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sábado, maio 29, 2004

Agustina 

1 - "A justiça é uma coisa furtiva como um ladrão na noite." Agustina Bessa-Luís ganhou o Prémio Camões. Foi em Maio de 2004.

2 - Foi em Maio de 1957 que eu comprei o meu primeiro livro de Agustina. Assim dito, dou-me agora conta, parece o princípio da história do Mestre André ("Foi na loja do Mestre André que eu comprei um pifarinho"). Chama-se "A Muralha".
Não andava propriamente a farejar novos talentos na literatura portuguesa. Sobravam-me os que já conhecia e, na terna guerra onde me começava a perder, acreditava que eles só iam chegar com a minha geração, mais ano menos ano. Mas um desses futuríveis mestres citou-me Agustina como a excepção à minha recém-estabelecida regra. Falou-me de "A Sibila" (1954) que eu só li tempos depois. Por isso, quando dei de caras com "A Muralha" na velha Buchholz da esquina da Rua das Pretas, ou quando "A Muralha" deu de caras comigo (nessa, como noutras coisas, não devemos ser dogmáticos), hesitei entre comprá-lo ou não o comprar. Para tirar teimas, recorri a outra superstição que me tinham ensinado: ler o último parágrafo. Afinal, fixei-me no penúltimo, onde está escrito: "Fome de pão, fome de raça humana, duma povoação nova e de mestres jovens que venham, dos mundos consumados, contemplar-nos apenas, sem programas, sem chama de progresso, sem doutrina e urgência de vencer - apenas com amor." Dez linhas abaixo, estava inscrita a data do termo do livro: Porto, 7 de Fevereiro de 1957. É o dia dos meus anos, era o dia dos meus 21 anos. Não hesitei mais. Comprei o livro.
Começou então a história de uma paixão. Um mês depois, reencontrei o Alberto Vaz da Silva e numa noite sem lua em que Arturo Benedetti Michelangeli tocou em Lisboa, descobri que essa paixão era compartilhada. Ele preferira "Os Incuráveis" (1955) à "Muralha". Sei que li os dois de seguida, ainda antes de 26 de Julho de 1958. "Que depravação a dos corações de boa memória!...", diz-se - disse Zita - em "A Muralha". E é muito poucas páginas antes dessa que Zita descobre, depois de beber um pouco de chá frio com o filho, como Gerson gostava, que a chávena em que o servira tinha na borda "uma marca em elipse de pintura". Era uma chávena suja que servira a qualquer mulher. Aquele incidente, aquele desleixo, apoquentou-a tanto que o mandou embora.
A criada "veio trazer-lhe os leves chinelos de veludo e apagou um a um os candelabros. Zita sentiu a singular aventura daquela sala vazia e uma dor rompeu-lhe do cérebro, exactamente como há pouco aquela preocupação de desmazelo que a obrigara a corar diante de Gerson. Levantou-se, andou alguns passos rapidamente, como procurando distrair essa dor ameaçadora doutras maiores. Mas nem o sono, nem a alegre vigília dessa noite, passada outra vez em recordação, nem a soma, pesada e repesada, dos seus triunfos e das vantagens que usufruía, nada pôde dar-lhe consolação. Havia sempre o minuto pungente em que, na sala deserta, ela conhecera, nada mais que por um instante agudíssimo e terrível, o significado da sua infrutífera solidão."
