura, e as "robustas ovelhas do sol", pastoreadas pelas ninfas de belos cabelos, Featusa e Lampécia.
Só no fim da adolescência, entre o Pedro Nunes e os corredores do Convento de Jesus, no meio das voltas de muitos eléctricos, me abeirei (Clássicos Sá da Costa) da versão em prosa dos Padres Dias Palmeira e Alves Correia, de que me apartou o português retorcido. Foi nos tempos em que aprendi algum grego e, para meu grande espanto de hoje, juro que a Ana Maria e eu chegámos a traduzir do original os primeiros cem versos do canto I. Mas a plena revelação deu-se com a tradução francesa (em prosa, como a dos padres portugueses) de Mario Meunier, edição da Guide du Livre de Lausanne, que me acompanhou pela vida dentro.
Se me lembro do princípio, em francês o recordo: "Quel fut cet homme, Muse, raconte-le moi, cet homme aux milles astuces, qui si longtemps erra, après avoir renversé de Troade la sainte citadelle?" A pouco e pouco, esquecido o português de João de Barros, e ainda mais esquecido o grego dos meus 19 anos e de um explicador diligente e tímido, de quem nem o nome recordo, a "Odisseia" começou a falar-me em francês com um Odisseus de mil astúcias e uma Atena "aux yeux pers", adjectivo que me queriam convencer a traduzir por "glauco", palavra que sempre me pareceu feia, lembrando-me logo horrores de glaucomas.
Se sempre esse livro me foi "o livro" (pelo menos tanto quanto A Bíblia), faltou-me sempre, como para A Bíblia me falta, a língua dele. E, nestas coisas, não há volta a dar: ou a língua é a original (e é tarde demais para eu pensar em voltar a aprender grego, de que, néscio, tão cedo me distraí) ou a língua é a minha. Mas, na minha língua, nenhuma "Odisseia" me valia, embora me digam que há uma ou outra de tempos pretéritos e de acesso recôndito que vale a pena consultar.

3 - Por isso, o maior acontecimento editorial do ano que acabou há poucos dias foi o lançamento da tradução de Frederico Lourenço, que motivou esta subjectiva digressão, onde todas as passagens citadas entre aspas dele vêm, com a óbvia excepção das autocitações que fiz da minha versão oral para crianças.
Publicada pela Cotovia, essa tradução define logo, com clareza e concisão admiráveis, os seus dois objectivos fundamentais: a) colmatar uma lacuna evidente, pois que nenhuma tradução disponível, do original grego e em verso, existia para quem, como eu, procurava uma língua para Homero; b) "Devolver ao leitor de língua portuguesa o prazer do texto homérico. Significa isto que, apesar de vertida do grego e com a máxima fidelidade ao original, não é uma tradução arcaízante nem académica. É uma tradução para ser lida pelo gozo de ler."
Da fidelidade ao original não serei eu, pelas razões que já expliquei, a poder ajuizar. Mas aquela que é unanimemente reconhecida como a nossa maior helenista - falo da Prof. Maria Helena Rocha Pereira, conhecida por ser parca em elogios - já veio a público (creio mesmo que no PÚBLICO) gabar essa fidelidade. Quanto ao "gozo de ler" (e como eu estou agradecido ao Frederico Lourenço por ter tido a coragem de o invocar como objectivo supremo), ele me foi incomparável. Mais ainda quando a leio em voz alta ("além do que é preciso não esquecer que 'A Ilíada' e 'A Odisseia' são textos orais. Não foram concebidos para a leitura. A forma de recepção do texto, implícita na própria contextura poética, é a audição") do que quando a leio em voz baixa.
Não me sobra espaço para exemplos. Mas, no "verso aparentemente livre", "no fundo apoiado sobre o hexâmetro" e no ritmo dele, que Frederico Lourenço foi buscar a poetas como Sophia, Ruy Belo ou Eugénio de Andrade, soube ele encontrar a "pulsação das sílabas", num português em estado de graça. E, nesse português, contou a história do regresso a Ítaca de Odisseus, o filho de Laertes, aquele que só disse o seu nome e só contou essa sua história, quando o pai de Nausicaa, a das lindas vestes, lhe recordou que "entre os homens não há ninguém que não tenha nome, uma vez que tenha nascido".
E com o meu nome vos digo que um dia, quando assentar a poeira e não restar memória dos "light tops" editoriais de 2003, se saberá que o grande livro escrito em língua portuguesa, neste ano da Graça de Deus, foi "A Odisseia", traduzida por Frederico Lourenço, quando Palas Atena nele insuflou a grande força poética.

