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domingo, outubro 24, 2004

Os Retratos Premonitórios  

1. Regressado da Arrábida (ando agora muito cronológico), o meu primeiro acto "oficial" foi receber Hanna Schygulla, a actriz de Fassbinder, convidada pelo Festival Temps d'Image para um espectáculo no CCB, onde de resto não fui, salpicado por alguns filmes dela exibidos na Cinemateca. Passou de raspão ("Storia di Piera") e vi-a de raspão, porque Deus põe e o homem dispõe, ao contrário do que por aí se diz. Mas, à roda de um copo, a propósito já não sei bem de quê (é mentira, lembro-me muito bem), citou ela alguém que se espantava com o humano pudor que leva a ocultar o sexo mas a exibir a cara, "a coisa mais nua que todos temos". A frase valeu o encontro, porque nunca me tinha posto o problema em tais termos.
É certo que nem todas as culturas tratam o rosto com despudor, mas as que o ocultam são literalmente mal vistas. Ou é sinal de repressões intoleráveis (as mulheres nos países islâmicos, as "burqas", para não vir mais perto e recordar os véus das viúvas que ainda são do meu tempo) ou de disfarce intolerável. "Embuçado nota bem / que hoje não fica aqui ninguém / embuçado nesta sala", para ser tão trivial quanto possível.
Mas é bem certo que quem vê sexos não vê corações e quem vê caras os vê, já que hoje me deu para contrariar lugares-comuns. Só os não vê quem não quer ou não sabe ver e quase todos somos razoavelmente cegos. Lembro-me da pergunta de Sophia quando alguém se lhe queixava de ter sido bem enganado por fulano ou sicrana. "Mas nunca lhe viu a cara?" Regra geral não viram, que o diabo é sempre tão feio como o pintam, pelo menos a partir da idade em que cada um tem a cara que merece e não aquela com que nasceu. Tão nua como a cara, só a voz.
É verdade que tudo num corpo é revelação e que dos pés à cabeça (com especial importância para as mãos) pode-se desvelar muita coisa. Já conheci especialistas de tudo, até de umbigos e de tornozelos, e não me custa a admitir que haja sexos intoleráveis, mas Hanna Schygulla tem razão. Nua nua só a cara e nudíssimos nudíssimos só os olhos e a boca. Isso a que se chama expressão e que é sempre o que faz a maior impressão.

2. Há uns tempos, referi-me, numa destas crónicas, a um retrato de Tiziano, actualmente em Filadélfia, que me foi revelado por Jean Louis Schefer. Representa o arcebispo Filippo Archinto, e mostra-o com o rosto semicoberto por um véu. Na altura, pensei que o prelado tivesse um defeito qualquer que essa forma de representação ocultaria. Muito mais sabido em coisas de iconografia do que eu, Schefer desenganou-me. Tiziano queria apenas significar que o arcebispo já tinha morrido quando ele o pintou, já que os mortos, se mantêm por algum tempo isso a que se chama expressão (e que nunca ninguém conseguiu explicar convincentemente o que seja), perdem-na rapidamente (por isso mesmo, tão pouco tempo são expostos). Cobrindo parcialmente a eminência, Tiziano deu-nos a ver "la mort au travail", o que acontece aliás com qualquer retrato, suspensor do tempo e não seu veículo.
Curiosamente, é para isso mesmo que os retratos existem. Porque, desde as civilizações das múmias, se acreditou que o retrato prolonga a vida da pessoa retratada, que viveria enquanto essa sua imagem vivesse.
Num livro recente sobre os retratos na história de arte (uma luxuosa edição da Giunti) fala-se do "jus imaginum", privilégio que na antiguidade só detinham as famílias da nobreza, que, de resto, o continuaram a ter, mesmo que não baseado em qualquer lei escrita, até aos fins do século XVIII e ao advento do "terceiro estado". Só quando se inventou a fotografia, "toda a gente" passou a ser retratada e, mesmo assim, muito gradualmente, já que entre os meados do século XIX e os meados do século XX, só a burguesia se fazia retratar nos Institutos Photographicos ou no Amer da Rua do Ouro. Resta saber se a invenção da fotografia foi causa ou consequência, como se foi causa ou consequência dela que a pintura abandonasse a figuração. Conversas largas que para aqui, hoje, não são chamadas.

