sexta-feira, novembro 28, 2003
Os Segredos de Orson Welles
1. Para a tal ilha deserta, onde só se pudesse levar os tais vinte filmes - ou mesmo os tais cinquenta -, eu nunca incluiria, na minha lista, um filme de Orson Welles. Como não levaria nenhum Eisenstein, para escolher cineasta de imensidão comparável. Num caso como no noutro, a minha admiração por esses realizadores geniais (e peso a palavra) não destinge para o meu gosto. Com a cabeça, tiro-lhes o chapéu. Outras partes do meu corpo não pulsam com a mesma irreverência. Quando não os tenho diante dos olhos, esqueço-me deles, embora raça eu fosse se esquecesse, só por um momento, que todos sempre lhes devemos tudo, como do próprio Welles disse o próprio Godard.
Sucede que nesta segunda quinzena de Novembro, como na primeira quinzena de Dezembro, tenho Welles diante dos olhos, por via do ciclo que a Cinemateca está a organizar. E quando a fantástica figura me entra assim pela casa dentro é impossível não ficar obcecado por ela. Como a boneca de Carlos Queiroz, arromba as portas de todos os armários, não cabe em nenhuma gaveta, está em toda a parte, a todos os cantos. Welles, Welles, Welles.
Pela milionésima vez, me interrogo sobre o que nele é "fake" ou sobre o que nele é "fuck", sobre as suas negras magias, o seu "cortejo infernal de alarmes", sobre os seus abismos, acções, desejos e sonhos. "Welles avait son gouffre, avec lui se mouvant"? Foram as suas asas de gigante que o impediram de andar? Baudelaire, tanto quanto Shakespeare, ajuda a percebê-lo?
Continuo sem respostas que completamente me sosseguem ou inteiramente me desassosseguem. Mas este homem, que passou os filmes a falar de segredos (o Rosebud de Kane, o segredo do rei citado em Arkadin), guarda ainda um segredo, que ninguém se aproximou de revelar. Guarda ainda? Guarda cada vez mais. Dezoito anos depois da sua morte, aos 70 anos, sabe-se que é cada vez maior o "outro lado do vento", ou seja, a imensidão de imagens, registos fílmicos, material para obras incompletas, vestígios das suas incontáveis presenças na televisão ou no teatro, semidescobertos ou por descobrir. A arca de Pessoa é uma caixinha de costura comparada com os subterrâneos de Welles.
"The Other Side of the Wind". É o título de um dos muitos filmes incompletos de Welles, filmado entre 1970 e 1976 nos Estados Unidos, em França e em Espanha. O dia de anos de um aclamadíssimo realizador de Hollywood (John Huston fez desse realizador). A corte que o cerca, como os críticos que queriam escrever um livro sobre ele (Peter Bogdanovich e Joseph McBride, os mais persistentes exegetas de Welles, interpretam os críticos em caricatura feroz), as candidatas a vedetas, os amigos e os inimigos. "É um filme dentro de um filme", disse Welles. "Tentativa do velho cineasta para fazer uma espécie de filme de contracultura, num estilo oninizante e surrealizante." Seis anos a filmar é muito ano, embora seja pouco se comparado com os dezoito anos (1955-1973) consagrados ao lendário "D. Quixote". Percebe-se o desespero dos produtores que sucessivamente pagaram, sem resultados finais, as sucessivas versões desses filmes, ou, ainda, de "The Deep", "The Dreamers", etc. Welles defendeu-se perguntando por que é que se admite que Proust tenha levado vinte anos a escrever a "Recherche" (também sem a acabar) e a ele lhe não deixavam tempo idêntico para filmar, refilmar, eliminar, incluir, as horas e horas de material dessas obras, inconcluíveis em filme, ou só concluíveis à custa de muita vigarice, como sucedeu com a versão do Quixote do espanhol Jess Franco, estreada, com pompa e circunstância, sete anos depois da morte de Welles, na Expo 92, de Sevilha. Foi desculpa de mau pagador? Minado por dentro por muitos demónios, foi ele quem já não conseguiu dar sentido aos mil apontamentos contraditórios que foi filmando? Ou, deliberadamente, nunca quis concluir esses filmes, para deixar a lenda sobrepor-se aos factos?
Ninguém me deu resposta que me convencesse, quer entre os seus defensores quer entre os seus detractores. Mas a história que mais se me aproxima da dessas sinfonias, que nem incompletas são, é a do velho conto popular, em que o Vento, personificado num ogre, se refugia a espaços na casa da velha mãe, sem nunca se saber quando vem ou quando parte, se volta para repousar, no limite do fôlego, ou se volta para destruir, quando o vasto mundo já não o pode conter. Welles foi esse vento (esse outro lado do vento) que soprou onde quis e não soprou onde não quis, jogando com a sua própria força, força da natureza em sentido próprio e figurado? Ou um "maverick" vencido, após essa obra imensa que é o "Falstaff" dele (1966) que, segundo McBride, foi o seu testamento, o filme a partir do qual só há obras póstumas?
Oja Kodar, a última das mulheres de Welles e que esteve em Lisboa esta semana, contrariou a imagem varredora do homem que, durante os últimos anos da vida, pôs toda a energia num processo autodestrutivo. E disse que se há imagem de Welles, que corresponde ao personagem, é o último plano de "Falstaff", no filme citado, quando Hal, o amigo a que Falstaff dera todo o amor, sobe ao trono sob o nome de Henrique V.
Lembram-se? Eu ajudo. Subir ao trono não é força de expressão, porque o jovem príncipe, que tanto parecera amar (ou tanto amava) Falstaff, sobe pelo plano acima, depois de rei, e se transforma num esguio boneco, quase sem formas nem contornos, em que a coroa é o único atributo visível, perdidos os olhos, a boca ou o coração, tudo quanto o caracterizava enquanto fora o inseparável amigo de Sir John.
Mas Hal sempre foi uma espécie de Iago, o que era evidente para todos excepto para Falstaff, porque Falstaff, como o próprio Welles disse, "é a mais genial concepção de um homem bom, o melhor homem jamais representado em qualquer drama. Os pecadilhos dele são tão pequenos e tão fabulosas são as piadas que ele tira desses pecadilhos. A bondade dele é como pão, como vinho...".
Por isso, Falstaff nunca percebeu que Hal só é seu amigo enquanto ele lhe é útil para os seus instintos parricidas (primeira parte do "Henry IV") mas, na segunda parte, tem que matar a sua libido, a sua narcisista auto-adoração (o próprio Falstaff). Por isso, Falstaff acredita até ao fim, contra todas as evidências, que o rei continuará a ser Hal e o continuará a amar.
Nem acredita quando ouve Henrique V chamar-lhe "that old, white-bearded Satan". Daí, o seu fabuloso discurso de defesa. Daí o seu último brado: "My King! My Jove! I speak to thee, my heart!" O rei volta-se para ele e, rígido que nem uma estátua, diz as palavras mais terríveis: "I know thee not, old man. Fall to thy prayers. How ill white hairs become a fool and jester!" Só então Falstaff percebe, não percebendo, e nada há de mais pungente do que esse plano silencioso do velho, como se não acreditasse no que lhe está a acontecer. É um plano mais de dor do que de desespero, mais de desabrigo do que de revolta, mais de desconjuntamento do que de ressentimento.
Teria sido assim Orson Welles, sob as máscaras do "wonder boy", da arrogância, do poder ou da vaidade? Como alguém já disse, ele, a quem tanto se censurou ter-se sobreposto ao próprio Shakespeare, foi a mais complexa personagem inventada por Shakespeare, convertendo em si os destinos de Shylock e de Macbeth, de Falstaff e de Otelo, de Ricardo III e do rei Lear.
"I indeed believe in the existence of evil (...). Evil is a force so great that it is beyond me to decide whether it's generated entirely within man or whether it is (...) a contagion."
Como todas as doenças contagiosas, pega-se.
2. Num artigo que julgo inédito ("Some minor keys to Orson Welles"), Peter von Bagh acentuou a dimensão do "fake" sobre aquela que até aqui me levou.