Quando o Alberto me falou de "Os Incuráveis", demorou-se também num minuto pungente, num instante agudíssimo e terrível. Era aquela despedida no tombadilho dum barco, quando Petronila, "implacável mãe", estava grávida e regressou sozinha para o continente. O véu dela era cinzento, o marido ergueu-o "com a mão que tremia" e beijou-a "de levezinho como se beija um morto, como quem diz adeus até ao fim do mundo". Em "Os Incuráveis", esse episódio é narrado em discurso directo por Mariano, depois da morte da Petronila, numa poltrona de couro. O que citei na terceira pessoa, o que me foi citado na terceira pessoa, era a longa fala, ou solilóquio, do filho para a velha criada. E essas duas páginas, que começavam: "Lea, corta-me uma madeixa dos seus cabelos, e tira-lhe do dedo a aliança... Há uma bolsa de cetim branco que tem dentro um ramo de laranjeira." E acabava com: "Mas em nada disso está final o amor, que é a graça de estar presente e simultaneamente extinto na afirmação de todas as coisas e de todos os outros." Essas duas páginas, digo-vos eu, são as mais belas que já li em língua portuguesa.
Depois, em todos os livros de Agustina (e à excepção de "Mundo Fechado" e "Os Super-Homens"), eu li-os todos, há sempre, oculto ou escancarado, esse instante pungente, de onde irradia toda a ficção, para onde converge toda a ficção.
Há um conto publicado há muitos anos na "Colóquio-Letras" - Fernando de Azevedo fez para ele uma magnífica colagem - que o escolhe por protagonista. Ao entrar na casa de jantar, o dono de uma casa feliz surpreende uma criadita muito nova a trincar uma pêra e repara na marca dos belos dentes dela no fruto sumarento. Depois, uma porção de desgraças sucederam precipitadamente. E só no fim, como Tamar ou como Job, o senhor se volta a lembrar dos dentes e do fruto, o minuto que decidiu de tudo, o minuto que decidiu tudo. Não se confessa, como o Rafael dos "Incuráveis", não se afoga como o Domingos dos "Ternos Guerreiros" (1960), não diz: "Pai, eu tenho um pecado (...) Meu pai, eu tenho um grande pecado (...) Foi um pecado tamanho!" Nem era preciso que o dissesse. Na sombra de um aparador, acontece aquilo que não se deve nomear, nem que seja para o corrigir.
"Há coisas que fazem tanta pena", disse Agustina noutro livro qualquer (eu não posso citar os livros todos). Farei um grande pecado, se disser "há coisas que fazem tanta saudade"? Em 1960, éramos, como os protagonistas de "Ternos Guerreiros" (livro que não tenho à mão, porque o emprestei e nunca mais mo devolveram), novos demais na terra, corações melodiosos e sem culpa, como anjos precipitados e dos quais Deus - diz-se (Agustina disse) - teria uma saudade infinda.
"We Can't Go Home Again". E agora já estou a falar de Nicholas Ray, também paixão desses anos, também sabedor dos instantes agudíssimos e terríveis. Por alguma razão, quem nos conhece desses anos, ou nesses anos, nos chamava, ao Alberto e a mim, "os maluquinhos de Ray e de Agustina". E se, como o Richard Burton de "Bitter Victory", "I always contradict myself", nessas duas paixões nunca me contradisse.

