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segunda-feira, junho 27, 2005

Cultura e Liberdade (I) 

1.O passado, às vezes, salta-nos às canelas, quando menos esperamos e onde menos esperamos.
Passa mais de ano e dia, recebi uma carta de Roselyne Chenu, com quem trabalhei de muito perto cerca de oito anos (66-74) e não via há mais de vinte e cinco. Eu, sempre a jurar-me fidelíssimo, também sou assim e detesto voltar aos lugares dos crimes. Ela vinha falar-me de coisas de antanho. Andava a procurar no passado e queria saber se eu a podia ajudar. Teria eu papéis desses oito anos? Rasgara as cartas e as fotografias ou conservava-as em qualquer canto? Algumas peças do puzzle estariam comigo ou o que eu lembrava, como as mulheres e os amigos de Kane, eram coisas minhas e não coisas dela? Rosebud era ou não era palavra de que eu me lembrasse?

2. Tendo citado Citizen Kane, não se admirem se se seguir um flash-back.
Lisboa, Dezembro de 1965. Eu tinha 30 anos e dividia o meu tempo legal entre O Tempo e o Modo (uma revista de pensamento e acção, para quem não saiba) e o Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian, onde me formava em T grupos (essa inicial T serve para palavras suspeitas e sentimentos insuspeitos) e pedagogia não-directiva, o que ia a calhar com o meu feitio. O António Alçada Baptista, que inventou O Tempo e o Modo, as edições da Moraes e andava a precisar de dinheiro como de pão para a boca, viu finalmente coroados de algum êxito esforços para convencer católicos italianos ou franceses mais desempoeirados a ajudarem-no um bocadinho. Jean-Marie Domenach, director da Esprit (revista que era o mundo da ideia de O Tempo e o Modo) apresentou-o a Pierre Emmanuel, poeta e resistente. Dele (dele, Pierre Emmanuel) tinha eu decorado uns versos em tempos idos: Toute la nuit dans sa gorge / il mourût à midi / et sa dernière parole / fût un soleil inouï.
Pierre Emmanuel dirigia então o Congrès pour la Liberté de la Culture, organismo fundado em 1950 por Raymond Aron, Arthur Koestler, Salvador de Madariaga, André Malraux, Jacques Maritain, Bertrand Russell, Robert Oppenheimer, Denis de Rougemont, etc. Era uma organização subsidiada por várias fundações americanas e que apoiava revistas bem conhecidas como a inglesa Encounter e a francesa Preuves.
Em 1960, após dez anos em que o Congrès se irradiou, sobretudo nos países chamados socialistas, Pierre Emmanuel pensou na Península Ibérica e nos países que, nela, não gemiam sob o comunismo, mas atabafavam com o franquismo e com o salazarismo. Primeiro criou um comité espanhol, depois, quando conheceu o António Alçada, pensou num comité português.
Em Dezembro de 1965, na presença de Roselyne Chenu, assistente de Pierre Emmanuel e particularmente encarregada dos povos ibéricos, teve lugar a primeira reunião do Comité Português, que adaptou o púdico nome de Comissão para as Relações Culturais Europeias. Dez membros: Adérito Sedas Nunes, António Alçada Baptista, João Pedro Miller Guerra, João Salgueiro, Joel Serrão, José-Augusto França, José Cardoso Pires, José Ribeiro dos Santos, Luís Filipe Lindley Cintra e Mário Murteira. Estava representado quase todo o espectro político e quase todas as áreas do saber, com um leve favoritismo para as ditas ciências humanas (sociologia, economia, história), o que à época dava seriedade.
Tudo acabou (em Dezembro de 1965) com um festivo jantar em casa da Zezinha e do António, onde conheci melhor Roselyne Chenu. Ela tinha 33 anos ("l"âge du Christ") olhos muito azuis e cabelo louro cortado à Jean Seberg. É a imagem que ainda tenho diante dos olhos.
Passou meia dúzia de meses. O Comité reunia-se mensalmente mas tardava a passar das palavras aos actos. Começou a ser voz corrente que fazia ali falta um "profissional". Eu, chefe de redacção de O Tempo e o Modo e sem muita vontade de continuar a investigar pedagogia após a morte do prof. Delfim Santos em 1966, estava à mão de semear. Juntava o útil ao agradável, trabalhando sob o mesmo tecto (Av. 5 de Outubro, lá mesmo ao fim, em frente donde era a Feira Popular) para O Tempo e o Modo e para o Congrès.
Faltava-me a bênção de Pierre Emanuel. Surgiu em Setembro de 1966, quando o Congrès organizou em Aix-en-Provence um encontro entre membros do comité espanhol e do comité português, ou gente próxima. O tema era subtil: Pensamento renovador e sociedades estagnadas. De Portugal, além de mim, foram o António Alçada, o Nuno Bragança, o Cardoso Pires, o Lindley Cintra e o Mário Murteira.
Na minha comunicação, citei, de Bernanos, uma frase que já citei mais de 66 vezes na minha vida: "Il faut témoigner pour ce qui dure contre ce qui fait semblant de durer." O Pierre Emamnuel gostou muito e convidou-me. Pedi três meses para arrumar as gavetas da Gulbenkian e prometi que em Dezembro lá estaria (lá era um magnífico e espaçoso andar do Boulevard Haussmann), para tomar posse e ser introduzido por Roselyne Chenu aos meus deveres de secretário executivo de um comité. Lá estive e de lá segui para Madrid, para juntar à aula teórica uma aula prática com o meu colega espanhol Pablo Martí Zaro.
Depois, o Congrès mobilou-me um gabinete na 5 de Outubro (castanho muito claro, cores do Duarte Nuno Simões) pagou-me um ordenado de seis contos mensais (o prof. Cavaco deve saber quanto seria hoje, mas não havia nem 13.º nem 14.º mês) e transformou-me no 11.º membro da Comissão.
Para esta, entraram ainda, entre 1967 e 1972, João de Freitas Branco, José Palla e Carmo, padre Manuel Antunes S. J, Maria de Lourdes Belchior, Nuno Bragança, Nuno Teotónio Pereira e Rui Grácio. Chegámos a ser 18.
Em 1970, quando saí de O Tempo e o Modo, mudámos da Av. 5 de Outubro para a António Maria Cardoso, para o Centro Nacional de Cultura. Aí tive casa e pucarinho quatro anos e picos. Veio o 25 de Abril, a nossa luta não continuava. Foi cada um para as suas casas. Eu trouxe para a minha todo o arquivo do Congrès, que nela jazeu (num sótão húmido) vinte e dois anos. Em 1997, propus a Mário Soares e à sua fundação receberem esses arquivos e os de O Tempo e o Modo. Apesar do péssimo estado de conservação, Mário Soares aceitou.