Recorda a lenda que diz que a carreira radiofónica de Welles começou quando ele foi o único a saber imitar o choro de cinco diferentes bebés, ao tempo do nascimento das famosas quíntuplas Dionne. A partir daí, foi convidado regular do famoso programa The March of Time, bizarra combinação de "real" e "falso".
No "Citizen Kane", o jornal de actualidades do início (sobre a morte de Kane) chama-se News on the March e é um "fetiche" ainda mais profundo do que o programa da rádio em que se inspira. "Fake of a Fake", na expressão de Von Bagh, vai ao ponto de juntar na mesma imagem Kane e Hitler, num paroxismo de ficção.
Mas se, desde aí até "F For Fake" (1974) ou até ao abortado projecto (mais um) de "The Magic Show", essa dimensão é capital para outra aproximação ao segredo de Welles, de tudo o que vi agora o que mais me comoveu (a rima mais profunda com a derradeira aparição de Falstaff) é um pequeno filme de três minutos e de um só plano fixo, chamado "The Spirit of Charles Lindbergh".
Foi a última aparição de Welles no ecrã. Poucos meses antes de morrer, já sem brilho nos olhos, Welles "escreve" uma carta a um amigo, também moribundo: Bill Cronshow. E escolhe uma passagem do diário de Lindbergh, na sua célebre travessia do Atlântico. "I want to sit quietly in this cockpit and let the realization of my completed flight sink in." Sem sons nem dor, o único desejo é que Paris esteja mais longe do que está e que a viagem dure mais tempo, mais tempo.
Mas todas as viagens têm que acabar e nunca há o tempo que ao tempo pedimos e que do tempo esperamos. Como Lindbergh, Orson Welles chegou ao fim numa noite muito clara e com gasolina para uma viagem muito maior. Como todos nós, mas quase nenhum de nós o sabe.
João Bénard da Costa 28 de Novembro de 2003 in Público
Sucede que nesta segunda quinzena de Novembro, como na primeira quinzena de Dezembro, tenho Welles diante dos olhos, por via do ciclo que a Cinemateca está a organizar. E quando a fantástica figura me entra assim pela casa dentro é impossível não ficar obcecado por ela. Como a boneca de Carlos Queiroz, arromba as portas de todos os armários, não cabe em nenhuma gaveta, está em toda a parte, a todos os cantos. Welles, Welles, Welles.
Pela milionésima vez, me interrogo sobre o que nele é "fake" ou sobre o que nele é "fuck", sobre as suas negras magias, o seu "cortejo infernal de alarmes", sobre os seus abismos, acções, desejos e sonhos. "Welles avait son gouffre, avec lui se mouvant"? Foram as suas asas de gigante que o impediram de andar? Baudelaire, tanto quanto Shakespeare, ajuda a percebê-lo?
Continuo sem respostas que completamente me sosseguem ou inteiramente me desassosseguem. Mas este homem, que passou os filmes a falar de segredos (o Rosebud de Kane, o segredo do rei citado em Arkadin), guarda ainda um segredo, que ninguém se aproximou de revelar. Guarda ainda? Guarda cada vez mais. Dezoito anos depois da sua morte, aos 70 anos, sabe-se que é cada vez maior o "outro lado do vento", ou seja, a imensidão de imagens, registos fílmicos, material para obras incompletas, vestígios das suas incontáveis presenças na televisão ou no teatro, semidescobertos ou por descobrir. A arca de Pessoa é uma caixinha de costura comparada com os subterrâneos de Welles.
"The Other Side of the Wind". É o título de um dos muitos filmes incompletos de Welles, filmado entre 1970 e 1976 nos Estados Unidos, em França e em Espanha. O dia de anos de um aclamadíssimo realizador de Hollywood (John Huston fez desse realizador). A corte que o cerca, como os críticos que queriam escrever um livro sobre ele (Peter Bogdanovich e Joseph McBride, os mais persistentes exegetas de Welles, interpretam os críticos em caricatura feroz), as candidatas a vedetas, os amigos e os inimigos. "É um filme dentro de um filme", disse Welles. "Tentativa do velho cineasta para fazer uma espécie de filme de contracultura, num estilo oninizante e surrealizante." Seis anos a filmar é muito ano, embora seja pouco se comparado com os dezoito anos (1955-1973) consagrados ao lendário "D. Quixote". Percebe-se o desespero dos produtores que sucessivamente pagaram, sem resultados finais, as sucessivas versões desses filmes, ou, ainda, de "The Deep", "The Dreamers", etc. Welles defendeu-se perguntando por que é que se admite que Proust tenha levado vinte anos a escrever a "Recherche" (também sem a acabar) e a ele lhe não deixavam tempo idêntico para filmar, refilmar, eliminar, incluir, as horas e horas de material dessas obras, inconcluíveis em filme, ou só concluíveis à custa de muita vigarice, como sucedeu com a versão do Quixote do espanhol Jess Franco, estreada, com pompa e circunstância, sete anos depois da morte de Welles, na Expo 92, de Sevilha. Foi desculpa de mau pagador? Minado por dentro por muitos demónios, foi ele quem já não conseguiu dar sentido aos mil apontamentos contraditórios que foi filmando? Ou, deliberadamente, nunca quis concluir esses filmes, para deixar a lenda sobrepor-se aos factos?
Ninguém me deu resposta que me convencesse, quer entre os seus defensores quer entre os seus detractores. Mas a história que mais se me aproxima da dessas sinfonias, que nem incompletas são, é a do velho conto popular, em que o Vento, personificado num ogre, se refugia a espaços na casa da velha mãe, sem nunca se saber quando vem ou quando parte, se volta para repousar, no limite do fôlego, ou se volta para destruir, quando o vasto mundo já não o pode conter. Welles foi esse vento (esse outro lado do vento) que soprou onde quis e não soprou onde não quis, jogando com a sua própria força, força da natureza em sentido próprio e figurado? Ou um "maverick" vencido, após essa obra imensa que é o "Falstaff" dele (1966) que, segundo McBride, foi o seu testamento, o filme a partir do qual só há obras póstumas?
Oja Kodar, a última das mulheres de Welles e que esteve em Lisboa esta semana, contrariou a imagem varredora do homem que, durante os últimos anos da vida, pôs toda a energia num processo autodestrutivo. E disse que se há imagem de Welles, que corresponde ao personagem, é o último plano de "Falstaff", no filme citado, quando Hal, o amigo a que Falstaff dera todo o amor, sobe ao trono sob o nome de Henrique V.
Lembram-se? Eu ajudo. Subir ao trono não é força de expressão, porque o jovem príncipe, que tanto parecera amar (ou tanto amava) Falstaff, sobe pelo plano acima, depois de rei, e se transforma num esguio boneco, quase sem formas nem contornos, em que a coroa é o único atributo visível, perdidos os olhos, a boca ou o coração, tudo quanto o caracterizava enquanto fora o inseparável amigo de Sir John.
Mas Hal sempre foi uma espécie de Iago, o que era evidente para todos excepto para Falstaff, porque Falstaff, como o próprio Welles disse, "é a mais genial concepção de um homem bom, o melhor homem jamais representado em qualquer drama. Os pecadilhos dele são tão pequenos e tão fabulosas são as piadas que ele tira desses pecadilhos. A bondade dele é como pão, como vinho...".
Por isso, Falstaff nunca percebeu que Hal só é seu amigo enquanto ele lhe é útil para os seus instintos parricidas (primeira parte do "Henry IV") mas, na segunda parte, tem que matar a sua libido, a sua narcisista auto-adoração (o próprio Falstaff). Por isso, Falstaff acredita até ao fim, contra todas as evidências, que o rei continuará a ser Hal e o continuará a amar.
Nem acredita quando ouve Henrique V chamar-lhe "that old, white-bearded Satan". Daí, o seu fabuloso discurso de defesa. Daí o seu último brado: "My King! My Jove! I speak to thee, my heart!" O rei volta-se para ele e, rígido que nem uma estátua, diz as palavras mais terríveis: "I know thee not, old man. Fall to thy prayers. How ill white hairs become a fool and jester!" Só então Falstaff percebe, não percebendo, e nada há de mais pungente do que esse plano silencioso do velho, como se não acreditasse no que lhe está a acontecer. É um plano mais de dor do que de desespero, mais de desabrigo do que de revolta, mais de desconjuntamento do que de ressentimento.
