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sexta-feira, janeiro 28, 2005

As Cinzas e o Maneirismo Italiano  

1. Foi em Setembro. Eu estava a mostrar Veneza à mais nova das minhas Mónicas. Os dragões de Carpaccio fechavam à hora do almoço deles, que não coincidia com a do nosso. Nem tudo são azares, já que dragões não almoçam certamente no Harry's Dolce da Giudecca (um dos lugares mais paradisíacos da terra e um dos sítios onde melhor se come na nossa amurada) e vêem-se melhor à luz de Bellinis.
Aliás, foi a ver de Bellini a translucidíssima "Virgem com Santos" de San Zaccaria que levei a Mónica enquanto fazíamos horas. À saída, reparei num cartaz ao fundo do "Campo". Anunciava uma exposição intitulada "Natura e Maniera tra Tiziano e Caravaggio", comissariada por Vittorio Sgarbi, a inaugurar a 5 de Setembro em Mântua. O cartaz reproduzia a "Judite com a cabeça de Holofernes" de Tiziano, que está em Roma na Doria Pamphilli, e em que alguns julgam ver a "Salomé com a cabeça do Baptista". Adiante, que, mais Freud menos Freud, os temas sobrepuseram-se nesses tempos perversos e terei ocasião de voltar a uns e a outros.
A 5 de Setembro, já estaria de regresso à pátria, muito raramente visitada por Tizianos de passagem e jamais visitada por Caravaggios. Por razões que agora não vêm ao caso (como se o resto viesse...) não podia prolongar-me em Itália. Pensei com os meus botões que a possibilidade de ver a exposição era remota e tive pena. "Tra Tiziano e Caravaggio" situam-se alguns dos pintores de que mais gosto e o nome de Vittorio Sgarbi garantia-me uma escolha original.
O homem das "trevas e da rosa" tem uma reputação duvidosa? Eu sei. Mas se, mesmo em anos muito "progressistas", sempre me atraíram criadores e críticos ditos "reaccionários" ou pior do que isso (do Pound a Céline, de Vinneuil-Rebatet a Brasillach, tendências que nunca me dei ao trabalho de analisar ou psicanalisar convenientemente), com a idade essas preferências só se acentuaram. Assim, apesar de saber que a esquerda italiana diz de Sgarbi (n.1952) pior do que diz de Berlusconi, de quem até foi ministro ou coisa parecida, livros como o citado "Le Tenebre e la Rosa" ou "Notti e giorno d'intorno girando..." são meus livros de cabeceira desde há alguns anos, quando a Rita me trouxe o primeiro deles de Turim. Muito recentemente (Minha Senhora, não se zangue comigo) acrescentaram-me ao rol dos pecados dele, mais dois. Segundo me disseram, o homem, por dinheiro e por mulheres, era capaz de tudo. Capaz fui eu de responder, à minha assombrada interlocutora, que há defeitos piores. "Percorsi perversi", para citar o título do último livro dele, comprado em Mântua, onde acabei por ir (fiz por isso ou aproveitei acasos em meu favor, como em devido lugar para o mês que vem explicarei) nos últimos dias em que a exposição estava visível. Fechou a 9 de Janeiro.
A ela volto. Não sem antes citar de Sgarbi a frase que para ele me conquistou: "A arte é, acima de tudo, uma forma de conhecimento do mundo, intuitiva e luminosa, como a inesperada aparição de uma rosa nas trevas."