João Bénard da Costa 9 de Janeiro 2004 in Público

segunda-feira, janeiro 05, 2004

Do "Infeliz Machado" à Décima Segunda Noite 

1 - No segundo dia do ano, puxavam-me as calendas ou para um "in memoriam" de 2003 ou para agouros de 2004. Travei-me a tempo, pois não é bom começar um ano a repisar desgraças e muito menos a antevê-las. Felizmente, nenhum dever de cargo me obriga a dourar misérias, quer as presentes, quer as futuras. Prefiro aproveitar o presépio, que até à décima segunda noite - ou seja, à noite que precede a Epifania - é de uso continuar jacente sobre o musgo, à direita da lareira, na casa dos meus dias.
Antigamente, era nessa noite que se representavam os "inganni", para escolher a designação original italiana que esteve na base de tantos "enganos", de que o mais célebre é, sem dúvida, a comédia de Shakespeare, por isso mesmo conhecida como "Twelfth Night". Será extrapolar muito ver na melancólica e enigmática canção de Feste, o bobo, a expressão da possível reconciliação do mundo pagão com o mundo cristão, que é o cerne da noite dos reis? Se o for, não sou eu o primeiro a extrapolar assim. "A great while ago the world begun" e "for the rain it rained every day". Mas faltam ainda várias noites para chegar a essa noite e Gaspar, Melchior e Baltazar ainda vêm a caminho e ainda não deram com a língua nos dentes no Palácio de Herodes. Antes de lá chegar - à grande noite da Manifestação - volto a olhar para o presépio, prestes a voltar a misteriosas caixas de um misterioso sótão, à espera do próximo Natal.

2 - Não me volto para o meu presépio, assaz coitadinho, embora só o trocasse por aquele que o antecedeu (onde pára ele?), ainda mais rudimentar. Volto-me para um belo livro: "O Presépio Barroco Português", editado pela Bertrand e pela (ou por) FMR, da primeira vez que Franco Maria Ricci inclinou a vaidosa majestade para estas coisas de Portugal.
Conheci a personagem, ostentando na lapela a opalina flor encarnada que há tantos anos lhe serve de "ex libris", num jantar em Lisboa, aonde veio para o lançamento do tal livro. Na mesma noite, fui apresentado ao livro, que folheei com algum patriótico orgulho. FMR em Portugal, dedicado aos presépios portugueses? Era bem verdade. É bem verdade. Para quem o não conheça, explico que se trata do editor da mais sofisticada revista de arte do mundo, de que sou fiel leitor há muitos anos e que me deu alguns dos maiores prazeres voyeuristas da minha vida. FMR faz jogo homófono com "Efémero" ("Ephemeris"), mas a revista nunca me foi efémera, como o não foram as várias dezenas de livros pulcros, por ele publicados. Mas por ele soube, com pena imensa, que efémera a revista será, já que decidiu acabar com ela, com as edições e com as livrarias de ébano que abriu por toda a Itália e quase toda a Europa (Portugal é a excepção, se acaso for Europa) em meados do próximo ano. Para se dedicar a um projecto tão megalómano como os antigos: construir um labirinto inspirado em Borges, sob a sua cidade natal de Parma, aproveitando o que resta de antigas catacumbas.
Assim, o livro de que vos falo - e que a Bertrand pôs no sapatinho do nosso Natal de 2003 - é uma das suas últimas edições.
Nessa noite, em que pela primeira vez o vi, a espantosa beleza das reproduções a cores, das fotografias dos presépios representados (Massimo Listri fotografou), o requinte do formato, do papel e da paginação deram-me o mesmo prazer que qualquer outra das edições de Ricci. Juntou-se-lhe (já falei de patriotismo) a alegria de verificar que, pela primeira vez, se fazia justiça a algumas das peças maiores da nossa arte, até hoje mal estudadas, mal conhecidas e desabrigadas por muitos pousios e pela costumeira incúria.
Uma mais atenta leitura da obra, não me deixou tão entusiasmado. O fulgor do livro é o fulgor FMR, responsável apenas pelo soberbo "design". O conteúdo é francamente mais pobre e não ensina muito a quem, como eu, pouco sabe da matéria. Além disso, dos muitos núcleos barrocos e presepistas ainda existentes em Portugal (incontáveis os que se perderam), só oito figuram no volume: o da Basílica da Estrela, o dos Marqueses de Belas, há muito no Museu de Arte Antiga, onde me foi maravilha fatal noutras idades; o da Sé de Lisboa (o chamado "Presépio do Beneficiário Oliveira" que me dizem actualmente em restauro); o do Palácio das Necessidades, também visível no Museu de Arte Antiga; o da Igreja de S. José; o da Madre de Deus (Museu Nacional do Azulejo); o de S. Vicente de Fora, dito "do Patriarcado de Lisboa"; e o do Palácio Nacional de Queluz.
Na introdução, diz-se que são apenas oito "por razões diversas". Quais sejam essas razões, não foi achado explicarem-nas. De um me lembro eu bem que pertenceu (ou pertence?) à família Pulido Garcia e que se dizia ser a mais extraordinária obra de Machado de Castro, que, no entanto, só assinou o da Sé de Lisboa.
Convém pois atenuar o entusiasmo inicial. Este ainda não é o grande livro sobre os presépios barrocos portugueses, que continua a não existir. Quase todas as perguntas que sobre eles me faço não têm resposta. Sem lhe beliscar a inconfundível beleza (é certamente um dos mas belos livros editados em Portugal nos chamados "nossos tempos") sabe a pouco.

