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sexta-feira, fevereiro 25, 2005

A solidão da memória 

1.Borges escreveu algures (cito de memória) que a memória que de memória cito pode ser uma espécie de vício. Por isso, achava que não nos devemos inclinar muito sobre ela. É como quem pega num círculo e o acaricia suavemente. Arrisca-se a torná-lo num círculo vicioso.
"A acreditar na minha memória" é uma frase corriqueira, que não há ninguém que não repita, embora se pensarmos um bocadinho seja uma frase estranhíssima. Porque ou eu não me lembro bem e não acredito no que a seguir vou dizer, ou me lembro perfeitamente, o que dispensa a invocação. Bastava dizer: "Acreditem em mim", o que dava à frase sujeito mais (ou menos) crível. Quem acreditasse acreditava. Quem não acreditasse não acreditava. Se invocamos a memória, é para nos sentirmos mais acompanhados, quando sabemos que ela não é compartilhada por mais ninguém. Não há nada de mais solitário do que a memória.
Pior ainda é a frase: "Lembro-me muito bem." A mim, lembra-me logo um verso de Alan Jey Lerner para uma canção de Frederick Loewe. "I Remember It Well" era o título e, a acreditar na minha memória, foi fundo e forma da mais bela sequência de "Gigi", filme de Vincente Minnelli, em 1958. Um casal já entradote (Maurice Chevalier e Hermione Gingold), que, em tempos idos, tinha tido um caso, reencontrava-se, muitos anos depois, por obra e graça de vindouros respectivos, em Tourville, numa varanda à beira-mar. Ela insinuava que ele se havia esquecido de tudo e ele contradizia-a com a tal canção do "I Remember It Well". Só que a cada uma das coisas de que ele se lembrava muito bem, ela lembrava, ainda melhor, factos opostos. Do género: "encontrámo-nos às 9", cantava Chevalier, "não, não, foi às 8", emendava Gingold. "Cheguei pontualíssimo", "não, não, chegaste atrasado" ("We met at 9 / No, we met at 8 / I was in time / No, you were late"). E assim sucessivamente, mantendo-se constante apenas o refrão: "I Remember It Well". Curiosamente, o espectador tomava o partido dela, talvez porque, dos dois, ele continuasse a ser o mais gaiteiro e o de pior reputação em histórias de saias. Mas vá-se lá saber qual deles é que se lembrava bem, ou se os dois ou se nenhum. Lembrou-se Minnelli, que, quinze anos mais tarde, chamou às memórias "I Remember it Well". Não me admira. Ganhou tanto dinheiro e tantos Óscares com esse filme que não dava para esquecer. Mas também é verdade que nem Chevalier nem Gingold lhe podiam lembrar que ele não se lembrava tão bem como contava. Certo, certo é que a memória é, de todos os nossos atributos, não só o mais solitário como o mais impune, quando nada resta de "palpável" para o certificar. A memória dos outros? Mas quantas vezes não nos aconteceu chamarmos por ela e ouvirmos como resposta: "Não me lembro nada disso", tão convicto como a vivida lembrança de quem não se esqueceu.