2. Como é que a rosa me apareceu nas trevas do Palazzo Te, tão perto da Sala de Psique ou da Sala dos Gigantes, onde, há alguns anos, descobri Giulio Romano, a que até então pouco ligara, ou sempre vira apenas como talentoso discípulo de Rafael, como o ventre que gerara Rubens, que em Mântua junto dele se formou?
Numa "mostra" de 130 quadros bem expostos (se bem dispostos, é outra questão) na chamada "Fruttiere" do Palácio, ou, se preferirem, no antigo pomar dele, há muito transformado em galeria temporária. O percurso iniciava-se com a Judite (ou a Salomé) de Tiziano e terminava com dois Caravaggio: "A Conversão de Saulo" e "O Sacrifício de Isaac", obras da primeira fase do pintor. O último está nos Uffizi e conhecia-o bem, embora lhe prefira, de longe, a tela com o mesmo tema e mais ou menos da mesma época, de uma colecção particular americana e que vi em 2000, em Bilbau. O primeiro, anterior à célebre tela homónima da Capela Cerasi de Santa Maria del Popolo, em Roma, nunca o vi em vida minha e é mesmo um dos quadros de Caravaggio mais difíceis de ver, já que os donos (os Odescalchi, da lendária colecção homónima) são tão ciosos dele que raramente o emprestam. Ai de mim, ainda não foi desta. Saíra da exposição a 11 de Outubro e não pude, pois, verificar se, como pretende Sgarbi, foi ele quem lançou o Romano na pista dos gigantes, na sala dos quais o queria expor. Também não pude confirmar se Sgarbi tem razão quando diz que, mais do que qualquer outro quadro de Caravaggio, essa é a obra que "mais fala a linguagem do maneirismo", com "a sintaxe maneirística e a gramática realista ou naturalista". A tela do "horror vacui". Neste caso, no vácuo fiquei eu, debruçado sobre a grande ausência final. O primeiro Caravaggio teria sido o último dos maneiristas, nos últimos anos do século XVI? Se Sgarbi o jura, eu não o posso jurar.

3. Mas o comissário que não comissariou essa elipse (tivesse eu madrugado mais cedo...) comissariou outra elipse mais insólita.
A exposição, além do título já mencionado, junta-lhe outro: "As cinzas violetas de Giorgione". A expressão é do célebre crítico Roberto Longhi (1890-1970) que em tempos escreveu, referindo-se a um dos maiores pintores maneiristas, esse Dosso Dossi (1490-1542) que, mais do que qualquer outro, trouxe de Mântua: "A arte dele (...) é o fumo que se evola das cinzas violetas do enterro de Giorgione, misturado com as doces névoas dos vales do Pó" (Dossi nasceu e morreu em Ferrara). Sgarbi vai ainda mais longe do que Longhi e diz que "a alma de Giorgione continua a viver em Cariani como em Dosso Dossi. Ao falar das "cinzas violetas", Longhi queria dizer que tudo o que aconteceu na Padânia, a partir de 1510, foi a reelaboração, a transformação e a deformação da arte de Giorgione, imprescindível, arrebatadora, diletante, tornando-se numa segunda natureza para cada artista, ou, se se quiser, na Maneira de cada um deles".
Mas se, no texto do catálogo, que estou a citar, evoca de Giorgione "La Tempesta" ou os "Tre Filosofi", ou o "Tramonto", nenhum quadro do célebre pintor da Laguna figura na exposição. Esse "protagonismo ausente" não é fortuito. Cinzas não se mostram em ressurreições. Cinzas fúnebres ainda menos. É uma nova luz, "un'aria stregata", que nasceu na obra do mais genial continuador de Giorgione e, portanto, acuradamente, Tiziano abre a exposição, com a Judite ou Salomé que, vista a alguma distância, parece desviar os olhos, pudica ou enleada, da cabeça que acabou de degolar e, vista de mais perto, não disfarça um sorriso perverso, como se quisesse dar o peito, que tão levemente deixou desnudado, à boca que não repele mas comprime.
Diz-se aliás (mas diz-se tanta coisa) que a figura feminina retrata Violanta, a filha de Palma o Velho, por quem Tiziano se terá perdidamente apaixonado, como se diz que Tiziano (então com 25 anos) é reconhecível nos traços do Baptista ou de Holofernes. Mas não se diz, vê-se, que a cabeça dele é colocada por baixo do arco, através do qual um céu azulíssimo é a única fonte de luz que brune o morto e aleita Violanta, uma Violanta que, como a de Rodrigues Lobo, "antes que o sol se levante / A dar graça e luz ao prado / Já Violanta lha tem dado / Que o sol tomou de Violanta".