3 - Mas mal sabia eu - mal sabíamos nós - quanto esse agustinianismo nos ia pôr nas bocas do mundo. Enquanto foi coisa só nossa - ou de nós parecidos com nós - não teve grande consequência. Quando (1963) eu me achei chefe de redacção de "O Tempo e o Modo" e o Alberto Vaz da Silva responsável pela secção de Artes e Letras, bateram-nos a valer. Agustina, suspeitosissimamente olhada pela esquerda de então (mesmo a mais liberal) chamada e exaltada a quase cada número de uma revista progressista? Como era possível? Logo no número 1 uma crítica ditirâmbica a "O Manto" (1965), da autoria de Manuel Poppe, logo no número 3 um capítulo do então ainda inédito "O Sermão do Fogo" (1963).
Foi nesse ano que, em casa de Sophia ou em casa de José Palla e Carmo, a conhecemos. Mas "os caminhos da amizade seriam melancólicos, se não fosse o mistério da sua própria virtude". Ao longo de 40 anos, desde esse 1963 do "Sermão do Fogo", dos almoços na Caravela com a Sophia, e da história do lobo que inventou a amizade, "tempos em que Ferrabrás era mundo e os porcos passeavam pelas cidades com uma faca espetada no lombo, meios cozidos, meios assados e uma maçã vermelha na boca", até hoje, terei estado com Agustina umas 40 vezes, mas se sempre a li perto, sempre a vi longe.
Ainda em 1963, escreveu-me ela uma carta (ou escreveu-a ao Alberto Vaz da Silva, questão que nós dois temos em aberto) sobre contas a ajustar. "Eu projecto agora uma pequena caminhada a Itália, preciso de meias solas nos meus sapatinhos de ferro e não é o vento norte quem me ajuda." Anos depois, com muita surpresa (tudo isto foi antes do 25 de Abril), recebi outra carta dela a convidar-me para colaborar numa revista que ela tinha sido convidada a dirigir. De evidência disse-lhe logo que sim, mas o projecto não foi avante e nunca pude, pois, colaborar com ela, a não ser quando, muito mais tarde, nos cruzámos em filmes de Oliveira. Graças a Oliveira (também) passámos uns dias em Turim, com jantares em que ela contou contos como só ela conta. Como a vida não tem acasos, dois editores diferentes se lembraram de nós dois, de uma vez para os sete pecados mortais, de outra vez para as sagradas escrituras. Noutra ocasião, convidei-a eu para apresentar um filme, à livre escolha dela, na Cinemateca. Escolheu "As You Like It" de Paul Czinner com Elisabeth Bergner e um juvenilíssimo Laurence Olivier, em Osalinda e em Orlando. É um filme inglês de 1936, jamais estreado em Portugal e rarissimamente reposto. Corri Esparta e Tróia em busca dele e achei-o. Mas perguntei aos meus botões onde, diabo, o teria visto ela, que no Porto não fora certamente. Quando Agustina chegou à Cinemateca, fiz-lhe a pergunta. Resposta imediata: "Nunca o vi. E foi por isso que o escolhi. Queria vê-lo."