3. Mas esse livro dos retratos encontrou em mim campo fértil. Como citava, com alguma abundância, textos de Hawthorne e de Gogol sobre retratos mágicos ou sobre a magia dos retratos, passei parte das férias a ler tais textos, que são somente alguns dos muitos do demonismo romântico, bebido em Hoffmann e nos sonhos das almas românticas, culminando eventualmente no "Là-Bas" de Huysmans, esse livro a que Verlaine chamou "épastrouillant", termo que não consigo traduzir, como não consigo traduzir Mallarmé quando ele fala de "cette vaine, perplexe, nous échappant, modernité".
Mas ainda antes de voltar às imagens fixas, não resisto a contar-vos no que dão imagens movediças. Em "Là-Bas", como eventualmente saberão alguns, a torre da igreja de Saint-Sulpice em Paris (que, aliás, Huysmans execrava) tem um papel importante, através da figura capital da mulher do sineiro e dos seus cozidos à francesa. Pois me sucedeu que o livro que a esse se seguiu, em leitura de Verão, foi "La Lutte avec l'Ange" de Jean Paul Kauffmann, que mão amiga me fez chegar, e onde tudo se passa na dita igreja, partindo do fresco célebre de Delacroix que tem o título do livro e que, até hoje, me foi única razão para visitar Saint-Sulpice. Páginas não eram lidas, descobri que a igreja está na moda, devido ao famigerado "Código Da Vinci", que nisso, como em tudo, vigariza a propósito da famosa meridiana, que, parece, justifica hoje a entrada de multidões ululantes, em busca dos segredos da vida perversa de Jesus Cristo e Maria Madalena. Livro que até li, para poder argumentar com conhecimento de causa às dúvidas metafísicas de descendentes e ascendentes, que tomaram a sério as "revelações" do autor, nestes tempos de vale-tudo. Não será nos próximos meses que poderei decidir, em paz e sossego, quem viu melhor a igreja onde baptizaram Sade: se Huysmans, na sua embirração, se Kauffmann nos seus ditirambos. Mas se quiserem saber de mim, neste Verão, procurem-me entre eles, Hawthorne e Gogol. E, obviamente, nos retratos.

4. A eles volto.
Em Hawthorne (que não conhecia Gogol, mas certamente conhecia o Hoffmann de "Doge e Dogoressa", ou Tieck, ou Chamisso ou Goethe) no fabuloso conto "Prophetic Pictures", que já croniquei por aqui, o retrato não funciona como prova do génio de um artista mas como sinal da maligna fatalidade de um "guilty medium". A pintura é um símbolo poético no duplo retrato do pacífico casal Walter e Elinor Ludlow, retrato que se transforma com o tempo, dando a ver ocultos terrores e subterrâneas ferocidades, onde inicialmente só se viam plácidas belezas e jovens nubentes.
Walter, bem avisado fora pelas velhas senhoras de Boston que os retratos do pintor podiam ser proféticos, e que este, depois de tomar posse de um rosto e de um corpo humanos, os podia pintar em qualquer situação futura. Mas Elinor tranquilizou-o: "Mesmo que ele tenha tais magias, há qualquer coisa tão doce nos seus modos que tenho a certeza que as usa bem."
Mas foi o pintor quem viu a nudez toda da cara deles e não Elinor, que a viu coberta por uma ilusória doçura. Nas posteriores visitas ao quadro, ambos notam que este, sendo o mesmo, era já outro. Elinor olhava o noivo com ânsia e terror. "Is this like Elinor?" "Compare a cara dela com a cara que eu pintei." E, só nesse momento, Walter reparou que a expressão de Elinor era exactamente a expressão do quadro e que, se este fosse um espelho, não teria captado melhor olhar de tanto pavor. Elinor, absorta, nem ouve o diálogo entre o pintor e o marido. Mas, quando acorda do torpor, volta-se para Walter e pergunta-lhe por sua vez se ele não se acha mudado. "That look! How come it there?"
Depois, o quadro muda todos os dias, até à última visão, quando Walter esfaqueia a mulher e o "retrato, com as suas tremendas cores, finalmente ficou terminado".
"Não haverá uma profunda moral neste conto?", termina Hawthorne, bem à sua maneira, tão inquietante quanto distanciada. "Quando vimos o resultado de uma, ou de todas as nossas acções, surgir diante de nós, alguns chamar-lhe-ão Destino e fugirão apavorados, outros mergulharão ainda mais em desejos ocultos. Mas ninguém poderá afastar-se dos RETRATOS PROFÉTICOS."
Em Gogol, a maldição é traduzida por um retrato que dá a todos os que o possuem, primeiro a maior glória e, depois, o desespero total. E o que torna o quadro reconhecível são "uns extraordinários olhos" e "uma estranha expressão". Gogol invoca todos os grandes pintores do Renascimento que, à época do conto (1843, o mesmo ano da publicação de "Prophetic Pictures") eram os mais valorizados pela crítica novecentista: Tiziano, Rafael, Guido Reni, Leonardo, Rubens, Van Dyck. Todos eram ultrapassados pelo pintor que possuía o quadro mágico e que pintava com verosimilhança e verdade jamais alcançadas. Mas esse "dom" era efémero e continha a própria maldição. Esta só é esconjurada na narração final. Quando o último proprietário se prepara para destruir o quadro, o quadro desaparece. E "todos ficaram ali, por largo tempo, sem saber se tinham visto realmente aqueles olhos extraordinários ou se se havia tratado de uma ilusão que por momentos lhes toldava a vista, fatigada por tão longo exame de quadros antigos".
Em Gogol, existe porventura uma intenção moralizante (o tema do artista que vende a alma ao diabo, no fundo o tema do "Dorian Gray" de Wilde, que talvez encerre, em literatura, esta estranha genealogia, retomada, nos anos 40 do século XX, pelo cinema de Hollywood). Mas, em Hawthorne, a pintura é necromancia e a pessoa pintada transforma-se na criatura do pintor.
Em ambos, o cerne é o perigo da nudez exposta ou o perigo do que essa nudez expõe ao pintor. Nenhum retrato existe. Só existe a visão do pintor. E deixo-vos a olhar, uma vez mais, "Lucrezia Panciatichi", de Bronzino, minha tão incerta secretária de premonição. Já viram mulher mais vestida? Já viram mulher mais nua?