3. Acabo aqui o flash-back. No regresso ao presente (presente do ano passado), eu respondi à ressuscitada Roselyne Chenu que não tinha nada, que me deserdara em vida, como dizia a minha Avó, a favor da Fundação Mário Soares.
Mas palavras não foram escritas, entrou-me pela porta dentro o Nicolau Andresen Leitão (que eu não conhecia) a contar que o Centro Nacional de Cultura também andava à busca de origens, no ano do seu 60º aniversário. E estava intrigado com os anos 70-74, que se sucediam às direcções de Sophia e de Francisco Sousa Tavares e antecediam a de Helena Vaz da Silva. Resultado: tinham-no encarregado de estudar o Congrès e o Congrès em Portugal. Já tinha andado pela Fundação Soares a vasculhar os "meus" arquivos. Queria saber mais coisas. E queria dedicar um dia de 2005 a discutir com os sobrevivente do Congresso (de 18, restamos só 7) e com os beneficiários do Congresso o que fora essa história toda.
Escrevi logo a Roselyne a dar-lhe as boas novas. Depois, eles entenderam-se entre eles. Roselyne Chenu foi justamente convidada a voltar a Portugal. A 21 de Junho, na Fundação Luso-Americana, falaram Guilherme Oliveira Martins, em nome do Centro, Roselyne Chenu, eu e Nicolau Andresen Leitão. Dos antigos membros, depuseram António Alçada Baptista, João Salgueiro, Mário Murteira e Nuno Teotónio Pereira. Dos antigos contemplados José Medeiros Ferreira, José Pacheco Pereira e Manuel de Lucena.
Foi um dia cheio de fantasmas e com o meu fantasma de cabeceira.

4. Durante oito anos, dúzia e meia de portugueses ajudaram revistas e cooperativas, associações de estudantes e estudantes desassociados, investigadores dispersos pelo exílio ou pela clandestinidade, grupos de teatro e uma antologia musical (sim, o primeiro disco da antologia de Lopes Graça e Giacometti foi subsidiado por nós), gentes das mais diversas famílias políticas, a sentirem-se um pouco mais livres e a terem oportunidade de ser mais cultos.
Houve muitas peripécias (delas falarei em próxima crónica) mas não houve nem zangas nem rupturas. Nem entre nós, nem com quem velava e zelava por nós e, num plano discreto, como assistente de Pierre Emmanuel, nos deu os meios e a força de poder ajudar um bocadinho.
A pouco e pouco, recuperei a memória e lembrei-me que foi graças ao Congresso, num encontro organizado em Senanque, numa bela abadia românica, que, conversando com poetas búlgaros e escritores romenos, eu percebi a diferença entre um "sonho mau" (o sonho que então se sonhava em Portugal) e um "pesadelo" (o que então se vivia no Leste europeu). Percebi a diferença entre viver sob um regime autoritário ou sob um regime totalitário.
Um dia escrevi a Roselyne Chenu - foi ela quem agora mo lembrou - que se algum dia duvidasse do sentido da vida dela, pensasse no que fez por Portugal. No dia 21, o Presidente da República de Portugal conferiu-lhe o grau de comendadora da Ordem da Liberdade.
Demorou 40 anos. Mas o passado não perdoa e renasce quando menos se espera. Por muitos motivos, nunca esquecerei o 21 de Junho de 2005.