4. Mas, por muito que me custe, tenho que deixar Tiziano e a degoladora de beatilha.
Pois se havia dez Tiziano na "Mostra" e todos eles raríssimos (nem tempo me deixam para falar no retrato do comandante zarolho, proveniente de algures em Ferrara) já me aproximo do fim e ainda não expliquei o critério da exposição.
Sabe-se, desde o livro clássico de André Chastel, como a "maneira" romana, que Clemente VII, o segundo papa Médicis, protegeu com volúpia e escândalo nos primeiros anos do seu pontificado (1523-1527), dando origem a uma nova pintura, ou a uma pintura nova, foi brutalmente interrompida pelo saque de Roma de 1527. Os protegidos de Clemente ou foram mortos, como os mais ímpios frutos da "nova Babilónia", da "Sodoma renascida", ou dispersaram-se pela Itália, sobretudo pela Emília Romana, pela Toscânia e pelo Veneto. Parmigianino em Parma, Pontormo em Florença, Dossi em Ferrara, Maretto e Savaldo em Brescia, os Campi em Cremona, entre tantos, tantos outros (nem sequer falei de Rosso, nem sequer mencionei Tintoretto), entre 1530 e 1570, seguindo a lição colhida em Roma. Se, na "imitação" da Natureza, Miguel Ângelo e Rafael são inultrapassáveis, o único caminho possível (e Vasari é a fonte) é partir "'da maneira' de Miguel Ângelo e explorar um terreno que é o dos sonhos deles, das visões deles". O limite deixa de ser a realidade ou a Natureza para passar a ser a consciência. Ou, como aventurosamente diz Sgarbi, esses pintores "entram na alma profunda do Homem. Com eles começa, pode dizer-se, a psicanálise". Muito antes de os alemães terem inventado o termo "manierismus", "principia-se a sondar uma dimensão tão secreta e tão misteriosa que já nada tem que ver com a realidade. A sensualidade entra nas almas e os corpos são apenas veículos delas".
Para o mostrar, Sgarbi foi buscar dos grandes pintores o mais secreto e dos pintores esquecidos o mais evidente, com centros em Lotto, em Dossi ou em Parmigianino, tanto quanto em pintores que só agora descobri, em Ortolano, Compagnolo, Bonsignori, Cariani, Orsi, Sustris ou Carlo Bononi. Quadros famosos de museus famosos? Muito poucos. Mas de igrejas recônditas, colecções particulares ou museus de cidadezinhas, vieram essas visões do abismo, que a Contra-Reforma volveu anos depois para o limbo dos prazeres proibidos.
E nem sequer falei de Bastianino (1532-1602), o nebuloso pintor do "Juízo Final" do Duomo de Ferrara, a quem Longhi chamou o "William Blake do miguelangelismo italiano". Dele, o "Cristo morto entre dois anjos", foi outro dos cumes desta exposição. Cito Sgarbi, para terminar, pois foi ele quem descobriu essa tela em 1992: "A maceração interior, a transformação do corpo em fumo, perdida toda a força, desvanecida qualquer energia. Do homem, só resta o invólucro, no ponto de dissolução. Nem um gesto, nem uma convulsão, apenas um sussurro. E assim, nas névoas de Ferrara, o sonho de Miguel Ângelo dissolveu-se" (...) Haveria que esperar por Goya para reencontrar um efeito tão visionário".

João Bénard da Costa 28 de Janeiro 2005 in Público

quinta-feira, janeiro 27, 2005

"Saraband"  