João Bénard da Costa 22 de Outubro 2004 in Público


domingo, outubro 17, 2004

A Mata do Solitário  

1. Faz tempo que não nos víamos. A 27 de Agosto, bem avisei que nas próximas cinco semanas não ia haver eu. Mas prometi que voltava a 8 de Outubro, "se Deus quiser". Temente a Ele, não posso dizer que foi Ele quem não quis (embora a conversa desse pano para mangas). Eu é que preguicei mais um bocado. Cumprir prazos nunca foi o meu forte nem a minha reputação. Para quem deu pela minha falta, aqui ficam as minhas desculpas.

2. Por onde é que eu andei? Tirando um saltinho a Veneza, para festejar em corpo e alma o segundo Leão de Ouro do meu querido Manoel de Oliveira (em 1985, nessas duas espécies, festejei o primeiro, contava ele apenas 76 anos e já libertava as almas captivas) fiquei-me pela Arrábida como é meu setembral costume. Mas, contra todos os costumes, consegui a proeza de não sair de lá entre 13 e 30, dezassete dias bem contados. Fui de retrato em retrato, como em próxima crónica contarei, andei pelas praias e nadei pelos mares, com a mercê do calor. Não se deve ser mal agradecido, mas prefiro, a estes verões póstumos de 2004, os Setembros de antigamente, quando às 6 da tarde o tempo se fazia mui fresco e apetecia passear pela serra, bem sabendo embora que "em Setembro, às 8, já é noite". Nem sempre me lembrei, donde algumas "aventuras", dessas que tanto assustavam os crescidos e faziam a felicidade da minha neta Sofia, agora juntinha a M. de La Palisse nas muralhas de Pavia. Este ano não houve aventuras nenhumas e a noite mais perdurável foi aquela em que, chegado ao Beira-Mar (é um restaurante no Portinho), me não apeteceu muito nenhum dos peixes que constavam da ementa. "Apetece-lhe salmonetes?" perguntou-me o simpático Lousão, dono do dito. Que sim ou como não, respondi-lhe em bom português, desse só aparentemente contraditório. Pediu-me dez minutinhos, o tempo de um copo. Acabado ele, apareceu-me com uma rede de salmonetes vivos, ainda a saltar, como aqueles que apareciam, nos anos 40 ou 50, à porta da cozinha da Vila Raul, noite dentro, trazidos pelos pescadores. Pedir salmonetes num restaurante e eles não virem do frigorífico mas direitinhos do mar é coisa que pensava não me voltaria a suceder. Sucedeu mesmo e tenho testemunhas. Trinta anos depois da revolução, a doçura de viver ainda existe. E salmonetes como os da Arrábida, não os há em nenhuma outra parte do mundo.