João Bénard da Costa 26 de Junho 2005 in PÚBLICO

segunda-feira, junho 20, 2005

De John Mohune a Jon Whiteley ou de Fritz Lang a Jean-Auguste-Dominique Ingres 

1.Julgo que é o título mais comprido desta série de crónicas, quer as das antigas e românticas sextas-feiras, quer as dos novos e frustres domingos onde ainda não conseguiram arranjar lugar para me sentar.
Quando se escolhe um título longo, é, normalmente, para ser mais explicativo, como é o caso, por exemplo do Everything You always Wanted to Know About Sex, but Were Afraid to Ask. Não é o caso deste meu, de hoje. Dou um doce a quem, mesmo muito sabido, perceber que relação existe entre John Mohune e Ingres, ou mesmo entre o pintor e Fritz Lang. Essa relação construiu-se, para mim, nos últimos três anos e só há três dias se concretizou. Apetece-lhes ouvir a história? A mim, apetece-me contá-la.

2. John Mohune é o nome do jovem herói do romance de John Meade Falkner Moonfleet, publicado em 1898. Um desses romances de aventuras escritos para pré-adolescentes do sexo masculino, que descende de Stevenson ou, mais remotamente, de Dickens ou de Kipling, e que foi muito popular na Grã-Bretanha, dos alvores aos meados do século que passou.
A acção situa-se no século XVIII. John Mohune é o filho de Olivia e a família é tão importante naquela parte da Escócia que o próprio nome da povoação que dá título ao romance provém dela. Moonfleet é contracção de Mohune e Fleet. Não eram senhores muito amados os Mohune. John, órfão aos nove anos, é informado pouco depois (pouco depois da morte da mãe, que o pai é outra história) que o nome não é propriamente um nome benquisto na aldeia de contrabandistas e piratas onde se situa quase toda a acção.
A primeira vez que o vi foi no filme homónimo de Fritz Lang, estreado em 1955. Tinha os mesmos nove anos, era muito ruivo e de cabelo encaracolado, a cara cheia de sardas, olhos azuis determinados. Por uma noite sem lua, com um céu coberto de nuvens púrpuras ou amarelas, caminhou à procura de um homem que julga ser seu amigo. A certa altura pára, para tirar um seixo de um dos buracos das solas das botas. De repente, aparece-lhe - é o termo - um anjo enorme de olhar vazio e expressão inquietante. Será estátua? Será gente? Uma mão que se vê em cima de um muro parece apontar para a segunda hipótese. John Mohune tenta fugir, tropeça e desmaia.
Quando acorda, está no fundo de um poço e é do fundo desse poço que nós, com ele, vemos em contra-plongée vertical uma série de caras patibulares. O miúdo caiu às mãos de 40 ladrões. Mas recupera depressa a coragem e insiste que o levem à presença de Jeremy Fox, para quem traz uma carta. Carta da mãe, que, ao morrer, o confiou aos cuidados desse homem.
Quando lhe somos apresentados (a Jeremy Fox), o aspecto e as maneiras do personagem (o actor é Stewart Granger) não prometem nada de bom. Nem dele, nem dos companheiros dele (onde avulta, para mim, a voz incomparável de Joan Greenwood), nem da dançarina que dança para ele. Só muito pouco a pouco percebemos algumas coisas e nem todas são esclarecidas. Jeremy Fox tem as costas marcadas por dentes de cães que os Mohune lhe atiçaram. Plebeu, estava na companhia de senhora, senhora que só podia ser uma Mohune, para a família se enfurecer de tal modo. Se ela, ao morrer, confiou o filho ao homem que fora pasto da matilha, as probabilidades são muitas de John Mohune ser filho de Jeremy Fox, embora no filme nunca tal se diga e o miúdo nunca o suspeite. No livro? No livro nem sequer há nenhum Jeremy Fox, tal era, nesses bons tempos, a fidelidade dos estúdios aos textos originais.
Mas se John Mohune nunca suspeita que Jeremy Fox é seu pai, também nunca duvida que ele seja o amigo que a mãe lhe disse que era. Contra todas as evidências, porque Jeremy Fox passa o filme a enxotá-lo. Mrs. Minton, uma das amantes dele, pergunta a Jeremy: "Que vais fazer dele? Corrompê-lo e destruí-lo, como fazes a toda a gente?" "Há um perigo bem maior", responde Jeremy, "é ser ele a destruir-me." No final do filme todos morrem, menos John Mohune, que tem finalmente toda a razão para dizer: "It"s good to have a friend."
Para interpretar John Mohune, a Metro-Goldwyn Mayer, em 1955, chamou Jon Whiteley, um miúdo escocês que se estreara nas telas aos 6 anos, em 1951, e aos oito ganhara um Óscar especial da Academia pela sua interpretação em The Kidnappers de Philip Leacock. Em 1956, aos 11 anos, desapareceu das telas. Os pais acharam que cinco anos de filmes e estúdios, entre Londres e a Califórnia, já chegavam. Mandaram-no estudar.
Mas quem ama Moonfleet como eu amo - e estou cada vez mais acompanhado - nunca mais conseguiu ver John Mohune sem ver Jon Whiteley seguindo com um cão o seu amigo e roubando para ele o tesouro do Barba Ruiva. Cinemascope, mar, o obsessivo decote de Joan Greenwood, a voz de Joan Greenwood. E, evidentemente, Jon Whiteley. Cemitérios, lousas quebradas, poentes castanhos, rochas escarpadas. A fotografia de Robert Planck e a música de Miklos Rozsa. E, evidentemente, Jon Whiteley.