1. Apetecia-me começar este texto sobre o último filme de Bergman comentando uma frase de Liv Ullmann que li algures: "Filmes e pessoas não envelhecem da mesma maneira." É tão certo. Mas, como os críticos portugueses acentuam, quase invariavelmente, o retorno do mesmo Bergman como um regresso da casa dos mortos (alguém que já tinha uma lápide em cima e vibrante elogio fúnebre e que, de repente, reapareceu algo obscenamente, quebrando a lousa por sua própria mão), reprimo o apetecimento. Se há coisa que me apetece ainda menos é entrar em polémicas, ao falar de um dos filmes mais desmedidamente belos alguma fez feitos. O filme mais intenso, o filme mais suave, dessa intensidade e dessa suavidade a que Julia Dufvenius (uma das muitas imensas surpresas de "Saraband") se refere, quando, no princípio do seu primeiro diálogo (ou monólogo) com Liv Ullmann, lhe fala do que o pai lhe exige para interpretar a sonata op. 25 de Hindemith (Cena 2).
Deixo, pois, essa conversa de tempos e de velhos, para apenas reter dela o que na cena 9 Liv Ullmann diz a Erland Josephson, quando o compara a um personagem de um filme antigo. Erland Josephson reage à notícia da tentativa de suicídio do filho (Börje Ahlstedt, que em tempos foi o tio Carl de "Fanny e Alexandre") com comentários de uma maldade desmedida. Desse filho que agoniza no hospital, após tomar todos os comprimidos que tinha e não tinha (onde é que eu já ouvi isto?), cortar os pulsos e a garganta, não crê na morte. "Quem falhou tudo na vida, até no suicídio vai certamente falhar." Ela não o reconhece em tamanha crueldade. E usa então a comparação citada. Em que filme estaria ela a pensar? É bem possível que num filme de Bergman, onde o Deus Aranha teceu fios equivalentemente perversos.
Mas se tudo neste filme de Bergman reenvia a outros filmes de Bergman (quase se poderia citar a filmografia completa), nenhum filme me pareceu menos um filme antigo, e obviamente não estou a pensar no digital HD que não menosprezo mas também não sobrevalorizo. Há muitos anos que não via um filme tão novo, um desses filmes que parece reinventar tudo e onde tudo parece acontecer pela primeira vez.
Deixem-me apenas que vos diga que não percebo que se fale de um silêncio quebrado, 21 anos depois da estreia de "Fanny e Alexandre". É verdade que Bergman disse, à época (1982), que não voltaria a filmar. Já o tinha dito antes, muitas vezes, e quebrou a promessa. Como a quebrou, em 1983, com "Depois do Ensaio" e com "O Rosto de Karin"; em 1986, com "Os Dois Bem-Aventurados", e com o documentário sobre "Fanny e Alexandre"; em 1997, com "Na Presença de um Palhaço"; em 2000, com "Os Construtores de Imagens". Foram filmes para a televisão e não para o cinema? Mas não foi esse também o caso de quase todas as suas obras desde "Lágrimas e Suspiros", em 1972? Não foi esse o caso, nomeadamente, de "Cenas da Vida Conjugal", de que alegadamente "Saraband" seria a continuação? Bergman que o disse também o desdisse e não bastam nomes idênticos para idênticos actores (Liv Ullmann/Marianne, Erland Josephson/Johan) para concluir por essa solução (as filhas de então não se chamavam Sara e Martha, como agora se chamam). Essa questão é irrelevante, como é irrelevante o tempo do pousio, se acaso o foi. Prefiro passar à nova música.