4 - Este texto ficaria incerto - tão incerto como aquela história que Agustina contou um dia na televisão sobre a felicidade e a infelicidade e os sinos de um campanário -, se a não terminasse com um último "flash-back". São, de novo, os anos 60 e é o disco em que ela lê a história de "A Mãe de Um Rio", outra história de instantes terríveis. Tantas vezes a ouvi que se tornou inaudível. Valha-me o vento norte para mo repor no sapatinho e eu tornar a escutar, na voz levezinha dela: "Antigamente, antigamente sim. A terra tinha a forma quadrada e um rio de fogo corria na superfície." Agustina como dantes. Agustina como agora.

5 - "A justiça é uma coisa furtiva como um ladrão na noite." Agustina Bessa-Luís ganhou o Prémio Camões. Foi em Maio de 2004.

João Bénard da Costa 28 de Maio 2004 in Público

sábado, maio 15, 2004

Dalí, a Omelete e o Português  

1 - "Oh Salvador Dalí, de voz aceitunada!" Fazia-o morto há muitos anos, era de Inverno e era de 1989, e ei-lo que ressuscitou, finalmente centenário, a 11 de Maio desta semana, dia da festa de Catarina de Pozuelo. Tinha obrigação de saber mas estava distraído e foram os jornais quem mo lembrou. Saudades? Não muitas. Sempre o vi de longe, às vezes divertido, mais frequentemente sem muita pachorra. Pode ser da idade, já que, na altura em que descobri o surrealismo, os surrealistas lhe cuspiam em cima, como, ainda era novinho, ele cuspiu em cima do retrato da mãe.
Foi Buñuel quem me contou esta história. Quando, em finais de 1929 (Buñuel com 29 anos, Dalí com 25), foi ter com ele a Figueras, para fazerem juntos "L'Âge d'Or", com o rico dinheirinho do visconde de Noailles, o caldo estava entornado. O pai do pintor tinha descoberto um quadro em que este escrevera em letras garrafais: "Cuspo alegremente em cima do retrato da minha mãe." Deu-lhe um pontapé em sítios sensíveis e pô-lo no olho da rua. Não se iam repetir os doces dias de um ano antes, quando os dois, em recôndita harmonia, tinham escrito a quatro mãos o argumento de "Un Chien Andalou". Não foi só por falta de casa. Os egos de cada um deles, que não eram murchos, já se olhavam desconfiados. Dalí achava que Buñuel lhe roubara os louros do andaluz. Buñuel suspeitava que Dalí pensava que um filme é de quem o escreve e não de quem o realiza. Além disso, Dalí já tinha roubado Gala a Éluard e, ouriço ou rinoceronte, a futura "virgem auto-sodomizada pelos cornos da sua própria castidade", embirrava com o amigo Luís e não gostava da sua companhia. Buñuel saiu depressa de Cadaqués e, como "o grande masturbador", foi escrever sozinho o argumento de "L'Âge d'Or" em Hyères, numa propriedade dos viscondes.
No futuro, fizeram-se muitas maldades. Quando Dalí chegou à América, em Junho de 1940, soube que o cineasta também por lá andava e até tinha um bom emprego no departamento de cinema do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Dalí já tinha namoro com o franquismo, embora namoro à distância. Buñuel era um exilado político, que servira a Espanha republicana. Quando conheceu Rockefeller, que tinha entendido num sentido demasiado americano a profissão de republicanismo que Buñuel lhe fizera, perguntou-lhe como era possível que um museu dele (dele, Rockefeller) desse emprego a um ateu comunista. Como é óbvio, deixou de dar. Graças ao velho amigo, Buñuel ficou desempregado.
Nos anos 50, andava Buñuel pelo México a fazer melodramas, a que ninguém prestava atenção, Dalí, interrogado sobre a verdadeira autoria de "Un Chien Andalou" e de "L'Âge d'Or", respondeu que felizmente as merdas que o cineasta andava a fazer metiam pelos olhos do mais cego quem era quem nesses celebérrimos títulos.
Consta que, quando ambos já eram octogenários, e não se viam nem se falavam há quarenta anos, Dalí teria feito saber a Buñuel que, antes de morrerem, gostava de voltar a beber um "dry-martini" com ele. "Também eu", mandou-lhe dizer o realizador. "Só que já não bebo dry-martinis."

2 - Meti-me por Buñuel e perdi-me em vias lácteas. Onde é que eu ia, ou por onde é que eu comecei? Pois é. Estava a falar dos meus mornos sentimentos pelo pintor dos bigodes. Também se devem a Buñuel, que não foi nada meigo com ele, como é compreensível. É preferível voltar ao Salvador Dalí, "de voz aceitunada", da "Oda a Salvador Dalí" de Garcia Lorca, poema de 1925.
Puxei-me pela língua e cá vai outra pouco comemorativa. Sabem o que respondeu Dalí, em 1966, quando Alain Bosquet lhe perguntou o que é que ele tinha sentido quando soube do fuzilamento de Lorca? "Fiquei contentíssimo. Aliás, como sou um jesuíta dos bons, de cada vez que morre um amigo meu, tenho a sensação que fui eu quem deu cabo dele, que ele morreu por minha causa." Era o mesmo Lorca de quem, em tempos, Dalí dissera "personificar por si só o fenómeno poético na sua totalidade: confuso, sanguinolento, viscoso e sublime"? Era. Mas Dalí mudou mais na vida do que na pintura, essa pintura que tanto mudou.
Em qualquer caso, há um ponto em que eu acho que ele não mudou e que é justamente salientado na ode de Lorca. É o que se refere à "firme dirección de tus flechas", "a tu bello esfuerzo de luces catalanas". Infelizmente, se esse acerto das flechas e esse esforço de luz estão quase sempre presentes na obra de Dalí, este não seguiu o conselho com que Lorca concluiu a ode citada: "No mires la clepsidra con alas membranosas, / ni la dura guadaña de las alegorías / Viste y desnuda siempre tu pincel en el aire / frente a la mar poblada con barcos y marinos."