3. Mas se era evidente, era tão evidente que nunca me lembrei de perguntar por ele. Nem eu, nem (aparentemente) mais ninguém. Todas as celebridades do filme disseram da sua graça, e a maior das vezes da sua desgraça. Fritz Lang só no fim da vida se reconciliou com um filme em que passou as passas do Algarve. John Houseman, o produtor (que não era nada imbecil), dizia que só os franceses é que achavam que o filme era uma obra-prima. Por "perversidade ou por lealdade para com Fritz Lang". Mas Jon Whiteley nunca foi tido nem achado, apesar de se dizer que Lang, "ditatorial e déspota", tratara com especial e teutónico sadismo o seu jovem intérprete.
Provavelmente, o assunto teria morrido por aí (e hoje não me estavam a ler), se, em finais de 2001, por ocasião de um seminário sobre cinema e pintura no Convento da Arrábida, Henri Zerner não me tivesse perguntado: "Você sabe que Jon Whiteley é meu colega e professor de História de Arte em Oxford?" Não fazia a mais pequena ideia. Mas como cinema, pintura, Moonfleet fazem trindade indissociável, pensei em convidá-lo quando saísse o livro em que esse seminário desembocou. Convidá-lo para vir a Lisboa e apresentar Moonfleet.
Ao princípio correu mal: de Oxford disseram-me que o prof. Whiteley (hoje com 60 anos) estava em ano sabático algures nos Estados Unidos. Mas havia mails. Há sempre.
Já com poucas esperanças, mailei. E, na volta, tive a resposta mais simpática do mundo. Que adorava voltar a Portugal, que conhecia como turista e que adorava apresentar Moonfleet, que (e agora sublinho bem) nunca ninguém o tinha convidado a apresentar.
Em Janeiro, Jon e Linda Whiteley desembarcaram em Lisboa e eu vi subitamente na minha frente, aos 60 anos, o miúdo de 9, de 1955. Mesmos cabelos ruivos, mesmos olhos azuis, mesmas sardas. E, na fantástica apresentação do filme, o mesmo medo e a mesma coragem para defender Fritz Lang, acabar com a lenda das malfeitorias e falar da conspiração de produtores e actores contra aquele velho barrigudo e monocular que ousara pular para cima de uma mesa e explicar à famosa bailarina Liliana Montevecchi como é que se devia dançar a dança que ele queria que ela dançasse para endoidar os homens e empalidecer as mulheres. Fritz Lang, o realizador que "composed scenes in the manner of a painter and treated actors like a puppet-master". "This perhaps annoyed his actors but it did not trouble me."
Depois falou-me de Ingres, seu pintor favorito, e prometeu-me o livro que sobre ela tinha escrito e há muito se esgotou.

4. A fama dessa palestra de Lisboa chegou a várias partes. Este e aquele começaram-me a pedir o Whiteley de Lisboa.
Até que, postos os feriados de Junho e os dias de montanha russa entre Guimarães e Salamanca, Salamanca e Belmonte, recebi, com data de 8 de Junho, uma carta dele e o livro sobre Ingres.
Na carta dizia-me que "as a result of your invitation to Lisbon and the showing of Moonfleet" recebera um convite para comentar o filme num festival em Procida. Sabia que a cópia a ser projectada era a nossa (a melhor cópia de Moonfleet que por aí anda e não é para me gabar). "Any chance of seeing you? I hope so very much."
Não, não vou rever em Procida o meu John Mohune feito John Whiteley, criatura de Lang e criatura de Ingres, igual aos 9 e aos 60 anos, na sua busca pela amizade e na certeza dela. Mas ganhei o livro azul, com o retrato da viscondessa de Haussonville que está na Frick Collection. E nele recordei que a duquesa de Guermantes, depois de o ter execrado como o pior dos académicos, descobriu, no fim da vida, que ele fora o genial precursor do Art Nouveau. "Como os arquitectos do barroco, Ingres ultrapassou o domínio da arte clássica para inventar uma linguagem expressiva de regras quebradas, através das quais deu forma exterior aos doces, nostálgicos, ambiciosos, sensuais e vingativos desejos que sempre possuíram a sua imaginação."
Ingres, certamente. Mas também Fritz Lang. "A deeply sensuous nature."
John Mohune começou na encruzilhada de Moonfleet. Mas lembrou-se que estavam por ali senhoras. Foi nos banhos turcos de Ingres.