2. É verdade que nem sequer o é. O lugar central ocupado pelo quarto andamento da quinta "Suite para Violoncelo Solo", de Bach, já existira em "Lágrimas e Suspiros", para não falar da omnipresença da segunda suite na chamada "trilogia de Deus". Mas, desta vez, em que Bach não está sozinho e traz consigo Bruckner e Brahms, Alban Berg e Hindemith, "Saraband" é título e título de uma obra a que Bergman chamou "um concerto grosso para quatro instrumentos".
Sarabanda - Concerto grosso. Andamos pelo barroco, quando a dança perdeu as conotações lascivas que levaram à sua proibição na Espanha do século XVI, para se tornar uma vagarosa e solene dança processional. No filme, conserva-se a lascívia (discretíssima, mas perturbantíssima, na relação incestuosa entre Börje Ahlstedt - Henrik, o filho de Erland Josephson - e Julia Dufvenius - Karin, a filha dele - com quem o pai partilha a cama e a quem beija sofregamente na boca. E sem querer insistir (até porque Bergman só é elíptico quando quer), para mim um exemplo fulgurante de imagem lasciva é aquele plano sublime (só possível graças à imagem digital) em que, no fim da Cena 6, Karin se vê sozinha no ecrã todo branco, com o violoncelo entre as pernas, ponto luminoso perdido na distância, parecendo surgida de um filme de Michael Powell.
Sexta cena. Sex. Posso bem estar a delirar, mas essa cena baptizada "A Proposta", passada entre um avô de 86 anos (a propósito, Erland Josephson tinha 80 à data da rodagem, 86 era a idade de Bergman) e uma neta de 19, é, sem dúvida, a mais erótica do filme. Toda vestida de encarnado (da única vez que se veste assim, roubando a cor a Liv Ullmann) cercada pelos sons altíssimos da 9ª de Bruckner, Karin, antes de entrar no escritório do avô, controla cuidadosamente a aparência e vestes, e avança depois, sem que ele a ouça, até o despertar com um beijo e uma vénia. O avô lê-lhe então a carta da proposta (o convite do maestro russo para uma carreira de solista) e oferece-se para lhe pagar os estudos e o violoncelo digno de um Guarnerius. Como sempre, é mais um monólogo do que um diálogo e pouco ou nada Karin responde à tentação altíssima. O avô despede-a, após a conversa sobre Freud e os cigarros, a pretexto de muito cansaço e é então que Karin tem essa autovisão, essa espécie de dissonância na composição da sequência, de que outros exemplos sumamente heterodoxos abundam durante o filme.
Mas não me consigo despedir desta música sem citar outra dessas dissonâncias, a mais brutal porque é a primeira. É a meio da Cena 2, entre Liv Ullmann e Julia Dufvenius, quando esta conta àquela a sua violenta cena com o pai. Subitamente, saímos do quadro e vemos (no que não é um "flash-back") a dita cena intensamente física. Depois, a rapariga foge de casa, em camisa de noite, percorrendo a floresta como a virgem da fonte, até entrar na água escura de um pântano e desaparecer da imagem, sem que a câmara se mexa. Ouvimo-la, então, em "off", num uivo desmedido, até reaparecer no plano. Jean Michel Frodon, comentando essa cena, fala de morte e ressurreição. E diz: "Nunca, talvez, se tenha mostrado esse duplo acontecimento extremo - morte e ressurreição - de maneira tão poderosa. Nem no cinema, nem no teatro, nem na pintura." Tem razão.

3. "Concerto grosso para quatro instrumentos". Actores há cinco, mas quatro preenchem quase todo o filme. Um prólogo, em epílogo e dez cenas. Mas nas cenas nunca estão mais do que duas personagens, excepto nas dissonâncias aludidas.
Mas há muitas outras personagens ausentes. E uma há que, retomando uma designação antiga, eu poderia dizer, sem dizer nada que não tenha sido já dito e redito, que é a "protagonista ausente" desta obra. Falo de Anna, a mãe de Karin, a mulher de Henrik, que morreu de cancro dois anos antes de o filme começar. Dela, temos recorrentemente, em casa do marido, em casa do sogro, o retrato a preto e branco. Amou-a o marido, amou-a a filha, amou-a o sogro e não parece que nenhum deles tenha amado alguma vez mais alguém. Foi o "anjo" naquele "ninho de víboras"? Tudo e todos parecem dizer que sim, única presença de amor feita, única presença feita para o amor. Ela só parece ter estado de lado daquela origem que Erland Josephson misteriosamente nomeia, quando comenta, na Cena I, a beleza da paisagem que o rodeia: "O mundo é pleno de belezas. Como deve ser bela a origem delas!" Ela só parece assemelhar-se ao São João que repousa no colo de Cristo, na ceia medieval da igreja da cena V e que Liv Ullmann vem ver de perto, no fim dela, única cena de onde o grande plano esteve ausente.
Mas será verdade? Quando Henrik termina o seu longo monólogo na cama com a filha (cena 3) vemos-lhe o retrato em grande plano. E há um breve efeito (outra vez o vídeo), em que os olhos do retrato parecem disparar uma luz luciferina (um encarnado tão rápido, mas não mo tirem) sobre a filha e o marido no leito conjugal. Muito depois (cena 7), vem a leitura da carta que Anna deixou ao marido, sobre a relação dele com a filha. Essa carta é carta salvadora ou carta de perdição? Pelo menos, a partir dela tudo se consome. Karin, que resistira à proposta do avô, não resiste ao convite de Abbado, a sarabanda da Suite não chega a ser tocada, e Henrik suicida-se sem que a filha o saiba.
E é depois (cena IX) que surge a sequência genial da hora do lobo, em que Erland Josephson, numa "diarreia de angústia", irrompe pelo quarto de Liv Ullmann, para, nu, se deitar junto ao corpo também nu da ex-mulher de 63 anos (a propósito, a idade real de Liv Ullmann à data da rodagem).
Parecia que o filme não podia crescer mais? Mas há ainda o epílogo. Como no prólogo, Liv Ullmann dirige-se à câmara (dirige-se a nós) e, numa última dissonância, assistimos ao seu encontro com a filha catatónica, que, por breves momentos, abre os olhos como que respondendo ao afago da mãe. "E, pela primeira vez, nas nossas duas vidas, percebi, senti, que tinha tocado na minha filha. Na minha criança."
O ecrã fundo em negro. O filme acabou.