Teria sido assim Orson Welles, sob as máscaras do "wonder boy", da arrogância, do poder ou da vaidade? Como alguém já disse, ele, a quem tanto se censurou ter-se sobreposto ao próprio Shakespeare, foi a mais complexa personagem inventada por Shakespeare, convertendo em si os destinos de Shylock e de Macbeth, de Falstaff e de Otelo, de Ricardo III e do rei Lear.
"I indeed believe in the existence of evil (...). Evil is a force so great that it is beyond me to decide whether it's generated entirely within man or whether it is (...) a contagion."
Como todas as doenças contagiosas, pega-se.
2. Num artigo que julgo inédito ("Some minor keys to Orson Welles"), Peter von Bagh acentuou a dimensão do "fake" sobre aquela que até aqui me levou.
Recorda a lenda que diz que a carreira radiofónica de Welles começou quando ele foi o único a saber imitar o choro de cinco diferentes bebés, ao tempo do nascimento das famosas quíntuplas Dionne. A partir daí, foi convidado regular do famoso programa The March of Time, bizarra combinação de "real" e "falso".
No "Citizen Kane", o jornal de actualidades do início (sobre a morte de Kane) chama-se News on the March e é um "fetiche" ainda mais profundo do que o programa da rádio em que se inspira. "Fake of a Fake", na expressão de Von Bagh, vai ao ponto de juntar na mesma imagem Kane e Hitler, num paroxismo de ficção.
Mas se, desde aí até "F For Fake" (1974) ou até ao abortado projecto (mais um) de "The Magic Show", essa dimensão é capital para outra aproximação ao segredo de Welles, de tudo o que vi agora o que mais me comoveu (a rima mais profunda com a derradeira aparição de Falstaff) é um pequeno filme de três minutos e de um só plano fixo, chamado "The Spirit of Charles Lindbergh".
Foi a última aparição de Welles no ecrã. Poucos meses antes de morrer, já sem brilho nos olhos, Welles "escreve" uma carta a um amigo, também moribundo: Bill Cronshow. E escolhe uma passagem do diário de Lindbergh, na sua célebre travessia do Atlântico. "I want to sit quietly in this cockpit and let the realization of my completed flight sink in." Sem sons nem dor, o único desejo é que Paris esteja mais longe do que está e que a viagem dure mais tempo, mais tempo.
Mas todas as viagens têm que acabar e nunca há o tempo que ao tempo pedimos e que do tempo esperamos. Como Lindbergh, Orson Welles chegou ao fim numa noite muito clara e com gasolina para uma viagem muito maior. Como todos nós, mas quase nenhum de nós o sabe.
João Bénard da Costa 28 de Novembro de 2003 in Público
sexta-feira, novembro 21, 2003
Leal Souvenir
1. Por que é que se volta repetidamente a certos lugares que, de viso próprio, nunca escolheríamos? Por que é que se malogram sucessivamente visitas a outros certos lugares, tanto e há tanto tempo desejadas? São duas perguntas sem resposta ou com a mesma resposta que não obtemos quando nos perguntamos o que nos leva a encontrar sucessivamente quem não buscámos nem buscamos ou a desencontrar, com a mesma irregularidade, aquela ou aquele que procurávamos e procuramos. Os acasos têm as costas largas e eu sou daqueles que nunca acreditou na dimensão delas. O que tem que ser tem muita força e raramente se acha força que a contrarie.
Lembrei-me disso, em Rimini. Como julgo que já expliquei aqui uma vez (com a idade, a gente repete-se) Rimini nunca foi cidade que eu buscasse. Ora (cf. PÚBLICO, 8 de Novembro de 2002, "Fellini de Rimini") por duas vezes em dois anos seguidos me achei nessa cidade, por obra e graça do mesmo Fellini, cuja obra nunca foi da minha graça. Basta o Templo Malatestiano para obrigar alguém como eu a visitar essa cidade? Basta. O elefante e a rosa. Alberti e Piero. O galgo branco e o galgo negro. A imaculada conceição do Renascimento, necessitas, commoditas, voluptas. Mas não eram coisas minhas, antes de as ver, e eu raramente vejo o que antes não era já meu. Só agora sei que um dia seria. E só agora sei que quando "voei" de Alberti para Bramante e do Templo de Sigismondo para as cúpulas de Santa Maria delle Grazie (é mesmo Grazie, caríssimo Manoel de Oliveira) fiz o "raccord" mais perfeito que se pode fazer entre os cumes do renascimento arquitectónico italiano.
Mas não é do Tempietto que hoje vou falar, pois que até a repetição tem limites. Desta vez, embora tenha ganho muito do meu tempo entre o galgo negro de Piero e os rabinhos redondos dos mil "putti" de Isotta degli Atti, os meus passos levaram-me para o museuzinho da cidade, onde eu sabia que podia ver um Bellini que antes muito vira (uma Pietá com anjo cor de rosa). E eis que, de súbito, nessa sala, se me atravessa uma estátua de Santa Catarina (a de Alexandria, não a de Sena) datada de 1410 e atribuída ao "Mestre da Anunciação Dreicer" que não sei quem foi mas me soube a Dreyer.
É uma estátua de pedra branca com vestígios de policromia. Não é muito alta (1 metro e 30) mas, como a colocaram em cima de um plínio de 40 cm, a cabeça dela ficou quase à altura da minha. Veste um longo manto de pregas que a cobre inteiramente do pescoço aos pés (nenhuma carne visível) e usa uma cabeleira de anjo muito encaracolada. Mas o que me hipnotizou foi o sorriso, um sorriso inenarrável, sossegadíssimamente meigo e sossegadíssimamente desafiante. Tão desafiante era que, aproveitando o facto de estar sozinho na sala, me aproximei para lá de todos os critérios aconselhados pela mais benevolente segurança. Os olhos da estátua são daqueles que olham frontalmente quem frontalmente os olha a eles. Um dos olhos é cego ou ficou cego de tanto ver. O outro, pelo contrário, olha todo, olha tudo. Assim, quase "cheek-to-cheek", fiquei colado a ela. Ninguém nos interrompeu. Numa vasta sala, solitária e gelada, o meu vulto e o vulto dela, ficaram de corpo-aberto, benzedeiros e videntes, como se diz dos corpos onde entrou um espírito, que dentro dele fala. Como Quinto Fábio Pictor quando foi a Delfos consultar o oráculo e inquirir dos meios mais adequados para alcançar favores divinos.
Hawthorne, que como ninguém sabia destas coisas (ele me deu ou dará o título "Proféticas Imagens") falou de experiência semelhante em "The Marble Faun". Sinais de alma que, no mundo, só algumas mulheres têm. E algumas estátuas e alguns quadros. Como a minha - a de Bronzino - Lucrezia Panciatichi, que há seis décadas me vela e me desvela, "Amour Dure-Dure Amour", Madonna do Futuro, Madonna do Passado, como, antes de mim, para Henry James já fora. Como Milly Theale reencontrada.