3 - Houve um cineasta - outro cineasta - que teve olhos para ver isso. Foi Alfred Hitchcock, quando, em 1945, convenceu Selznick a convencer Dalí a conceber a célebre sequência do sonho de Gregory Peck em "Spellbound".
"Pedi a Selznick que conseguisse que Dalí viesse trabalhar connosco. Aceitou, mas julgo que nunca percebeu as minhas razões. Provavelmente, pensou sobretudo numa operação publicitária, enquanto o que eu queria era mostrar sonhos de uma grande nitidez visual, com traços agudos e claros, imagens muito mais claras do que as do resto do filme. Até aí, tradicionalmente, as sequências de sonho em cinema eram sempre mostradas entre turbilhões de nuvens, voluntariamente vagas e imprecisas, com personagens evoluindo numa mesclada bruma de neve carbónica e de fumarada. Eram essas as convenções reinantes e eu decidi fazer o contrário. Escolhi Dalí porque há, na maneira de pintar dele, uma precisão alucinatória, exactamente oposta às evanescências e às névoas. Chirico também podia ter servido. As longa sombras, o infinito das distâncias, as linhas que convergem na perspectiva... rostos sem forma."
Parece que esse sonho, que na versão final do filme não chega a durar mais de cinco minutos, teve inicialmente uma muito maior duração. "Naturalmente" - disse Hitchcock - "Dalí inventou coisas estranhíssimas que não foram possíveis de realizar. Uma estátua que se partia e de dentro dela saíam formigas que depois a cobriam toda. Até se chegou a ver Ingrid Bergman coberta por formigas." Mas há uma fotografia (infelizmente a imagem não está no filme) em que se vê Ingrid Bergman com uma espécie de cilício e o pescoço envolto por uma coleira de metal, com uma flecha. E, nesse sonho de Gregory Peck com uma Ingrid Bergman ninfomaníaca, aos beijos a todos os homens, conservaram-se felizmente os homens sem rosto segurando rodas moles e um cabaré de paredes cobertas de olhos, que outro homem corta ao meio com um gigantesco par de tesouras. Raccord longínquo com a famosa cena do olho rasgado ao meio por uma lâmina de barba, no início de "Un Chien Andalou", tão mais insuportável quanto é mais luminosa a córnea branca que a lâmina vai cortar. "No trespassing". E tudo está trespassado. E é a lua ou são os olhos? Tudo pode ser tudo, como em todos os símbolos e como também aconteceu no "Chien" com as mamas e com os rabos (ou mamas-rabos, ou rabos-mamas) da mulher nua, que, apalpados pelo amante, o mergulham em tal êxtase. Não há dissoluções mas ininterrupta continuidade. Era o tempo (1929) dos "desejos insaciados". Tempo que, efemeramente, regressou, em 1945, não numa tela mas nuns minutos de um filme de Hitchcock.

4 - Deixei Dalí vogar em cinema. Não vou sair desse vagar. Em 1937, Dalí escreveu a "análise surrealista e espectral dos céus hollywoodianos".
Reza assim:
"ESPECTROS
Cecil B. DeMille é surrealista pelo seu sadismo e pela sua fantasia.
Harpo Marx é surrealista em tudo
O bigode de Adolphe Menjou é surrealista
Clark Gable não é surrealista
Et cetera
FANTASMAS
Gary Cooper é surrealista nesse filme de sonho e delírio que é 'Peter Ibbetson', e também com a sua tuba em 'Mr. Deeds'.
O êxtase de Garbo é surrealista
William Powell é surrealista pelas ruínas do seu olhar
Robert Taylor não é surrealista
Groucho Marx é surrealista pelo seu cinismo e pelo seu marximo
Et ecetera."
Por isso, talvez não seja de espantar que a primeira tentativa de Dalí para voltar ao cinema, depois de "L'Âge d'Or", tenha sido o projecto de um filme com Harpo Marx, a quem ofereceu uma harpa com cordas feitas de arame farpado, embrulhadas em celofane. O filme esteve para se chamar "Giraffes on Horseback Salad".
Por isso, talvez não seja de espantar que, depois de Hitchcock, tenha batido à porta de Walt Disney para um certo "Destino".
Por isso, talvez não seja de espantar que, em 1954, Dalí escrevesse "O Carrinho de Mão de Carne" em que haveria uma cena, nas margens do lago de Vilabertran, em que Nietzsche, Luís II da Baviera e Karl Marx cantariam com virtuosismo inultrapassável as respectivas doutrinas, acompanhadas a Bizet. No meio do lago, a tremer de frio, com água até à cintura, uma velha muito velha, vestida de toureiro, teria como penteado uma "omelette aux fines herbes" em instável equilíbrio na cabeça careca. De cada vez que a omelete escorregasse e caísse na água, um português fritava outra e voltava a pô-la.
Não houve girafas, não houve destino, não houve carrinho de mão. É por isso que prefiro que recordem o Salvador Dalí de voz de azeitona ou a "Vénus y Cupidillos" de 1925. Não desfazendo no português das omeletes.