4. Eu não consigo acabar sem vos fazer uma pergunta. Alguma vez pensaram que o grande plano é a única figura da gramática do cinema que só no cinema existe e que não é concebível em qualquer outra arte? Pintores pintaram grandes planos, mas o quadro impede-nos de os ver como tal, a não ser que encostemos a cara à tela, em movimento nosso e não da pintura. Não é maneira de a ver, não é movimento suposto ao espectador.
Mas a câmara pode o que o nosso olhar não pode. E a câmara de Bergman pode mais que qualquer outra câmara, mesmo a de Griffith. Neste filme, vai ainda mais longe. Ao acercar-se mais e mais dos quatro rostos e das quatro vozes, para além dos corpos, dá-nos a ver almas. Impossível? Não para esse génio de todos os possíveis, chamado Ingmar Bergman.

João Bénard da Costa 21 de Janeiro 2005 in Público

terça-feira, janeiro 18, 2005

Legenda Áurea  

1 - Vai para uns tempos, puxei de rufos e tambores para saudar a edição de "A Bíblia dos Jerónimos," em parceria entre a Bertrand e a FMR. Vai para uns tempos? Que digo eu? Já o ano mudou de quatro para cinco e os tempos de que falo são tempos do ano passado. Às voltas no mundo ou às voltas com o mundo, voltei a despedir-me à francesa e a desaparecer sem dizer água-vai. Uns chamam-me flibusteiro, outras trapalhão, mas eu acho sempre que eles não se vão embora para não mais voltar. Eu volto sempre. Posso despassarar, mas estou sempre onde menos se espera. Aqui, por exemplo, cá estou eu de novo, pegando nos livros onde os deixei e no Natal, já o Dia de Reis se foi há mais de uma semana.
Chega de tempos e da falta deles.
O que eu queria lembrar é que, ao louvar "A Bíblia dos Jerónimos", sacudi do capote eventuais suspeitas de andar a soldo de Franco Maria Ricci. Ficava muito mal com a minha consciência se não me apressasse nos hossanas a uma edição tão bela como essa e que nada tem que ver com a Bertrand ou com Ricci, surgida nos escaparates por obra e graça da Civilização Editora do Porto.
Em tão funesto ano como o passado, o Menino Jesus desceu do céu três vezes: para a Bíblia de que já tanto falei, e para os dois inadjectiváveis volumes que aqui me trazem hoje. Qual foi a terceira vez? A modéstia ou o orgulho impedem-me de o dizer por enquanto, mas pode haver quem repare. 2004, o malfadado, acabou em glória de livros de arte, desses que levaram o poeta das "Odes" ao verso famoso: "a thing of beauty is a joy forever".