2. Duas histórias passadas comigo esta semana puxaram-me o pé para esta conversa ou para o que eu havia de me lembrar.
A primeira tem que ver com a minha crónica anterior "Todas estas eleições antigas" (PÚBLICO, 18 de Fevereiro de 2005). A páginas tantas, lembrei eu o meu primeiro comício político, comício da União Nacional, acontecido no Trindade, em 1949, durante a última campanha de Carmona. Referia que tinha ido até ele com a minha irmã mais velha. Que fui eu dizer? Telefonou-me, furiosa. Segundo ela, era uma invenção total. Nunca tinha posto os pés em tal comício e eu andava a difamá-la pelos jornais, cinquenta e seis anos depois. Quem me podia dar razão, ou lhe podia dar razão, ou já morreu ou já desapareceu. Quanto mais eu jurava na minha verdade, mais ela jurava na verdade dela. Só que, no caso, não é "chacun sa vérité", e ela tem, como eu tenho, o que se chama boa memória. Deu-me muitas razões plausíveis para a improbabilidade da companhia dela. A todas, só pude e posso responder: "Eu lembro-me." Mas como a minha irmã nem sequer diz "eu não me lembro", jura que é mentira, de que me vale a minha memória? Para mim, tudo, pois não tenho a mínima dúvida. Para ela, nada, pois também dúvida mínima não tem. A discussão não leva a parte nenhuma. Memórias impuníveis, num caso e noutro.
A conversa está a ficar esquisitíssima. "Que é que nós temos que ver com essas fraternas disputas, ainda por cima sobre coisas passadas no tempo dos nortoninos"? As aspas não são memória, já são imaginação. Mas tem toda a razão. Não tem absolutamente nada que ver com isso e eu voltar com a bota à Ribeira Torta (espero que desta ela se lembre, mas pouca gente mais) só a vai irritar mais ainda e não é essa, nem por sombras, a minha intenção. Queria exprimir apenas a irremediável solidão das memórias despovoadas ou excessivamente povoadas por fantasmas que mais ninguém se lembra de ter visto. Irremediável solidão e irremediável impotência. Porque não há nada pior que ter razão e não poder provar, senão com o mais subjectivo dos argumentos: a memória solitária.
Sirva a segunda história para arranjar lenha para me queimar. Aqui há uns tempos, num desses concursos televisivos (alheios, que os nossos são mais de trazer por casa) em que se põem à prova saberes cinéfilos, o mestre de cerimónias perguntou ao candidato em que filme Clark Gable foi, pela primeira vez, tratado por "King", cognome invariavelmente associado ao lendário actor que, para quem não se lembra, reinou em Hollywood dos anos 30 aos anos 60. Puxei pela memória e não me lembrei, como o concorrente também não se lembrou. A resposta era "It Happened one Night", filme de Frank Capra, de 1934, já lá vão setenta anos. Lusamente, duvidei. Lembrava-me bem do filme, que já vi mais de sete vezes e do que me lembrava era que se chamava King o rival de Clark Gable, coisa que sempre tomei como "private joke" do argumentista. Um King contra "o" King.
Acontece que Stanley Cavell (não se devem lembrar) veio esta semana a Lisboa para um ciclo sobre o que ele chama as "remarriage comedies" do cinema clássico americano. Já não me lembrava do concurso, nem da minha reacção. Mas, revendo o filme, vi que a certa altura, depois de Clark Gable sair aparentemente vencedor de um telefonema em que foi vencido, os colegas deslumbrados o aplaudem e pedem que se abram alas para o "rei". Postumamente, dei a mão à palmatória. O lapso era meu e, em boa verdade, Clark Gable era aclamado rei em "It Happened One Night". Como é que eu não me lembrava? Não me lembro. Só que, ao contrário da história precedente, a prova existia e contra factos não valem memórias. Imaginem que o filme era um dos muitos "lost films". Ninguém me tirava da minha (nem um júri do BBC) e repetia-se a história comicieira.
Estou a pôr em causa a minha memória, ou estou a pôr-me em causa? Nessa não me apanham. Admito falhas para saberes vindos de fora. Não as admito para saberes vindos de mim. Em rigorosa honestidade, no caso do filme eu teria que dizer: "Não me lembro disso" (ou seja, não confirmo nem desminto). No outro caso, confio da minha memória (e da minha memória apenas) a veracidade do que vivi e de com quem o vivi. Se a memória mente, essa mentira já faz parte de mim e só lhe posso chamar mentira se como mentira me chamar também. Mas então são tudo mentiras.

3. É certo que a memória nunca teve muito boa reputação. No "Dicionário das Ideias Feitas", Flaubert regista: "Queixarmo-nos de falta dela ou mesmo gabarmo-nos de não a ter. Mas corar, só se alguém nos disser que à inteligência não devemos muito." Indo mais longe, há até quem diga que a falta de memória pode ser uma bênção e o excesso dela uma maldição. "Ai, a minha memória!", como a velha que se tinha esquecido do esqueleto do amante no armário, é lamento que não fica mal a ninguém, enquanto são raríssimos os que têm coragem para dizer: "Ai, a minha inteligência!"
No seu último livro, José Cardoso Pires ocupou-se longamente desta questão. Na sequência de um acidente vascular cerebral sério, ficou uns meses sem se lembrar de nada, sequer de quem era. Quando recuperou, lembrou-se que se pode existir medianamente sem grande inteligência, mas que ninguém vive sem memória. Perder a memória é perder a identidade, literalmente deixar de se saber quem se é. Nenhum livro me meteu mais medo do que um que o prof. Delfim Santos nos recomendou, quando eu andava na Faculdade de Letras, e se chamava "Les Maladies de la Mémoire". Nessa altura não se falava muito nisso e a doença de Alzheimer ainda era baptizada com nome mais suave. Nesse livro, vinha descrita, como outras igualmente terrificantes.
Lembro-me de ter ouvido Steiner, uma vez, referir-se àquele momento ou àqueles momentos (vão chegando, vão chegando) em que, de repente, nos falta um nome "que está debaixo da língua", como o princípio do fim para o historiador que se converte em história. Cultura é tudo o que fica, quando o que aprendemos se esquece? É precisamente o contrário, pois nenhuma cultura se funda sobre o esquecimento. Se todos nos lembrássemos da vida toda - desde o ventre materno, como Tolstoi dizia que se lembrava - conhecíamos e conheceríamos bastante melhor.
É por isso que penso que as pedagogias que desvalorizam a função da memória, ou se batem contra o "ensino memorialista", são as responsáveis pela incultura dominante e pela perda do sentido de tempo e de História, sem a qual ninguém se acha e os portugueses muito menos.
Mesmo que ninguém me acredite eu acredito na minha memória. Todas as minhas outras crenças dela vieram. De resto, para mim e para todos, donde mais podiam elas ter vindo? Como não tenho tempo nem espaço para vos resumir a teoria da reminiscência, acabo a dizer que o Filho do Homem só desceu à Terra para nos lembrar.
Começo na minha irmã e acabo no Filho do Homem? Se se lembrarem bem, talvez o despropósito não seja tão grande como o propósito parece. Mas, para o saber, é preciso ter muito boa memória.

João Bénard da Costa 25 de Fevereiro 2005 in Público

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