João Bénard da Costa 14 de Maio 2004 in Público

sexta-feira, maio 07, 2004

A Noite de Ceres 

1 - A 11 de Agosto de 2001 - poucas horas antes de um dos mais duros telefonemas da minha vida - , na Alte Pinakothek de Munique, o Jorge fez-me reparar que o "descanso na fuga para o Egipto", um dos temas mais recorrentes na pintura ocidental entre o século XV e o século XVIII, não era referido por nenhum dos Evangelistas. Estávamos diante de um óleo pintado sobre cobre, assinado por um pintor que só muito vagamente me dizia alguma coisa: Adam Elsheimer. Um cobre de pequenas dimensões (31x41) mas que, mesmo de longe, saltava aos olhos. Saltava aos olhos? Dez anos antes eu visitara essa Pinacoteca - mítica para mim, desde a mais remota infância - e não me lembrava de o ter visto. Devia estar tão aturdido com a imensidão das telas que há quarenta e oitos anos me esperavam - longa, longuíssima noite - que Elsheimer me passou em claro ou me ficou em escuro. Ou então ainda não estava preparado para o encontrar. Acontece ou acontece-me.
Mas a 11 de Agosto de 2001, não. O tema (já lá vou) costuma ser pintado à luz do dia ou à luz do entardecer. No óleo de Elsheimer (se há, não me lembro de outra representação semelhante) a Sagrada Família descansa à noite. Aliás, não é ela, quase toda no escuro, quem se impõe a atenção, embora esteja no centro da placa. Em noite tão cerrada, em meio a tão brumoso e manso bosque, duas fontes de luz convocaram-me primeiro. À esquerda, a fogueira acesa por uns quantos pastores, que ainda não repararam na aproximação dos foragidos, concentrados numa labuta mais tardia. À direita, a lua muito cheia, reflectida nas águas de um lago, tão redonda no céu, onde acabou de nascer, como nas águas onde se começou a reflectir.
Só depois reparei numa terceira fonte que noctiluz. É uma tocha na mão de S. José, que provavelmente lhe serviu para guiar os passos do burrito, depois do escurecer e antes do nascimento da lua. Só então observei que, sem essa tocha, pouco visível e virada para o solo, nem veríamos a Virgem, que ele se prepara para ajudar a descer, nem o Menino que traz ao colo. O luar ainda não chegou até eles e grandes árvores, muito frondosas, interpõem-se entre eles e a fogueira dos camponeses. As copas das árvores formam uma diagonal que desce da esquerda alta, onde estão os pastores, até à direita baixa das águas do lago. Diagonal paralela à Via Láctea que se vê no céu. Mas a Sagrada Família vem da direita e seguirá para a esquerda, depois de passar a noite, ali, onde há água para beber e onde não se descortina sinal de perigo.
O guia do museu pergunta: " Como não ver neste quadrinho as primícias do espírito romântico, onde ao homem apraz errar numa paisagem nocturna, transfigurada por uma paz idílica?". É bem possível que Caspar David Friedrich e outros românticos alemães se tenham inspirado nesta reproduzidíssima pintura. Mas o prodigioso jogo de luzes vem de Caravaggio, que Elsheimer tanto estudou e anuncia Rembrandt ou Claude Lorrain. Deixo essa conversa para mais logo, pois que, antes de falar do pintor, me apetece falar do pintado e regressar à fuga para o Egipto.