2 - Algures em "A Alma dos Ricos", Agustina escreve que "santos e santas, pessoas de altíssima graça para a abnegação e o sacrifício, iam buscar essa paixão a um lugar inóspito e prodigioso, a própria infância".
Não há muito que duvidar. Quem conhecer o mais vasto repertório de vidas de santos e santas jamais recolhido não encontra um ou uma que não tenham ido buscar a bem-aventurança a essa tenra idade.
Hoje, lê-se muito menos a "Legenda Áurea". Mas, durante cerca de 600 anos, foi o "livro mais copiado e mais lido de todos os países da cristandade", juntamente com a Bíblia, como sustenta Diane de Selliers, no prólogo da magnificente edição francesa de 2000, em boa hora vertida para português em 2004. Por mim, só tenho algumas dúvidas ao lembrar-me da "Imitação de Cristo" (pelo menos tão lida como a "Legenda Áurea") e só ponho algumas reservas à expressão "países da cristandade". Sabido como os santos e santas foram desacreditados pela Reforma, não julgo que, nos países protestantes, o livro estivesse em muitas cabeceiras desde que a cristandade ocidental se partiu ao meio. Mas em terras do Papa, ou ao Papa reverentes (mesmo quando insolentes), a afirmação é pacífica. Quem, entre os ímpios, tiver dúvidas, leia a sábia introdução do prof. Aníbal Pinto de Castro e perdê-las-á. Só em Portugal não têm conta as edições, desde a de Alcobaça, em 1298, ainda o autor da "Legenda" era vivo, até as de 1818.
Embora para os mais novos persistam muitas confusões. Eu, por exemplo, sempre lhe chamei "Lenda Dourada" (por influência do título francês "La Légende Dorée" e em francês li eu o livro, quando novo era) e sempre escrevi o nome do seu autor como Jacques de Voragine (outro galicismo). Os factos, resumidos pelo prof. Pinto de Castro, convenceram-me. É bem certo que Jácomo, lacopo ou Jacopo de Varezze - "cedo conhecido pelo apelido alatinado de Voragine" (1226?-1298) foi um nativo da Ligúria, que professou nos dominicanos em 1244 e chegou a provincial da Lombardia, a geral da Ordem dos Pregadores e a arcebispo de Génova. Se viajou bastante (foi até França, foi até à Hungria), quase toda a sua vida se passou em Itália. De modo que, ao aportuguesar-lhe o nome, vale o compromisso de Pinto de Castro, que lhe chama Tiago de Voragine, pois que Tiago precedeu Jaime como versão lusa do Jacobus latino.
Não me vou demorar na história da vida de Tiago de Voragine, mas acentuo, seguindo uma vez mais o prof. Pinto de Castro, na imensa erudição que o levou a redigir durante cerca de vinte anos (mais ou menos de 1240 a 1260) estas vidas de 365 santos, usando como fontes autores que vão de Santo Ambrósio a Santo Agostinho, do Pseudo-Dinis ao Venerável Beda, para lá das Escrituras, quer as ortodoxas quer as apócrifas.
Voragine contou a verdade, só a verdade e nada mais que a verdade? No século XIII não se usavam tais pruridos e a palavra "legenda" por que a obra passou a ser conhecida, mostra, com clareza, que as fontes principais eram lendárias, recolhidas pela tradição com o mesmo grau de fidelidade dos contos populares. "Áurea", porquê? Porque "o seu conteúdo é de ouro" e brilha como brilha esse metal.
Para se perceber bem este livro, sobretudo "mágico", há que atentar em dois pontos, relevados na sumptuosa edição que aqui me trouxe. O primeiro é referido numa citação de Gervásio de Cantuária (1140-1210) que serve de epígrafe ao texto introdutório de Diane de Selliers: "Com a Beleza resplandece a luz. No Céu, contemplaremos a Beleza face a face, ali já não teremos necessidade da arte. Na terra, não podemos prescindir dela."
O segundo serve de título ao artigo de Pinto de Castro e chama à "Legenda Áurea" as "Mil e uma Noites do Cristianismo".
Quem ler este livro, esquecido desta platónica invocação à beleza (bebida directamente em Plotino), ou esquecido da sua analogia com os contos árabes, perde, quanto a mim, o essencial. Sendo também certo que, de acordo com as boas regras da retórica, "o prazer do texto (o 'delectare') e as emoções que desencadeia no destinatário (o 'movere') estão sempre ao serviço de uma intenção catequética e moralizante (o 'docere')" (aut.cit.).
Esse duplo propósito reveste-se na edição francesa de 2000 - e agora, nesta, portuguesa, de 2004 - de um aspecto ainda mais deleitoso, pela opção de ilustrar os dois grandes volumes da obra com reproduções da grande pintura italiana do século XIII ao século XV, de Duccio e Giotto até Masaccio ou Piero. A obra agora editada é um "livro de arte" fabuloso, uma espécie de "riquíssimas horas" da cristandade medieval e do primeiro Renascimento, que junta ao prazer da beleza literária o da beleza pictórica, tão belos os textos quanto as imagens, gloriosamente reproduzidas.
É um livro de imagens, é um livro de textos. O segundo é um dos mais belos textos medievais conservados. As primeiras levam-nos a percorrer a história da pintura (pintura italiana) entre os céus de Fra Angelico e as tebaidas de Uccello, para escolher dois de mil exemplos.
"Movere"? "Docere"? Não o nego. Mas estes dois volumes, que a Mónica e a Sofia me puseram no sapatão, são, para mim, sobretudo, objecto de deleitação. Como diria o João César Monteiro, se fosse vivo, "que de leites!".