João Bénard da Costa 19 de Junho 2005 in PÚBLICO

terça-feira, junho 14, 2005

O fantasma apaixonado 

1. Em 1979, organizei, na Gulbenkian, um ciclo sobre cinema americano dos anos 40. Desse, como doutros ciclos dos anos 70 e 80, a fada-madrinha foi uma das pessoas mais enigmáticas e fascinantes que jamais conheci. Não sei o nome dela e não sei de ninguém que o saiba. Dizia que se chamava e chamavam-na Mary, mas, não sendo ela inglesa, americana ou mesmo remotamente anglo-saxónica, é duvidoso que a tenham baptizado com esse nome. Usava o apelido Meerson, pois teria sido casada com Lazare Meerson (1900-1938), famoso decorador francês de origem russa. Mas é bem possível que tivesse sido tão casada com Meerson como o foi com Henri Langlois (1914-1977), o lendário fundador da Cinemateca Francesa. Muitas vezes a ouvi autodesignar-se como Mme. Langlois, mas, se viveu com Langlois entre 1939 e 1977, não consta que se tenham casado. Sem razão aparente (mas porque é que querem sempre razões para tudo?) guardou toda a vida absoluto segredo sobre as suas origens. Diziam-na russa, diziam-na búlgara, diziam-na finlandesa, diziam-na de um dos países do Báltico. Ela nunca nada revelou e, quando alguns biógrafos de Langlois começaram a querer vasculhar-lhe o passado, enfureceu-se terrivelmente e Deus e algumas pessoas sabem como as fúrias dela eram terríveis. Morreu em 1993, diz-se (quem pode estar certo?) que nonagenária, mas bilhete de identidade, passaporte ou qualquer outro documento de registo civil nunca se lhe conheceu. A mim, essa mulher que me explicou que os russos só invadiram o Afeganistão para descobrir segredos sobre ciências ocultas, sempre me disse que não morreria. "Um jour, je m"envolerais..."
Da morte de Langlois até ter voado de mim (estou, pois, a falar de uma pessoa com setenta e muitos anos, ou oitenta) desenvolvemos uma relação que me é impossível qualificar. Telefonava-me vezes sem conta, altas horas da noite, quase sempre para casa, pois que, para ela, telefones de trabalho (Gulbenkian ou Cinemateca) eram telefones sob escuta dos nossos muitos ignotos e invisíveis inimigos. Se, quando a conheci, era gordíssima e imponentíssima, disseram-me que em nova fora belíssima. "J"etais plus belle que toi", teria dito um dia a Marlene e tê-lo-ia sido ao tempo em que a lenda pretendia que se passeava por Paris nua, sob um fabuloso casaco de renard argenté. Nesses telefonemas nocturnos, transparecia o "coquettismo" das mulheres que são ou foram muito bonitas e se habituaram a seduzir homens. Tinha uns olhos extraordinários, como só o têm os quase cegos que vêem o que mais ninguém vê (quase cega sempre a conheci). Tinha uma voz de baixo profundo, que facilmente se confundia com a de um homem e dominava, na perfeição, o inglês, o alemão, o francês, o italiano, o russo e muitas mais línguas que nem eu sei (num jantar, uma vez, espantou toda a gente recitando poemas em arménio e os arménios presentes juraram-me que ela o dominava fluentemente).
Por que razão ela me tomou sob sua protecção nunca saberei bem. O nome Gulbenkian (ela teria conhecido Calouste Gulbenkian quando foi marchande d"art) contribuiu fortemente, mas não explicou ou explica tudo. Lia através de mim ou em corpo ou em voz. E em várias alturas, mais complicadas, sem que alguma vez eu lhe tenha feito confidências, dizia-me o que eu precisava de ouvir como se fosse uma Xerazade ou um Tomás de Kempis telecomandados. Uma vez disse-lho. Limitou-se a responder-me: "Je sais. Mary sait tout."
Soubesse-o ou não (e eu, hoje, acho que, se ela não sabia tudo, sabia muito), o que é certo é que, graças a ela, eu fiz o meu nome como programador. Filme que lhe pedisse (mesmo que a Cinemateca Francesa o não tivesse ou o poder efectivo dela na Cinemateca Francesa já fosse diminuto) era filme que ela me encontrava. No fim do mundo, ou ao virar da esquina.
Há uma expressão que eu acho deliciosa e aprendi há pouco tempo com as minhas netas mais velhas, com a Sofia e com a Mariana: "amizades coloridas". Se não sabem perguntem, que eu não estou aqui para explicar. Mas acho que a minha relação com Mary Meerson foi uma "amizade colorida" avant-la lettre. Après la lettre, vejo-lhe o olhar renascendo em muitas vidas, ou de dantes ou de depois.