2. A fotografia, desde os tempos imemoriais em que eu brincava com retratos avoengos de Mniz Martinez, com moradas na Rua de Serpa Pinto nº 66 e no Largo da Abegoria 4 ou da Helios Photos, com moradas na Avenida da Liberdade 158 ou na Rua de S. José 209 A; a pintura, desde os tempos mais memorizáveis em que abri as Janelas Verdes; tinham-me dado visões semelhantes. A pedra ou o mármore, jamais. A tal ponto que essa estátua dreyeriana (não é gralha) se me sobrepôs à "morbidezza e diligenza" (Vasari o disse, que raramente se enganou) dos vários Malatesta que estão aos pés de S. Vincenzo Ferreri, na pala com o nome do Santo, que é a obra máxima exposta no museu. Ghirlandajo a pintou em 1493, quase cem anos depois de esculpida a Catarina, e, muito mais impressivos do que os Santos adorados (além do "protagonista", os inseparáveis São Sebastião e São Roque) são os adoradores: Pandolfo IV Malatesta, que foi o último senhor de Rimini (tão fraco guerreiro como bom negociante, pois que por duas vezes vendeu a cidade que não conseguiu defender) a mãe, Elisabetta Aldobrandini, a mulher, Violante Bentivoglio e o irmão Carlo. Todos eles, luxuosíssimante vestidos e com a raça imaginável pelo apelidos, não sendo retratos autónomos (figurantes ajoelhados da cena supostamente sacra), em pouco espaço, se volvem para a expressão ideal a que só a "alta immaginazione" pode aceder. Ninguém olha ninguém. Ou seja, não se olham uns aos outros nem olham os santos. Mas é da perna, fugazmente nua, do pestífero São Roque, que desce a carne que os torna tão palpáveis e frementes. Pensei na implausibilidade (para não dizer impossibilidade) de um nariz como o de Pandolfo, a começar quase no meio da testa e a seguir rectilíneo quase até à boca, um nariz quase tão soberbo como o do Medicis de Botticelli ou o do Montefeltro de Piero. Na noite desse mesmo dia, jantei com uma italiana que tinha um nariz quase igual. Em Itália nunca se sabe se é a natureza que copia a arte ou se é a arte que copia a natureza. Provavelmente, nem uma nem outra coisa. Os retratos são a mais imaginosa das nossas memórias, ou as mais perduráveis imaginações nossas.
3. Não estou a dizer nada que não tenha sido dito e redito. Só que nos esquecemos de o lembrar.
"Nothing, in the whole circle of human vanities, takes stronger hold of the imagination than this affair of having a portrait painted. Yet why should it be so? The looking glass, the polished globes of the andirons, the mirror-like water, and all others reflecting surfaces, continually present us with portraits, or rather ghosts of ourselves, which we glance at, and straightway forget them. But we forget them only because they vanish. It is the idea of duration - of earthy immortality - that gives such a mysterious interest to our own portraits" ("Dentre todas as mundanais vaidades, nada tem mais forte poder sobre a imaginação do que esta coisa de possuir um retrato pintado. Porquê? Porque é que isso acontece? Os espelhos, as vítreas placas das salamandras, a água e todas as superfícies reflectoras continuamente nos oferecem retratos, ou, melhor dito, espectros de nós próprios que olhamos de relance e imediatamente esquecemos. Mas só os esquecemos porque desaparecem. É a ideia da permanência - da imortalidade terrena - que confere tão misterioso interesse aos nossos próprios retratos"). Perdi tempo e espaço a citar o texto de Hawthorne (outra vez Hawthorne) no original inglês e na aproximativa tradução portuguesa? Não, não perdi. Ganhei-o.
Porque a repetição - como a permanência - estimula a memória e com ela a imaginação. Aprende-se isso no cinema ou com o cinema. Um dos primeiros teóricos dele - Giambattista della Porta - escreveu em 1602 (quase trezentos anos antes dos comboios de Lumière) que "a memória mais não é do que uma pintura inteira, guardada nessa mesa animada a que chamamos cérebro". Ars riminiscendi. Não julgo preciso explicar-vos quem nos ensinou que tudo o que fazemos não é mais do que lembrarmo-nos.
E lembro-me do nariz de Pandolfo, do "azul profundo, quase nocturno" de Bellini, da cor maléfica "do sumo de papoula" da Lucrezia de Bronzino, do galgo negro nascido das costas do galgo branco de Piero. E lembro-me mais e mais do sorriso evanescente e do olhar húmido da Santa Catarina, única imagem que aqui vos deixo, sabendo que não a vereis como eu a vi, "tremendo com todo o corpo" como Plutarco disse que Cassandro tremeu ao ver a imagem de Alexandre, tempo depois de Alexandre morto.
Uma última imagem? No retrato de Van Eyck, dito de Timoteos, que hoje está na National Gallery em Londres, lê-se a inscrição "Leal Souvenir". Penso que tudo quanto disse sobre a imagem, a memória e a imaginação, pode caber nessa expressão. E penso - parecendo que não - que tudo quanto vos confiei foram recordações leais. Não mais, não menos.
João Bénard da Costa 21 de Novembro de 2003 in Público
Lembrei-me disso, em Rimini. Como julgo que já expliquei aqui uma vez (com a idade, a gente repete-se) Rimini nunca foi cidade que eu buscasse. Ora (cf. PÚBLICO, 8 de Novembro de 2002, "Fellini de Rimini") por duas vezes em dois anos seguidos me achei nessa cidade, por obra e graça do mesmo Fellini, cuja obra nunca foi da minha graça. Basta o Templo Malatestiano para obrigar alguém como eu a visitar essa cidade? Basta. O elefante e a rosa. Alberti e Piero. O galgo branco e o galgo negro. A imaculada conceição do Renascimento, necessitas, commoditas, voluptas. Mas não eram coisas minhas, antes de as ver, e eu raramente vejo o que antes não era já meu. Só agora sei que um dia seria. E só agora sei que quando "voei" de Alberti para Bramante e do Templo de Sigismondo para as cúpulas de Santa Maria delle Grazie (é mesmo Grazie, caríssimo Manoel de Oliveira) fiz o "raccord" mais perfeito que se pode fazer entre os cumes do renascimento arquitectónico italiano.
Mas não é do Tempietto que hoje vou falar, pois que até a repetição tem limites. Desta vez, embora tenha ganho muito do meu tempo entre o galgo negro de Piero e os rabinhos redondos dos mil "putti" de Isotta degli Atti, os meus passos levaram-me para o museuzinho da cidade, onde eu sabia que podia ver um Bellini que antes muito vira (uma Pietá com anjo cor de rosa). E eis que, de súbito, nessa sala, se me atravessa uma estátua de Santa Catarina (a de Alexandria, não a de Sena) datada de 1410 e atribuída ao "Mestre da Anunciação Dreicer" que não sei quem foi mas me soube a Dreyer.
É uma estátua de pedra branca com vestígios de policromia. Não é muito alta (1 metro e 30) mas, como a colocaram em cima de um plínio de 40 cm, a cabeça dela ficou quase à altura da minha. Veste um longo manto de pregas que a cobre inteiramente do pescoço aos pés (nenhuma carne visível) e usa uma cabeleira de anjo muito encaracolada. Mas o que me hipnotizou foi o sorriso, um sorriso inenarrável, sossegadíssimamente meigo e sossegadíssimamente desafiante. Tão desafiante era que, aproveitando o facto de estar sozinho na sala, me aproximei para lá de todos os critérios aconselhados pela mais benevolente segurança. Os olhos da estátua são daqueles que olham frontalmente quem frontalmente os olha a eles. Um dos olhos é cego ou ficou cego de tanto ver. O outro, pelo contrário, olha todo, olha tudo. Assim, quase "cheek-to-cheek", fiquei colado a ela. Ninguém nos interrompeu. Numa vasta sala, solitária e gelada, o meu vulto e o vulto dela, ficaram de corpo-aberto, benzedeiros e videntes, como se diz dos corpos onde entrou um espírito, que dentro dele fala. Como Quinto Fábio Pictor quando foi a Delfos consultar o oráculo e inquirir dos meios mais adequados para alcançar favores divinos.
Hawthorne, que como ninguém sabia destas coisas (ele me deu ou dará o título "Proféticas Imagens") falou de experiência semelhante em "The Marble Faun". Sinais de alma que, no mundo, só algumas mulheres têm. E algumas estátuas e alguns quadros. Como a minha - a de Bronzino - Lucrezia Panciatichi, que há seis décadas me vela e me desvela, "Amour Dure-Dure Amour", Madonna do Futuro, Madonna do Passado, como, antes de mim, para Henry James já fora. Como Milly Theale reencontrada.