3 - Leites há muitos, como é de supor em obra que dá à Virgem e ao Menino tão abundante iconografia.
Mas o líquido mais escorrente desta obra singularíssima é o sangue, já que a palma do martírio, ainda mais do que a da virgindade, foi a mais frequente via de acesso à eterna felicidade.
Quem quiser ler um tratado de sado-masoquismo, encontra-o também nesta obra. Exemplo supremo é a fabulosa história da morte do mártir São Tiago Interciso, a quem cortaram todos os dedos da mão direita, depois todos os dedos da mão esquerda, depois todos os dedos do pé direito e depois todos os dedos do pé esquerdo. Como ele sempre bradasse: "Este é o maior dia da minha vida! Hoje irei para o Deus forte!", os carrascos cortaram-lhe o pé direito e a seguir o pé esquerdo. Depois as mãos, depois os braços. "Os algozes já desfaleciam, pois suavam a retalhá-lo desde a hora prima até à nona do dia. Mas, de novo, abriram-lhe a perna esquerda e extraíram-lhe o músculo até à coxa." E Tiago Interciso rezava: "Senhor Soberano ouve-me que já estou meio morto (...) Não tenho dedos para Tos oferecer nem mãos para estender para Ti. Os meus pés foram cortados e os meus joelhos destruídos. Assim, não consigo ajoelhar-me, pois sou como uma casa que vai ser demolida, porque já não tem colunas que a sustentem. Escuta-me, Senhor Jesus Cristo, e tira a minha alma do cárcere. Ao dizer isto, aproximou-se um dos algozes e cortou-lhe a cabeça."
Mas o corpo é um cárcere traiçoeiro. Quando a escolha se põe entre libertar a virgindade ou libertar o espírito, a opção é ainda mais dolorosa.
É o dilema da Virgem da Antioquia, celebrada a 28 de Abril.
Determinavam os ímpios que a virgem ou sacrificasse aos ídolos ou se prostituísse num lupanar.
"Que farei? Hoje, ou serei mártir ou virgem. Ambas as coroas me seduzem. Contudo, onde se nega o autor da virgindade também não se reconhece o nome da virgem. Mas como poderei ser virgem, se venerar a meretriz? Como serei virgem, se adorar o adúltero? (...) Portanto, mais vale ter o espírito virgem do que a carne. Se for possível os dois, será bom. Se não, seja casta para Deus, embora não para o homem. Raab foi prostituta, mas depois acreditou em Deus e encontrou a salvação. E Judite tornou-se adúltera para agradar a um adúltero. Mas porque fazia isto pela religião e não pelo amor, ninguém a julgava adúltera (...). Porque se Judite tivesse preferido a castidade à religião, perdida à pátria, teria também perdido a castidade (...). Julgai vós e vede se ela teria ou não podido adulterar o corpo, já que nem a voz adulterou (...). Virgens de Deus, fechai os ouvidos porque levam a virgem de Deus para o lupanar; mas abri os ouvidos, ó virgens de Deus, porque, embora a virgem possa ser prostituída, nunca poderá ser feita adúltera."
Mil e uma noites nos foram contadas assim. Não é muito de espantar que as nossas noites de hoje ainda sejam como são. Mas, agora, o que interessa é abrir e fechar os ouvidos e os olhos às maravilhas destas lendas de ouro.
Há quanto tempo eu esperava que um livro destes viesse ao meu encontro! Ele chegou, forrado de azul e de encarnado.

João Bénard da Costa 14 de Janeiro 2005 in Público

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