2 - O único Evangelista que refere essa fuga é São Mateus. Após descrever a visita dos Magos e antes de contar do massacre dos inocentes, diz: "Depois que partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe e foge para o Egipto. Fica lá até eu mandar, pois que Herodes procura o Menino para o matar. José levantou-se, tomou de noite o Menino e Sua Mãe e retirou-se para o Egipto, onde ficou até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o oráculo profético do Senhor: "Do Egipto, chamei o meu filho" (Mt. I, 2, 13-15).
Mas o episódio do descanso, que tanto inspirou os pintores, não é referido. A inspiração veio-lhes de um apócrifo, o chamado Evangelho do Pseudo-Mateus, também conhecido como Evangelho da Infância. Nele se lê:
"Dois dias depois após a partida, aconteceu que Maria, no deserto, sofreu com o excessivo calor do sol e, vendo uma palmeira, desejou repousar um pouco à sombra dela. José apressou-se a conduzi-la até à palmeira e ajudou-a a descer da montada. Quando Maria se sentou, levantou os olhos para a folhagem da palmeira, viu-a carregada de frutos e disse: "Oh, se fosse possível que eu comesse os frutos desta palmeira!". José disse-lhe: " Mulher, o teu desejo espanta-me, pois bem vês como a palmeira é alta. Tu pensas nos frutos da palmeira, eu penso na água que começa a escassear nos nossos odres e não sei onde os encher para extinguir a nossa sede."
Então, o Menino Jesus, sentado ao colo de Sua Mãe, a Virgem, disse à palmeira: "Árvore, inclina-te e reconforta a minha mãe com os teus frutos." Palavras não eram ditas, a palmeira inclinou-se até aos pés de Maria e, depois de colhidos os frutos que nela estavam, todos se reconfortaram. Mas após todos os frutos terem sido colhidos, a árvore continuou pendente e, esperando, para se levantar, ordens daquele que lhe tinha ordenado que se inclinasse. Então Jesus disse-lhe: 'Levanta-te, palmeira, fortifica-te e junta-te às árvores que possuo no paraíso do Meu Pai. Faz brotar das tuas raízes fontes ocultas, donde corra a água que nos sacie'. Imediatamente, a palmeira se levantou e das suas raízes brotou água límpida, fresca e dulcíssima".
Se o texto serviu de inspiração, nunca foi tomado muito à letra, dada a heterodoxia da origem. Mas as palmeiras são árvores constantes em quase todos os "repousos na fuga para o Egipto", bem como fontes, lagos, riachos que não faltavam com água a quem tinha que atravessar desertos.
No cobre de Elsheimer, não há calor, há frio, mas não falta a água. Tudo demasiado mágico, demasiado onírico? Mas foi num sonho, mesmo nos textos canónicos, que foi dada ordem de fuga a José e ninguém nunca narrou perigos ou privações durante uma viagem que qualquer hebreu sabia ser árdua. Os pintores (quase todos) deixaram em elipse as peripécias (dragões, feras, a história que faz remontar à palmeira mágica a ideia da palma do martírio) mas guardaram visões postas em sossego, isentas de angústias mas não de encantamento.