2. A fotografia, desde os tempos imemoriais em que eu brincava com retratos avoengos de Mniz Martinez, com moradas na Rua de Serpa Pinto nº 66 e no Largo da Abegoria 4 ou da Helios Photos, com moradas na Avenida da Liberdade 158 ou na Rua de S. José 209 A; a pintura, desde os tempos mais memorizáveis em que abri as Janelas Verdes; tinham-me dado visões semelhantes. A pedra ou o mármore, jamais. A tal ponto que essa estátua dreyeriana (não é gralha) se me sobrepôs à "morbidezza e diligenza" (Vasari o disse, que raramente se enganou) dos vários Malatesta que estão aos pés de S. Vincenzo Ferreri, na pala com o nome do Santo, que é a obra máxima exposta no museu. Ghirlandajo a pintou em 1493, quase cem anos depois de esculpida a Catarina, e, muito mais impressivos do que os Santos adorados (além do "protagonista", os inseparáveis São Sebastião e São Roque) são os adoradores: Pandolfo IV Malatesta, que foi o último senhor de Rimini (tão fraco guerreiro como bom negociante, pois que por duas vezes vendeu a cidade que não conseguiu defender) a mãe, Elisabetta Aldobrandini, a mulher, Violante Bentivoglio e o irmão Carlo. Todos eles, luxuosíssimante vestidos e com a raça imaginável pelo apelidos, não sendo retratos autónomos (figurantes ajoelhados da cena supostamente sacra), em pouco espaço, se volvem para a expressão ideal a que só a "alta immaginazione" pode aceder. Ninguém olha ninguém. Ou seja, não se olham uns aos outros nem olham os santos. Mas é da perna, fugazmente nua, do pestífero São Roque, que desce a carne que os torna tão palpáveis e frementes. Pensei na implausibilidade (para não dizer impossibilidade) de um nariz como o de Pandolfo, a começar quase no meio da testa e a seguir rectilíneo quase até à boca, um nariz quase tão soberbo como o do Medicis de Botticelli ou o do Montefeltro de Piero. Na noite desse mesmo dia, jantei com uma italiana que tinha um nariz quase igual. Em Itália nunca se sabe se é a natureza que copia a arte ou se é a arte que copia a natureza. Provavelmente, nem uma nem outra coisa. Os retratos são a mais imaginosa das nossas memórias, ou as mais perduráveis imaginações nossas.
3. Não estou a dizer nada que não tenha sido dito e redito. Só que nos esquecemos de o lembrar.
"Nothing, in the whole circle of human vanities, takes stronger hold of the imagination than this affair of having a portrait painted. Yet why should it be so? The looking glass, the polished globes of the andirons, the mirror-like water, and all others reflecting surfaces, continually present us with portraits, or rather ghosts of ourselves, which we glance at, and straightway forget them. But we forget them only because they vanish. It is the idea of duration - of earthy immortality - that gives such a mysterious interest to our own portraits" ("Dentre todas as mundanais vaidades, nada tem mais forte poder sobre a imaginação do que esta coisa de possuir um retrato pintado. Porquê? Porque é que isso acontece? Os espelhos, as vítreas placas das salamandras, a água e todas as superfícies reflectoras continuamente nos oferecem retratos, ou, melhor dito, espectros de nós próprios que olhamos de relance e imediatamente esquecemos. Mas só os esquecemos porque desaparecem. É a ideia da permanência - da imortalidade terrena - que confere tão misterioso interesse aos nossos próprios retratos"). Perdi tempo e espaço a citar o texto de Hawthorne (outra vez Hawthorne) no original inglês e na aproximativa tradução portuguesa? Não, não perdi. Ganhei-o.
Porque a repetição - como a permanência - estimula a memória e com ela a imaginação. Aprende-se isso no cinema ou com o cinema. Um dos primeiros teóricos dele - Giambattista della Porta - escreveu em 1602 (quase trezentos anos antes dos comboios de Lumière) que "a memória mais não é do que uma pintura inteira, guardada nessa mesa animada a que chamamos cérebro". Ars riminiscendi. Não julgo preciso explicar-vos quem nos ensinou que tudo o que fazemos não é mais do que lembrarmo-nos.
E lembro-me do nariz de Pandolfo, do "azul profundo, quase nocturno" de Bellini, da cor maléfica "do sumo de papoula" da Lucrezia de Bronzino, do galgo negro nascido das costas do galgo branco de Piero. E lembro-me mais e mais do sorriso evanescente e do olhar húmido da Santa Catarina, única imagem que aqui vos deixo, sabendo que não a vereis como eu a vi, "tremendo com todo o corpo" como Plutarco disse que Cassandro tremeu ao ver a imagem de Alexandre, tempo depois de Alexandre morto.
Uma última imagem? No retrato de Van Eyck, dito de Timoteos, que hoje está na National Gallery em Londres, lê-se a inscrição "Leal Souvenir". Penso que tudo quanto disse sobre a imagem, a memória e a imaginação, pode caber nessa expressão. E penso - parecendo que não - que tudo quanto vos confiei foram recordações leais. Não mais, não menos.
João Bénard da Costa 21 de Novembro de 2003 in Público
sexta-feira, novembro 14, 2003
A Última Ceia
1 - No mundo latino, não há sacra imagem mais reproduzida e mais divulgada. Nessa divisão, normalmente situada ao fundo de longos e desabridos corredores, a que no século XIX e em grande parte do século XX, se chamou casa de jantar, a burguesia e a pequena-burguesia, mesmo quando maçónicas ou jacobinas, entronizaram, quase sempre, gravuras, litografias ou, nas casas de pior gosto, horrendos baixos-relevos esmaltados ou pintados, reproduzindo o cenáculo davinciano pendurado sobre o aparador com torcidinhos. Nenhuma dessas reproduções reproduzia a pintura de Leonardo, como ela estava ou como ela era à época da sua mais intensa popularidade. Bem cedo depois de ter sido pintada (1495-1497), "L'Ultima Cena" já começara a obscurecer-se. Em 1568, Vasari escreveu que "a obra de Leonardo está em tão más condições que pouco mais se vê do que uma mancha fosca". Mas a fama de Leonardo era tamanha, tamanha era a reputação da "tavola" pintada no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, que, na primeira metade do século XVI, já se multiplicavam as cópias a óleo de discípulos do Mestre, como Solari ou Luini. A mais famosa dessas cópias data de 1625, quando o cardeal Federico Borromeo a encomendou a um tal Vespino, para que a "reliquiae fugiente" da "Ceia" ficasse para a posteridade.
Assim, o que essa posteridade, entre a qual me incluo, conservou e emoldurou, não foi a pálida imagem de Leonardo, mas a pálida imagem de maquilhadíssimas cópias. Quem foi ou quem ia a Santa Maria delle Grazie, mesmo após os sucessivos restauros de 1851, 1870, 1901 ou 1924, recuava cheio de espanto. Não via um quadro, como, baseado nas reproduções, tinha suposto ir ver; não via um fresco porque Leonardo nunca pintou um fresco nem usou a técnica dele; via, na parede oposta à Crucificação de Montorfano, uma pintura descomunalmente horizontal (já houve quem lhe chamasse a única pintura do mundo em cinemascope) onde a custo se descortinavam os rostos de Cristo e dos doze Apóstolos e onde o celebérrimo "sfumato" vinciano se esfumava na sombra e no silêncio.
Como as estátuas gregas do século V, que hoje só conhecemos pelas cópias romanas, a memória da "Ceia" vinciana foi transmitida, ao longo de quatro séculos, por imagens claras de uma imagem obscura. É verdade que, de Milão, em 1788, Goethe escreveu ao Duque Carlos Augusto, de Weimar, que ela era "uma obra-chave no campo da concepção artística. Absolutamente única e nada lhe pode ser comparado". Falaria do que viu? Ou foi Goethe o primeiro a perceber que a prodigiosa singularidade da "Ceia" reside no próprio sentido de efémero que lhe presidiu? É que Leonardo só não pintou "a fresco" porque não quis. Se pintasse "a fresco", não tinha podido corrigir, nem mudar. "Leonardo é o primeiro artista insatisfeito, atormentado não tanto por uma obcecante necessidade de perfeição mas pelo objectivo fundamental que perseguiu. Não concebeu a "história" como uma acção definida, mas como uma situação psicológica complexa, tecida de actos e reacções mutuamente intrincados, inseparáveis uns dos outros e só passível de valorização face ao resultado global" (...) "O desenho, a pintura são uma busca contínua; não se pode saber de antemão onde conduzirá e que facto revelará de que se não pode prescindir." Estou a citar Argan, o historiador. Podia citar Leonardo, que o disse em menos palavras, aqui deixadas em italiano: "Il bono pittore ha da dipingere due cose principali, cioè l'homo e il concetto della mente sua; il primo è facile, il secondo difficile, perché s'ha a figurare con gesti i movimenti delle membra."