2. É estranho. Eu não vinha para falar de Mary Mersoon, sobre a qual escrevi uma crónica quando ela morreu e co-organizei um catálogo a que chamei O Cinema como Magia.
Se a invoquei, e ao tal ciclo de 79, foi para contar uma história bizarra das muitas entre nós sucedidas. Além de filmes, pedi-lhe cartazes para uma exposição paralela ou coisa que o valha. Ela enviou-me os originais de The Grapes of Wrath de John Ford e de The Ghost and Mrs Muir de Joseph L. Mankiewickz. São cartazes enormes e vinham montados em diversos rolos, para depois se colarem e se pendurarem nas fachadas do cinema, como nos anos 40 se usava. Mandei-os para o serviço de exposições da Gulbenkian que, pouco habituado àquele género de materiais, os montou, sim, mas os colou em enormes e pesadíssimos contraplacados de madeira. Quando assim os vi, caiu-me a alma aos pés. Como é que eu ia devolver aqueles "monstros"? Descolar os cartazes nem pensar, que ficavam em fanicos. Reenviá-los para Paris só em camião especial e por uma fortuna. Telefonei-lhe a contar do sucedido e ela respondeu-me com a maior naturalidade do mundo: "Guarde-os. Pode ser que lhe sejam úteis."
Assim fiz. De 79 a 91, os cartazes estiveram nas paredes do meu gabinete da Gulbenkian. Em frente de mim (porquê?) já estava o do Ghost, filme que em Portugal se chamou O Fantasma Apaixonado.
Não é tão bonito como o das Vinhas da Ira, com desenho original desse mestre dos nossos neo-realistas que se chamou Benton. Mas nunca resisti ao sorriso de Gene Tierney, tão segura, tão insegura, precisamente por isso. Curiosamente, uma Gene Tierney tingida de louro, quando nunca houve mulher mais morena e mais branca em Hollywood. High-Cheek Bone Beauty. Há tanto de triste e algo de insuspeitado nesse leve sorriso e nesses imensos, insondáveis olhos. Mulher-patchuli. Em 91, trouxe os cartazes para a Cinemateca. Hoje, o das Vinhas da Ira anda por lá. No meu gabinete, em frente à minha mesa, só o do Fantasma. Vinte e seis anos (79-05) a viver com ele e com a Mrs. Muir dele é muito tempo. Mais do que umas bodas de prata. Mas a profecia de Mary Meerson cumpriu-se. Também foi para isso que ela mo mandou.

3. Esta vida é de facto estranha.
Quando eu vi O Fantasma Apaixonado pela primeira vez tinha 12 anos. E foi no Tivoli dos veludos da Fox. Quem fosse o realizador - Joseph L. Mankiewickz, depois, também, meu cineasta de cabeceira - ignorava completamente. Só me interessava Gene Tierney e, depois de visto o filme, passou-me a interessar Rex Harrison, com quem vivi pela primeira vez.
Gostei. Gostei muito. Mas quão longe estava de adivinhar o que esse filme iria significar para mim, passados os 40 anos, quando o revi no tal ciclo da Gulbenkian e, depois, quando o revi e revi e revi em dezasseis passagens na Cinemateca e mais não sei quantos visionamentos.
Já contei mil vezes, mas, como estou morto por contar, conto outra vez.
Mrs. Muir (Lucy Muir = Gene Tierney) enviuvara há pouco tempo de um Mr. Muir que nunca vemos, mas não era de molde a deixar grandes saudades. Sogra e cunhada em Londres, princípio do século XX, vigiavam a virtude da jovem viúva e da filha dela, de dois anos. O filme começava quando a situação se começava a tornar insuportável e Mrs. Muir, doce mas firmemente, anunciava que ia sair de vez daquela casa para ir para o pé do mar, para o pé do mar. Nem rogos nem ameaças a demoveram. Procurou casa junto ao Mar do Norte como Mar do Norte nunca vi, mas nenhuma casa a convenceu. Até que viu a que queria ver, mas ninguém lhe queria mostrar. A casa estava assombrada pelo fantasma do Capitão Gregg que nela se suicidara. Só que os fantasmas não assustam Mrs. Muir. Um fantasma é o medo que a gente tem dele.
Mrs. Muir instala-se na casa com a filha e com a criada. E logo o fantasma começa a visitá-la. "I know you are here", diz ela. As luzes todas se apagam, começam as trovoadas e os relâmpagos.
Mas começa também, poucochíssimo depois, a história de amor entre o fantasma mais malcriado do mundo e a mulher mais mar do mundo. Debalde o fantasma lhe diz: "I"m here because you believe I"m here."
Não vou contar o filme todo. Há sempre uma hora em que se acorda dos sonhos. Os fantasmas não são para toda a vida. Quando o percebe, Rex Harrison, pois é dele que se trata, sempre de negro vestido, vem despedir-se dela que dorme. "What you have missed by being born too late to travel the seven seas with me! And what I"ve been missed too? What we both have missed!" Antes recitara Keats, depois dá-lhe um quase beijo.
Mrs. Muir descobrirá depois que o real é bem mais frágil. Fica na casa, pensando sempre que o que aconteceu nunca aconteceu, que nunca houve fantasma algum. Mas o que houve deu sentido a tudo, por ser feito de tão nada.
Depois o tempo passou. Passa sempre. Depois, um dia, o coração de Mrs. Muir deixou de bater. Quando a criada lhe vem trazer o chá cruza-se com o fantasma e com Mrs. Muir, que avançam devagarinho nas brumas.
Como é que diz Keats que o fantasma recita: "I have been half in love with easeful Death... Was it a vision or a waking dream?"
Porque é que as pessoas se apaixonam por fantasmas? Porque é que os fantasmas se apaixonam por pessoas? Perguntá-lo é perguntar "como pode usar amor de entendimento". Sempre que vejo, no meu cartaz, Rex Harrison mais azul do que negro sumir-se no fundo do colo de Gene Tierney, pergunto-me qual dos dois foi fantasma e como o Andrea Francorum de Stendhal "inter quos possit esse amor". Lembram-se do que ele respondia a quem se embaraçava com a obscuridade de discursos destes? É melhor não se lembrarem.