3 - Lembrei-me de tudo isto, folheando o último número da "FMR", na nova fase da revista, agora que Franco Maria Ricci a abandonou. A nova directora - Marilena Ferrari - teve a ideia de consagrar esse número a uma antologia dos melhores textos nela publicados. Entre eles, está um de Yves Bonnefoy, consagrado também a Elsheimer. Fala-se muito da Fuga para o Egipto, mas o quadro que detém o autor, não é esse mas aquele que se chama a Irrisão de Ceres e que está no Prado.
O tema não é bíblico mas buscado às "Metamorfoses" de Ovídio, tão constante origem dos pintores dos séculos XVI e XVII como os textos bíblicos.
Também tem que ver com um repouso, também tem que ver com a sede, e também é uma visão nocturna.
Ceres, filho de Saturno e Reia, engendrara de seu irmão Zeus, Prosérpina, que lhe foi roubada por Hades, Senhor dos Infernos. Ceres não se conformou e correu mundo em busca do filho. Uma noite chegou a um pobre tugúrio e pediu de beber à velha dona dele. Esta dá-lhe uma bilha com água, que a deusa, avidamente, leva à boca. Só que, nesse momento, um rapazinho, figurado todo nu, "de rosto fechado e agressivo" - 'duri puer oris et audax' - começou a fazer troça da sofreguidão da mulher. Ceres, posta em irrisão, vingou-se e transformou-o num lagarto que se escondeu sob as pedras.
Comenta Bonnefoy:"Passado o tempo da religião romana, nada nesta história faz muito sentido. Mas foi escrupulosamente preservado na pintura. Porquê? Porque uma história a que o ouvinte não pode conferir sentido imediato, é sempre uma história de sonho (...) Sonho nocturno, esses infindáveis feixes de símbolos de significados indecifráveis. Elsheimer quis fazer aparecer o que é inerente à actividade onírica, mas que, até ele, tinha sido negado, censurado, por todas as formas de busca espiritual. Quis registar, e depois indicar que há um simbolismo específico do sonhador, rebelde ás categorias do saber oficial e até mesmo capaz - quem sabe? - de lhe subverter os fundamentos, supostamente baseados em Deus (...) "Na atmosfera antinatural do sonho (...) o que distingue Elsheimer de pintores como Carracci ou Caravaggio é alguma coisa de muito mais enigmático (...) essa coisa de que são feitas as imagens nocturnas, tão facilmente imagens de pesadelo. O pressentimento do inconsciente acompanha, em Elsheimer, a impressão que a realidade - ela também 'duri oris et audax' - se recusa aos sentidos que lhe queremos dar e não permite mais a esperança nessa unidade da alma com o Ser, que, durante tantos séculos, nos alimentou o espírito". Bonnefoy, no mesmo texto, vai ao ponto de dizer que Elsheimer antecipa as descobertas de Freud.

4 - Nunca vi - ou se vi não me lembro - o quadro de Madrid. Mas seja a noite de Ceres, à porta de uma cabana, seja a noite da Virgem no descanso na fuga para o Egipto, a perturbação é semelhante. A emoção provocada por símbolos que não podemos perceber e por imagens cujo nexo nos escapa. Uma beleza com que se pode sonhar mas que jamais podemos identificar como existente.
De que pintor estou eu a falar? De um alemão que nasceu em Frankfurt em 1578, que aos vinte anos se fixou em Veneza, que em 1606 se converteu ao catolicismo em Roma, onde viveu dez anos, até morrer, aos 32 anos, em 1616.
Quando ele morreu, Rubens, que fora amigo dele, escreveu a um amigo comum: "Toda a nossa profissão devia vestir-se de luto (...) Deu-nos coisas que nunca havíamos visto e que não veremos nunca mais."
Munique. O telefonema. A lua, o fogo e a tocha. As águas paradas do lago. A Fuga para o Egipto. O sonho de José. A palmeira inclinada. As fontes subterrâneas. A irrisão de Ceres. A sede de Ceres. O rapazinho nu a rir. Adam Elsheimer. Estou a falar do que vi, do que li, ou estou - eu também - a contar-vos um sonho, "un rêve si noir, mais avec toujours quelques feux ici ou là sous les arbres"? Não façam caso. Ou antes: façam um caso.

João Bénard da Costa 7 de Maio 2004 in Público

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