3. Volto do mar para a Serra.
Num dos raros passeios deste Verão, tornei à Mata do Solitário, no vale entre o Monte do Guincho e a Serra do Risco. "Mata das bruxas", chamava-lhe a minha Mãe, quando éramos pequenos e continuei eu a chamá-la para os meus filhos e netos. Entre os adernos, os olhados, a aroeira e os grandes carvalhos e medronheiros, é uma das matas mais gloriosas da Arrábida e nunca ouvi a palavra floresta (como essa onde se perderam o Polegarzinho, o Joãozinho ou a Guidinha) que não a visse na minha frente, estivesse onde estivesse. Em miúdo, era capaz de jurar que vira mesmo bruxas por lá, depois do sol se pôr e antes da lua nascer. Vindo de Alportuche, onde então morava, onde agora moro, era um passeio pequeno, bem próprio para crianças. Estrada acima, nesse lado que, mais tarde, me ajudou a perceber o que era o lado de Guermantes, andavam-se uns dois quilómetros. Depois, a entrada na mata por um carreirinho do lado esquerdo da estrada, uns metros adiante de um centenário carvalho, que tem fama de já ter dado sombra ao Senhor D. João V, quando o Duque de Aveiro lhe oferecia uma batida aos javalis. Dez minutos, não mais, bastavam para chegar a uma vasta clareira, no coração do vale, sobranceira ao mar.
Chamávamos-lhe (chamamos-lhe) o Calhau do Frederico, mas o termo é mal aplicado. O Calhau (termo da região para designar uma armação de pesca) ficava lá em baixo, junto ao mar e à Lapa do Peixe-Homem, a das águas mais verdes que já estes meus olhos viram. O caminho continua da clareira para o mar e dá mesmo o único acesso por terra ao tal Calhau. Só que essa segunda etapa já não fazia parte dos nossos passeios de criança, pois que, como o outeiro do Canto IX, era bastante mais fácil de descer que de subir e nem mesmo possantes adultos se achavam com força de nos trazer às cavalitas, de volta dos penhascos. Frederico porquê? Porque o dono da armação era um tal Frederico Fernandes, que também deu nome a um Poço na Charca ("Quem por este poço passar / e uma pedra não deitar / nunca mais se há de casar") e tinha uma lenda assaz curiosa. Fixou-se na Arrábida (no Portinho, zona de que era proprietário) cerca de 1870, aos vinte anos, época em que, para além dos pescadores, devia ser o único morador da região. Tinham-lhe diagnosticado uma tuberculose e pouco tempo lhe davam de vida. Segundo a fábula, curou-se na Arrábida, onde viveu até quase aos 90 anos. De cada vez que se aventurava até Azeitão tinha uma hemoptise. Regressado aos seus calhaus, os pulmões deixavam de lhe sair pelas goelas, se bem me lembro do meu José Duro, e ficava rosado como uma maçã reineta. A minha Mãe descrevia-mo como um velho alegre e prazenteiro, de cabelos e barbas muito brancas. Depois da morte dele, a armação ficou ao abandono e o ciclone de 41 acabou por a destruir. Mas os alicerces eram bem visíveis e quem saiba ainda pode detectar restos deles.
Agora tudo está muito diferente. O caminho, só mesmo quem o conheça bem ainda é capaz de o achar e a clareira está reduzida a metade (ou nem isso) porque a vegetação rasteira cresceu imenso e quase a cobriu. Mesmo assim, continua a ser um sítio mágico, entre as duas colinas escarpadas e o mar vagarinhoso cá muito em baixo. Não se vê viv'alma nem sítio onde a mão do homem tenha posto o pé. Prolongando tradições ancestrais, tenho por hábito pedir aos miúdos que se calem e ouçam o silêncio. Este ano, a minha neta Maria, quando depois lhe perguntei o que o silêncio a fizera escutar, respondeu-me: "Os anjos." Não me admirava nada.