João Bénard da Costa 12 de Junho 2005 in PÚBLICO

segunda-feira, junho 06, 2005

Pressas e aflições 

1. Conhecem as Varandas de Avô? Assim se chama a um miradouro, que não dista muito da Venda de Galizes da minha solitária adolescência e onde se enxerga uma das mais bonitas vistas sobre o Vale do Alva. Sant"Anna Dionísio, que ainda era professor no Pedro Nunes ao meu tempo de Venda de Galizes, diz, naquele estilo peculiar, que é, para mim, o estilo Guia de Portugal da Biblioteca Nacional de Lisboa, que a "vila (Avô), os montes, as águas, os campos, ficam lá muito fundos, extáticos, graciosos e atraentes na serenidade das coisas que estão longe mas se vêem com perfeição". Não é mal visto nem é mal dito.
Foi com ele que aprendi a bela palavra enfragado, no caso dedicada ao rio, mas que pelo som a mim mesmo apliquei. Enfragado é um local onde há fragas e, se o Alva passa pelas Varandas muito enfragado, eu cheguei a elas e a ele na mesma condição. Arestas e rasgões. Mas ainda naquela fase boa do vinde cá meu tão certo secretário, e ainda muito, muito longe dos oito adjectivos fatais de Camões para o monte da arábica aspereza. Nada de seco, nada de fero, nada de estéril, nada de inútil, nada de despido, nada de calvo, nada de informe, nada de aborrecido. Ainda a sombra escura clara se faz e o campo reverdece. Estão a perceber porque é que eu me senti enfragado? Se não estão, não se preocupem que também não é para perceber. É mais para sentir. Coisa de sons e não de sentidos. Como me disseram nestes dias: "Para que um segredo não vos devore / é preciso dizê-lo em voz alta ao sol / de um terraço ou de um pátio. / Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para o exterior o medo." Enfragado, saboreei o medo com uma descalma leve. Ali, nas Varandas sobre o Alva.

2. Mas o tempo não espera por nós ou nós não esperamos pelo tempo. Um pouco mais acima, a Aldeia das Dez, onde um holandês voador abriu um hotel com o nome de João Brandão (o homem andou por ali) para dar mais vista à vista. Continuando a subir, chega-se ao Santuário da Senhora das Preces, onde, no Domingo do Espírito Santo, se fazia uma romaria célebre.
É um daqueles santuários, como há mil em Portugal, em que, numa série de pequenas ermidas, estão dispostos grupos figurativos dos Passos da Cruz, do Calvário, do Santo Sepulcro, da Ressurreição. Há um realismo tosco nessas figuras, comoventes de ingenuidade pintalgada e de terror mansinho. Entre cedros e carvalhos, o parque não é bem parque como os modelos que o inspiraram, a escadaria nunca se escalou, mas há tanta aflição enfrática, que se percebe muito bem porque é que o povo transformou a Senhora das Preces na Senhora das Pressas, jurando que ela tem mais devotos que outra qualquer. É que uma pressa, por ali, é sempre uma aflição. Por ali? Gostei de saber dessa história da Senhora das Pressas e devagar visitei as onze capelinhas da Serra de Açor que deixa a Estrela a perder de vista.