3 - Das perguntas que eu faço, a maior tem que ver com o próprio Machado de Castro. Por mais que eu saiba e se saiba que foram alguns os presepistas portugueses dignos de nota, sobretudo na segunda metade do século XVIII e nos princípios do século XIX. Machado de Castro suscita-me a mesma perplexidade que, noutros domínios, me levanta a obra de Cesário Verde ou a de Manoel de Oliveira. Não acredito em génios espontâneos, ou em génios desligados de uma cultura envolvente pujante.
Ora, para me limitar a Machado de Castro, onde pôde ele aprender tudo o que soube? Nas habilitações da Ordem de Cristo que, por diploma de 1778, o Senhor D. José lhe deu, com uma tença efectiva de 30 mil reis, consta que das "provenças que se fizerão a Joaquim Machado de Castro, para receber o hábito de Cristo, constou de tudo na forma dos interrogatórios: porém, no seu princípio, ocupou-se a fazer figuras de pau e barro, a concertar órgãos por dinheiro, e ao presente é delineador do risco das obras de cantaria na Casa do Risco do Arsenal Real: o pai teve a mesma ocupação de fazer figuras por dinheiro, o avô paterno foi alfaiate e a mãe caseadeira de vestidos. O avô materno foi sapateiro, a mãe e a avó materna de segunda condição".
Fala-se da Escola de Mafra, mas o que foi ao certo essa escola ninguém sabe. Virá o milagre do italiano Alessandro Giusti (1715-1799), que veio para Portugal em 1747, foi director da Escola de Mafra de 1753 a 1770 e durante 14 anos (1756-1770) foi mestre dele? Deve buscar-se em Giusti o elo que explica Machado, admitindo que aquele seria expoente da escola presepista napolitana, seguramente uma das fontes da portuguesa?
Seja como for, este homem, que até aos 25 anos só terá tido aprendizagem caseira e nunca saiu de Portugal, não se limitou a ser um imitador. Mesmo não pensando na berniniana estátua equestre de D. José (a obra máxima da escultura portuguesa), como conseguiu Machado de Castro transformar a opulência dos presépios napolitanos, frementes de espanholismo e de figuras pomposamente vestidas com sedas e brocados, na plebeíssima imagética dos presépios portugueses em terracota pintada? E porque desapareceu com ele, após a sua longa vida de 91 anos (1731-1822), esse estupendo "savoir-faire", fazendo dizer ao seu primeiro biógrafo (Aires Rodrigues) "trabalhou amargurado, pagando assim desde logo com desgostos a fortuna de estar fabricando por suas próprias mãos a sua própria imortalidade"? Ele próprio a si próprio se chamou "o infeliz Machado", embora fosse suficientemente consciente do seu valor para dizer que antecipadamente desprezava todas as censuras - "Porque não as espero dos que são capazes de exceder-me."
Mas, sem que eu saiba como, os presépios de Machado são a mais funda representação do que a Epifania celebra. Como escreveu S. Leão, no século V, o que a vinda dos magos, que não eram reis mas eram sábios, significa é a manifestação de Cristo aos gentios, reunindo em torno da manjedoura pastores e campónios com poderosos, que Herodes chamou ao seu palácio e que trouxeram ao Menino ouro, incenso e mirra. "Ouro em reconhecimento da realeza - incenso como prova de divindade - e mirra (a resina aromática) em testemunho da sua humanidade." Vejam-se no livro aqueles pormenores de homens do povo entregando presentes, ou levando porcos, ou dos reis magos, veja-se sobretudo a Adoração dos Magos do presépio da Estrela, e percebe-se como a visão se pode aproximar da Manifestação que a ninguém exclui e a todos inclui.

4 - Ao contrário dos presépios napolitanos (cúmulo do teatro do mundo e do paganismo cristão), os presépios barrocos portugueses não exibem, na gruta, e nas principais personagens dela, qualquer magnificência. O teatro - porque sempre de teatro se trata - desce ao povo e elege como protagonistas essa infinda galeria de portugueses rústicos, seja a Sagrada Família, sejam os pastores e artífices, logrando que os seus humaníssimos rostos e vestes tenham a mesma riqueza que a comitiva dos magos, com seus animais exóticos. Todos são apoteóticos, mas a apoteose não é divergente, é convergente.
A décima segunda noite, como Machado de Castro a viu, continua a primeira. É a noite do acatamento.
Imensas fugas. Breves pausas.

João Bénard da Costa 2 de Janeiro 2004 in Público

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