4. A mata chama-se do Solitário porque, segundo a tradição, nela viveu, no século XVII, um minorista que aí construiu habitação. O local era propício, pois muito próximo fica uma das raras fontes da Arrábida (a água é rara na Serra, devido à estrutura calcárea), a chamada Fonte do Solitário. Havia (se procurarem bem ainda há), mas está quase intransitável, um caminho que a ligava ao Convento, pois que os monges também se abasteciam ali.
Minorista chamei-lhe, em consonância com as fontes mais fiáveis. Mas também ouvi dizer que era santeiro (da escola de olaria de Paio Pires) e curandeiro. E como as lendas na Arrábida são como as cerejas (que é coisa que lá não há) dizem-no ainda conspirador, envolvido na conjura de 1641 contra D. João IV, esse que levou à degola o marquês de Vila Real, o duque de Caminha, o conde de Armamar e D. Agostinho Manuel, entre vária outra gente de menos algo. O santeiro conseguiu fugir a tempo e refugiou-se na Serra da Arrábida. Até por razões políticas, o sítio não foi mal escolhido. A serra era pertença da casa de Aveiro, que os Filipes tinham sempre tratado com sumo favor. O 4º Duque, D. Raimundo, como sua mãe, a Duquesa de Torres Novas, D. Ana Manrique de Lara, aos quais se deve o Convento Novo e o maior fausto dos arrábidos, não escondiam simpatia pelos espanhóis em rocambolescas histórias (talvez justifiquem muitas das construções da serra, se as chamadas ermidas foram edificadas para fins militares e não pios) que duraram até 1666 e passaram pela execução em efígie de D. Raimundo, em 1661.
Seja como for, o Solitário terá estado bem acompanhado na Arrábida, sem temer delatores. Prosperou a ponto de aí fazer a tal casa, exercendo a sua arte em imagens para o novo Convento e sarando as gentes de Azeitão, que até à Mata viajavam pelo caminho do Regato, atravessando os Casais da Serra (esse caminho ainda existia quando eu nasci). Terá ali vivido entre 1641 a 1666. Um belo dia, desapareceu. Ou foi finalmente descoberto e pagou o crime antigo (é a versão mais plausível) ou foi engolido pela Serra, que tem fama de ter feito desaparecer muita gente.
Esta ultima é a história mais popular e a que explica o nome da Lapa do Médico, gruta situada próxima do caminho entre a Fonte e o Convento. Quando a dita Lapa foi descoberta, algures no século XVIII (a habitual história do pastor que demandava ovelhas tresmalhadas) diz-se que, no fundo dele, foi achado um esqueleto. Existindo ainda memória do desaparecimento do Solitário, logo houve quem pensasse que as ossadas eram as dele, promovido na toponímia de curandeiro a médico, o que a evolução da ciência ajuda a explicar.
Hoje, tudo isso (quero eu dizer, os restos materiais disso) desaparecem aos poucos, em meio à incúria a que a serra foi votada e de que já falei em crónicas pretéritas. Das ruínas da casa do Solitário, onde quer eu quer os meus filhos tantas vezes brincámos (ainda tinha paredes e tectos nos anos 60) já mal se advinham vagos restos, só possíveis de alcançar com as roupas esfarrapadas. Da última vez que o tentei (e já lá vai uma meia dúzia de anos) demorei uma tarde para chegar da Fonte do Solitário à Lapa do Médico, o que antigamente se fazia em vinte minutos, com uma perna às costas.
Desapareceu, assim, uma das minhas aventuras favoritas da Serra. Conduzir "estrangeiros" até à entrada da gruta e vê-los recuar, aterrorizados, perante um buraco no chão por onde mal cabe um corpo humano. Quem vence o temor é compensado pela sucessão de galerias, estalactites e estalagmites, de enfilada até aos catafúndios, aí uns 100 metros abaixo do nível do solo. Mas ai de quem se aventure nela sem lhe conhecer os meandros e sem luz de sobra. Entrará, mas não sairá, a não ser eventualmente em esqueleto, como o Solitário da Mata, que, só por acaso, ou porque há Deus, não desapareceu já toda num dos incêndios como o de Julho deste ano.
Na Mata do Solitário, sinto-me cada vez mais solitário. "Alone with my memories", como dizia o Groucho Marx no "Room Service".
Assim se passou um Verão de Setembro augustinado e de ocasos singulares.

João Bénard da Costa 15 de Outubro 2004 in Público

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