3. O santuário está a meia encosta do Colcorinho, cume da serra (1242m). Muito mais aflições, sobretudo se houver pressas, esperam quem descer a estrada quase na vertical, no caso de não ter (como eu não tinha) tracção às quatro rodas. Nunca aprendi muito bem a ter os cuidados que recomendo (e gabo) nos outros. A mim, tem-me valido mais a sorte, ou o anjinho da guarda, bem pousado no ombro. E assim cheguei são e salvo cá abaixo.
De Norte para Noroeste. Terra Chã, o outeiro de S. Miguel e, na casa que se diz ter sido do João Brandão que roubava aos ricos para dar aos pobres, umas estátuas de santos, descobertas nos anos 20 por Francisco Franco (o escultor, não o caudilho) e por ele atribuídas a Manuel Pereira, o maior dos nossos escultores de Seiscentos (quiçá de sempre) embora tenha esculpido muito mais por terras de Espanha do que por areias de Portugal, amado por Filipe IV mesmo depois de 1640.
Depois, começam as terras dos xistos mas, do que eu me lembro de ter visto há cinquenta e dois anos, quase não resta traço, como sucedeu ao granito do outro lado do vale. Ou então ficou esse pastiche "mediático", que é o Piódão, com tudo a fazer de conta, espécie de Portugal dos pequeninos ou de décor de estúdio para figurar em filme como era uma aldeia de xisto, num outrora muito próximo e que, por isso mesmo, faz doer mais. Outro género de aflição, para continuar a correr ao som do meu tema de hoje.
Foi aí que me contaram, enquanto comia um chouriço assado e via as vendas para turistas incautos, que há por ali escola sim senhor. Mas escola de um só aluno - o filho do professor. Quem mo contou não mo contou por mal. Mas enquanto apalpava bonecos desengraçados, fiquei a pensar nesse extremo exemplo do Estado-providência e no duplo emprego do progenitor. Não é preciso ir ao Açor, para saber que há de tudo em Portugal, mas às vezes ajuda.
São Gião não fica muito longe e, se os cartazes da estrada são encomiásticos para o interesse público de Piódão (decretado em 1978, quando se começou a salvar e a perder a aldeia), esse novo destino é hoje grandiloquentemente cognominado Catedral das Beiras.
Tudo vem de uma igreja construída em 1795, nos tempos da Senhora D. Maria I. Só que - como por essa altura, noutras paragens de Portugal, D. Rita Preciosa notou ao marido e pai de Simão Botelho no Amor de Perdição de Camilo - os anos não eram os mesmos no Largo da Estrela ou no Vale do Alva. Aí, ainda se vivia ao gosto de D. João V e das suas muitas flores de murta. Quando, na vizinha e rival Penalva d"Alva, se anunciou a construção de uma nova igreja para substituir a que o terramoto danificara, São Gião teve o último assomo de um lendário orgulho. E edificou-se então essa "catedral" (que se o não é, não deixa de ser um dos maiores templos das Beiras) com mais do que espaço para acolher os 1577 habitantes da povoação. A severa fachada é barroquíssima e, no interior, sobretudo do alto do coro, vale bem a pena ver os 102 painéis atribuídos a Pascoal Parente, um italiano então a residir em Coimbra e ali chamado pelo morgado da povoação. Terá sido ele, também, o autor do grande retábulo do martírio de São Julião, esse que deu na toponímia lugar a Santulhão ou São Gião, e vários há por este país dentro ou por este país fora.
À roda da igreja, sobre o vale e sobre o rio, sobejam hoje algumas bonitas casas de granito, eventuais restos de solares de outrora, muitas ruínas e aquelas monstruosidades do costume, com que se deu cabo de quase tudo. Monstruosidades aliás que estão vazias, com os donos a viverem na Reboleira ou em Felgueiras. Conversei com algumas mulheres de negras vestidas. Sessenta são hoje os habitantes permanentes de São Gião, os últimos que produzem batata, azeite, feijão ou milho.
A igreja (aliás, quase sempre fechada, depois de dois assaltos) parece uma Pirâmide abandonada num horto. Mas ultimamente, disseram-me, alguns estrangeiros têm comprado as poucas casas antigas e têm-se fixado na região. Virá daí alguma esperança? Quando me vinha embora e olhei para trás para ver a igreja, a ponte e o casario branco, pareceu-me aquela terra, ali posta em sossego, ali posta em aflição, uma metáfora poderosa deste país inerme, tão perdido nos tempos como os tempos andam perdidos nele.

4. Quem é esse S. Julião, que deu S. Gião e a quem se presta culto nessa igreja oculta, de talha dourada, madeira acerada e onde no tecto Adão e Eva se passeiam no mesmo plano com a Senhora mai-lo Menino?
Dizem-me que deve ser um mártir de Antioquia que morreu em 309 na perseguição de Diocleciano. Aos 18 anos, a rogos ou ordens dos pais, casou com Basilisa, que converteu. Ambos decidiram manter a virgindade. Basilisa foi martirizada primeiro e Julião deu-lhe sepultura. Depois, padeceu ele muitos martírios até ser degolado, como sucede na pintura de Pascoal Parente, ou do diabo por ele.
Diz-se que foram muito venerados, como outros mártires do Antioquia, na Hispânia visigótica e que dela nos ficou o culto do santo, nas terras ao norte do Mondego.
Mas há muitos mais Juliões e santos. Na Legenda Áurea, de que vos falei um dia, aprendi que Julião vem de Jubilus ou de Jubilianus "aquele que procurou as coisas do alto". E há muitos S. Juliões, todos com histórias de espantar, como esse que Piero Della Francesca pintou em Sansepolcro, sob os traços de Eros, recortado contra o jaspe do firmamento.
Um deles parece recapitular com requintes a história de Édipo. Com a história dele termino, para explicar tudo ou para não explicar nada.
Julião, em jovem, caçou um veado que, antes de morrer, lhe anunciou que ele seria o matador do seu pai e sua mãe.
Aterrado com a profecia, Julião partiu para muito longe e casou num reino distante. Seus pais, inconsoláveis com o desaparecimento do filho, procuraram-no por toda a parte. Até que, um dia, chegaram ao castelo do filho, que tinha saído. Estava a mulher que muito bem os recebeu e, ao ouvir a história deles, logo percebeu que eram os sogros. Ofereceu-lhes de repouso o leito conjugal, enquanto ela se foi deitar numa enxerga.
Altas horas chegou Julião. Quando viu dois corpos no seu quarto e na sua cama, concluiu que a mulher o traía. "Desembainhou a espada e sem rumor matou-os." Saiu e deu de caras com a mulher que vinha da missa e lhe contou o sucedido. A profecia do veado realizara-se.
Julião iniciou então uma longa penitência nas margens de um grande rio, recebendo os pobres e sarando os enfermos em albergarias. Já muito velho, uma voz lhe disse que o Senhor aceitara a penitência. Julião "cheio de boas obras" descansou no Senhor.
Pensando bem, S. Gião podia ser o lugar dessa albergaria, e Portugal a casa desse desventurado Édipo, sem esfinge nem incesto.

João Bénard da Costa 5 de Junho 2005 in PÚBLICO

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