Eventualmente, Leonardo terá querido que da sua obra (a "Ceia" é a obra de Leonardo mais dedicada ao instante) ficasse a sombra. Sombra do imenso movimento dos 12 homens que se sentaram com Cristo à mesa naquela tarde; sombra da imensa imobilidade de Cristo naquela tarde e naquele momento (não consigo dizer-vos se a pintura é terrivelmente dinâmica ou terrivelmente estática); sombra que se projectou, como se luz fosse de um projector cinematográfico indesligado e indesligável, na pálida luz das cópias, as únicas que fixaram o que em Leonardo, para sempre, ficou em aberto, movente e comovente.
2 - Vai árido este texto? É bem possível, mas não sei de outra via. Como sempre me acontece, amenizo subjectivando.
É que até eu, e até ao dia 11 de Novembro de 2003, nunca vira "La Cena" senão em reproduções. Em 1967, da primeira vez que fui a Milão, o Cenáculo fechou-se-me tanto por má fortuna como por amor ardente. Quando voltei, nos anos 80, já se encerrara para o último restauro, esse que durou de 1977 a 1999. Quando, agora, surgiu inopinadamente e sem qualquer premeditação a possibilidade de uma estada de 24 horas em Milão, soube que era chegado o momento. O dia 10 (uma segunda-feira) era o dia de encerramento? Era. Para o dia 11 já não aceitavam mais reservas (o Cenáculo, como tantos outros lugares altíssimos de Itália só se visita hoje por "prenotazione", bela palavra para tão feia acção)? Não aceitavam. Eu tinha que estar no Aeroporto de Malpensa às 11 horas da manhã? Tinha. Mas os modernos dragões (burocracias, turistas japoneses, horários) são como os antigos. Saltamos-lhes às goelas. Comigo próprio assinei o pacto de me levantar às 6 e meia da manhã (não conheço outros Leonardos nem outras Leonardas que a tanto me obrigassem). Às 8 em ponto estava junto à porta amarela do Cenáculo e às 8h15, após mendigar junto de três guias, surgiu aquela (louvada seja!) que tinha um bilhete a mais. Às 8 e 30, a porta de vidro automática do refeitório das Graças abriu-se para mim e para mais 49 terrestres pedestres. Fora avisado da regra, como nos mitos e lendas antigos. Só dispunha de 15 minutos, 15 exactos minutos. Ao fim deles, seria implacavelmente varrido. Nem olhei para a "Crucificação" da parede sul. Os 35 metros de largura da parede norte esperavam por mim. 68 anos esperaram. A primeira coisa que pensei, como Henrique III diante do cadáver do Duque de Guise, foi: "Mon Dieu! Comme il est grand!" Depois, eu, que demoro tanto tempo a ver, puxei dos olhos com quanta força tenho. Vi o triângulo equilátero da figura de Cristo, a forma indestrutível. Vi o perfil efeminadíssimo de Filipe, o mais alto de todos. Vi Tiago Menor, o único da família de Jesus, seguindo alguns até seu irmão, visivelmente inspirado no mesmo modelo que serviu para a imagem de Cristo, dos doze o mais bonito, com os cabelos louros tão bem penteados. Vi o suavíssimo João, o único tão imóvel quanto Cristo, o único que não gesticula. Mas vi sobretudo o Senhor, sentado de costas para a maior das três janelas, com o espaço todo à direita e à esquerda, sem ser tocado por ninguém e sem tocar em ninguém, abertamente sozinho.
3 - Em tempos, impressionou-me muito um agudíssimo paralelo feito por George Steiner ("Two Meals") entre "O Banquete" de Platão e a "Última Ceia".
Steiner - como Leonardo - parou o tempo na passagem do Evangelho de São João em que Cristo diz: "Amen dico vobis quia unus vestrum me traditurus est" ("Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de trair"). S. João, sempre segundo o mesmo Evangelho, estava reclinado no peito de Jesus, como discípulo amado que era. Pedro faz-lhe sinal para que ele interrogasse Jesus e soubesse quem era o traidor. João assim fez e Jesus respondeu: "É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado." E, molhado o bocado de pão, tomou-o e deu-o a Judas.
Steiner escreveu: "Num plano naturalista, o que aconteceu só é inteligível se o que Jesus disse ao discípulo que amava não foi ouvido por mais ninguém. A não ser assim, porque é que Judas aceitaria o 'pão que eu vou molhar', o sinal que trairia o seu anátema?"
Mas Leonardo não viu a cena como quase todos os pintores e comentadores a viram, nem sentou Pedro longe de João, o que "naturalisticamente" explicaria o pedido, que Pedro, de onde estava, não teria podido fazer. Pela primeira vez, na história de uma representação da Última Ceia, João não está reclinado no colo do Senhor, mas muito afastado dele, inclina-se para a direita, ouvindo S. Pedro, que se levantou do seu lugar. Este, João e Judas formam um outro triângulo, em que Pedro passa para trás de Judas, para falar ao ouvido de João. Judas, virado para os dois (único que volta as costas ao espectador), não pode deixar de ouvir o segredo. A não ser que o momento representado seja posterior a ele, hipótese que ao 7º minuto me comecei a pôr. Ou seja, João fez a pergunta a Cristo. Este já respondeu e é essa resposta que João, deixando o colo do Senhor para se aproximar de Pedro, transmite ao futuro papa, sem curar de Judas, que, incauto, já foi identificado e já não pode fugir. Mas nem todos o sabem àquela mesa e por isso tanto se dividem os grupos: os apóstolos, à esquerda do Senhor (mais longe de João, Judas e Pedro) em imensa agitação, protestam inocência; os da direita estão gelados pela descoberta. Por isso, a mão direita do Senhor retira-se da de Judas a quem deu o pão e a mão esquerda fica aberta sobre a mesa, no último sinal de oblação.
Por isso, também, o olhar de Cristo é o único olhar que não vemos e não nos olha. Só a boca e os braços abertos exprimem a solidão suprema, nimbada ao fundo pela luz crepuscular, a mesma luz da transcendência, essa que, no mesmo ano, Bramante filtrou na cúpula de Santa Maria delle Grazie. Nunca tanta sombra deu tanta luz.
Um segundo de tempo num infinito de espaço. Foi, também, o que me foi dado. E mais não peço e mais não quero.
João Bénard da Costa 14 de Novembro de 2003 in Público
Assim, o que essa posteridade, entre a qual me incluo, conservou e emoldurou, não foi a pálida imagem de Leonardo, mas a pálida imagem de maquilhadíssimas cópias. Quem foi ou quem ia a Santa Maria delle Grazie, mesmo após os sucessivos restauros de 1851, 1870, 1901 ou 1924, recuava cheio de espanto. Não via um quadro, como, baseado nas reproduções, tinha suposto ir ver; não via um fresco porque Leonardo nunca pintou um fresco nem usou a técnica dele; via, na parede oposta à Crucificação de Montorfano, uma pintura descomunalmente horizontal (já houve quem lhe chamasse a única pintura do mundo em cinemascope) onde a custo se descortinavam os rostos de Cristo e dos doze Apóstolos e onde o celebérrimo "sfumato" vinciano se esfumava na sombra e no silêncio.
Como as estátuas gregas do século V, que hoje só conhecemos pelas cópias romanas, a memória da "Ceia" vinciana foi transmitida, ao longo de quatro séculos, por imagens claras de uma imagem obscura. É verdade que, de Milão, em 1788, Goethe escreveu ao Duque Carlos Augusto, de Weimar, que ela era "uma obra-chave no campo da concepção artística. Absolutamente única e nada lhe pode ser comparado". Falaria do que viu? Ou foi Goethe o primeiro a perceber que a prodigiosa singularidade da "Ceia" reside no próprio sentido de efémero que lhe presidiu? É que Leonardo só não pintou "a fresco" porque não quis. Se pintasse "a fresco", não tinha podido corrigir, nem mudar. "Leonardo é o primeiro artista insatisfeito, atormentado não tanto por uma obcecante necessidade de perfeição mas pelo objectivo fundamental que perseguiu. Não concebeu a "história" como uma acção definida, mas como uma situação psicológica complexa, tecida de actos e reacções mutuamente intrincados, inseparáveis uns dos outros e só passível de valorização face ao resultado global" (...) "O desenho, a pintura são uma busca contínua; não se pode saber de antemão onde conduzirá e que facto revelará de que se não pode prescindir." Estou a citar Argan, o historiador. Podia citar Leonardo, que o disse em menos palavras, aqui deixadas em italiano: "Il bono pittore ha da dipingere due cose principali, cioè l'homo e il concetto della mente sua; il primo è facile, il secondo difficile, perché s'ha a figurare con gesti i movimenti delle membra."
Eventualmente, Leonardo terá querido que da sua obra (a "Ceia" é a obra de Leonardo mais dedicada ao instante) ficasse a sombra. Sombra do imenso movimento dos 12 homens que se sentaram com Cristo à mesa naquela tarde; sombra da imensa imobilidade de Cristo naquela tarde e naquele momento (não consigo dizer-vos se a pintura é terrivelmente dinâmica ou terrivelmente estática); sombra que se projectou, como se luz fosse de um projector cinematográfico indesligado e indesligável, na pálida luz das cópias, as únicas que fixaram o que em Leonardo, para sempre, ficou em aberto, movente e comovente.
2 - Vai árido este texto? É bem possível, mas não sei de outra via. Como sempre me acontece, amenizo subjectivando.
É que até eu, e até ao dia 11 de Novembro de 2003, nunca vira "La Cena" senão em reproduções. Em 1967, da primeira vez que fui a Milão, o Cenáculo fechou-se-me tanto por má fortuna como por amor ardente. Quando voltei, nos anos 80, já se encerrara para o último restauro, esse que durou de 1977 a 1999. Quando, agora, surgiu inopinadamente e sem qualquer premeditação a possibilidade de uma estada de 24 horas em Milão, soube que era chegado o momento. O dia 10 (uma segunda-feira) era o dia de encerramento? Era. Para o dia 11 já não aceitavam mais reservas (o Cenáculo, como tantos outros lugares altíssimos de Itália só se visita hoje por "prenotazione", bela palavra para tão feia acção)? Não aceitavam. Eu tinha que estar no Aeroporto de Malpensa às 11 horas da manhã? Tinha. Mas os modernos dragões (burocracias, turistas japoneses, horários) são como os antigos. Saltamos-lhes às goelas. Comigo próprio assinei o pacto de me levantar às 6 e meia da manhã (não conheço outros Leonardos nem outras Leonardas que a tanto me obrigassem). Às 8 em ponto estava junto à porta amarela do Cenáculo e às 8h15, após mendigar junto de três guias, surgiu aquela (louvada seja!) que tinha um bilhete a mais. Às 8 e 30, a porta de vidro automática do refeitório das Graças abriu-se para mim e para mais 49 terrestres pedestres. Fora avisado da regra, como nos mitos e lendas antigos. Só dispunha de 15 minutos, 15 exactos minutos. Ao fim deles, seria implacavelmente varrido. Nem olhei para a "Crucificação" da parede sul. Os 35 metros de largura da parede norte esperavam por mim. 68 anos esperaram. A primeira coisa que pensei, como Henrique III diante do cadáver do Duque de Guise, foi: "Mon Dieu! Comme il est grand!" Depois, eu, que demoro tanto tempo a ver, puxei dos olhos com quanta força tenho. Vi o triângulo equilátero da figura de Cristo, a forma indestrutível. Vi o perfil efeminadíssimo de Filipe, o mais alto de todos. Vi Tiago Menor, o único da família de Jesus, seguindo alguns até seu irmão, visivelmente inspirado no mesmo modelo que serviu para a imagem de Cristo, dos doze o mais bonito, com os cabelos louros tão bem penteados. Vi o suavíssimo João, o único tão imóvel quanto Cristo, o único que não gesticula. Mas vi sobretudo o Senhor, sentado de costas para a maior das três janelas, com o espaço todo à direita e à esquerda, sem ser tocado por ninguém e sem tocar em ninguém, abertamente sozinho.
3 - Em tempos, impressionou-me muito um agudíssimo paralelo feito por George Steiner ("Two Meals") entre "O Banquete" de Platão e a "Última Ceia".
Steiner - como Leonardo - parou o tempo na passagem do Evangelho de São João em que Cristo diz: "Amen dico vobis quia unus vestrum me traditurus est" ("Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de trair"). S. João, sempre segundo o mesmo Evangelho, estava reclinado no peito de Jesus, como discípulo amado que era. Pedro faz-lhe sinal para que ele interrogasse Jesus e soubesse quem era o traidor. João assim fez e Jesus respondeu: "É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado." E, molhado o bocado de pão, tomou-o e deu-o a Judas.
Steiner escreveu: "Num plano naturalista, o que aconteceu só é inteligível se o que Jesus disse ao discípulo que amava não foi ouvido por mais ninguém. A não ser assim, porque é que Judas aceitaria o 'pão que eu vou molhar', o sinal que trairia o seu anátema?"
Mas Leonardo não viu a cena como quase todos os pintores e comentadores a viram, nem sentou Pedro longe de João, o que "naturalisticamente" explicaria o pedido, que Pedro, de onde estava, não teria podido fazer. Pela primeira vez, na história de uma representação da Última Ceia, João não está reclinado no colo do Senhor, mas muito afastado dele, inclina-se para a direita, ouvindo S. Pedro, que se levantou do seu lugar. Este, João e Judas formam um outro triângulo, em que Pedro passa para trás de Judas, para falar ao ouvido de João. Judas, virado para os dois (único que volta as costas ao espectador), não pode deixar de ouvir o segredo. A não ser que o momento representado seja posterior a ele, hipótese que ao 7º minuto me comecei a pôr. Ou seja, João fez a pergunta a Cristo. Este já respondeu e é essa resposta que João, deixando o colo do Senhor para se aproximar de Pedro, transmite ao futuro papa, sem curar de Judas, que, incauto, já foi identificado e já não pode fugir. Mas nem todos o sabem àquela mesa e por isso tanto se dividem os grupos: os apóstolos, à esquerda do Senhor (mais longe de João, Judas e Pedro) em imensa agitação, protestam inocência; os da direita estão gelados pela descoberta. Por isso, a mão direita do Senhor retira-se da de Judas a quem deu o pão e a mão esquerda fica aberta sobre a mesa, no último sinal de oblação.
Por isso, também, o olhar de Cristo é o único olhar que não vemos e não nos olha. Só a boca e os braços abertos exprimem a solidão suprema, nimbada ao fundo pela luz crepuscular, a mesma luz da transcendência, essa que, no mesmo ano, Bramante filtrou na cúpula de Santa Maria delle Grazie. Nunca tanta sombra deu tanta luz.
Um segundo de tempo num infinito de espaço. Foi, também, o que me foi dado. E mais não peço e mais não quero.
João Bénard da Costa 14 de Novembro de 2003 in Público
sábado, novembro 08, 2003
Sophia: no Dia dos Teus Anos
Hoje, para mim, que escrevo nas primeiras horas de 6 de Novembro; ontem, para os que me estiverem a ler no dia em que este jornal sair; hoje ou ontem, hoje como ontem, Sophia de Mello Breyner faz anos.
Nunca tratei Sophia por tu. Ela também nunca me tratou por tu. Sempre nos tratámos por aquela terceira pessoa do singular, a que só a língua portuguesa se dá assim e que é a forma mais bonita de vocativo que conheço. "Sophia, o que é que a Sophia pensa de ..."; "João, o que é que o João acha de...". Mas não me deu jeito nenhum escrever "no dia dos seus anos" (seus de quem?) ou "no dia dos anos de Sophia", ou "no dia dos anos da Sophia". Os poetas, às vezes, exigem o tu, o tu que, por exemplo, Jorge de Sena usou quando se lhe dirigiu perguntando-lhe: "Versos e filhos como os dás ao mundo? / Como quem se parte? Como quem se reparte? / Ou como quem a ti não volte mais?" (cito de cor). E Jorge de Sena também não tratava Sophia por tu.
2 - Durante toda esta semana pensei muito em Sophia. A Maria convidou-me para ir com ela, com os irmãos e com alguns amigos de Sophia a Madrid, onde outra Sofia (da Grécia como ela, da Grécia diferentemente dela) lhe ia dar, na pessoa do Miguel, um dos maiores prémios que ela já recebeu, o Prémio Reina Sofia. Disse logo que sim. Mas, à última hora, uma angina áfona tirou-me a voz e a presença. Fiquei a ver "o filme" em vale de lençóis. Doeu-me ter faltado. Pensei se Tiepolo teria presidido à cerimónia. "Vénus a encomendar a Vulcano que forjasse as armas para Eneias" ou "Neptuno no seu carro com as Nereides e outras divindades do Olimpo e também as figuras alegóricas dos Vice-reinados americanos da Coroa Espanhola". As nuvens tão castanhas, os cavalos tão alados, tantos anjos a voar. A teatralidade barroca e a pompa espanhola (duas coisas que Sophia sempre detestou e eu sempre amei), inclinando a majestade para aquela que, como Antígona, "não aprendeu a ceder aos desastres" e para quem a obra de arte sempre "fez parte do real, e é destino, realização, salvação e vida". Terá sido "real" essa cerimónia? Mas a coroa espanhola curvou-se perante um poeta português. Sophia.
3 - Nunca me hei-de esquecer da primeira vez que vi Sophia.
Eu tinha 12 anos, ela casara poucos meses antes com Francisco Sousa Tavares. Nesses tempos, uma prima dela, grande amiga da minha Mãe, costumava passar os verões connosco na Arrábida. A Sophia e o Francisco foram visitá-la e visitar-nos. Jantaram em nossa casa. Nesses tempos, se bem me lembro, eu costumava sair logo a seguir ao jantar, para ir ter com amigos da minha idade. Mas, nessa noite, sei lá porquê, não fui. Fiquei na varanda com os crescidos.
Era uma noite de lua cheia. A Sophia, tenho a certeza disso, estava vestida de branco. Calças brancas, camisola branca. A certa altura começou a recitar. Seriam versos da "Poesia", publicado em 1944, ainda ela era solteira, ou do "Dia do Mar", publicado nesse mesmo ano de 1947, não sei se antes se depois dessa noite da Arrábida. Pela primeira vez, na minha vida, eu ouvia dizer versos assim, escandidas as sílabas, como só ela o sabe fazer, "numa nobreza de dicção que, como raras poesias do seu tempo, é irmã da majestade subtil de Pascoaes e das grandes odes de Álvaro de Campos, cuja linhagem continua" (Jorge de Sena). Foi nessa noite que ouvi, pela primeira vez, alguém falar das "aves repentinas". O poema existia, não o inventei e a referência está no poema "Paisagem" da "Poesia". "Passavam pelo ar aves repentinas, / O cheiro da terra era fundo e amargo, / E ao longe as cavalgadas do mar largo, / Sacudiam na areia as suas crinas." Sophia - como era bela Sophia aos vinte anos! - parecia-me uma aparição, tão repentina como essas aves que ela convocava. Na minha memória, toda a noite, todo o luar e toda a beleza se imobilizaram nesse momento e nessas palavras.
4 - Depois, passaram muitos anos.
Uma vez, fui ouvi-la ao Tivoli comentar a versão de Duvivier da "Anna Karenina", com Vivien Leigh. Ouvi-a recitar, em francês, o poema de Tolstoi "A Isnaia Poliana", que está gravado no túmulo do escritor. "Des myosotis au printemps". Lembro-me de a ouvir dizer que em Tolstoi havia perdão para toda a gente. "Só um homem não pede justiça e não pede verdade. Só um homem não foi perdoado." Napoleão. Para ela, sempre foi o primeiro dos abutres e mais tarde soube que sempre se recusou a entrar nos Invalides.
Mas foi só nos anos 60, depois dessa presença sonhada na Arrábida e vista, como vira Vivien Leigh, do fundo de um cinema para a tela dele, que eu comecei a ser "muito lá de casa" (essa casa da Travessa das Mónicas, onde sempre entrei com uma estranha emoção) e Sophia começou a ser "muito cá de casa", dos tantos jantares, das tantas noites de Sintra.
Entretanto, eu lera o "Coral" (1950), ainda hoje o meu livro secretamente favorito dela, "No Tempo Dividido" (1954) e "Mar Novo" (1958). Entretanto eu ouvira os discos dela, sobretudo aquele pequenino de 45 rotações, que tanto me tenho esforçado (sem conseguir nada) para que seja reeditado. Quantos dias, a ouvir "E agora ó Deuses que vos direi de mim? Tardes inertes morrem no jardim / Esqueci-me de vós e sem memória / Caminho nos caminhos onde o tempo / Como um monstro a si próprio se devora". A ouvir o "Marinheiro, sem Mar" ("Porque ele se perdeu do que era eterno / E separou o seu corpo da unidade / E se entregou ao tempo dividido / Das ruas sem piedade"). A ouvir a "Meditação do duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal" ("Nunca mais servirei senhor que possa morrer"). Entretanto, começara a publicar-se "O Tempo e o Modo" (1963).
E foi "O Tempo e o Modo" que fez o milagre. O António Alçada Baptista era amigo da Sophia e do Francisco e, um dia, levou-nos lá, ao Alberto Vaz da Silva e a mim, que há dez anos andávamos a escrever-nos cartas sobre Sophia e a recitar-lhe os poemas de cor e salteado.
Ela achou graça àqueles "miúdos" em êxtase, que lhe pediam incessantemente que "dissesse", ou seja nos desse, na voz dela, a poesia dela. Os filhos de Sophia (crianças ou adolescentes) queriam saber qual de nós era o tempo, qual de nós era o modo.
À Sophia e ao Francisco juntava-nos outra espécie de poética. O pranto por esses negros anos 60, pela "noite / densa de chacais / Pesada de amargura. Este é o tempo em que os homens renunciam". Os quatro, entre tantos outros, fomos réus num processo que o "velho abutre" nos moveu. As palavras a que ela, um dia, chamou "deslumbradas", são as que eu mais associo ao nosso combate político, às discussões na grande sala do Centro Nacional de Cultura, então dirigido por ela e pelo Francisco, ou pelos dois, aos abaixo-assinados que tão poucos se levantaram para assinar. "Pedra rio vento casa / Pranto dia canto alento / Espaço raiz e água / Ó minha pátria e meu centro / Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo."
Pranto ainda porque:
"Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Quem nem podem sequer ser bem descritas".
Juntos atravessámos o "Tempo de solidão e de incerteza. Tempo de medo e tempo de traição. Tempo de injustiça e de vileza. Tempo de negação".
Estou a citar, com abundância, o "Livro Sexto" (1962), o livro que lhe deu o primeiro prémio (Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores). E eu estive nesse almoço (1964) em que ela disse que "a poesia é uma moral" e falou da "maçã enorme e vermelha", "a coisa mais antiga de que me lembro".
O "Livro Sexto" como "Os Contos Exemplares" (1962) são os livros da nudez mais frontal e da insegurança mais forte. Muitos anos mais tarde, uma amiga dela, com posições contrárias, contou-me como se zangou quando leu o último livro. E disse-lhe que não percebia como ela atacava assim pessoas e um meio que "tu conheces por dentro". Resposta de Sophia: "Esqueces-te que essas pessoas não têm dentro. Só têm fora."
5 - "Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina / O pinhal a coluna a veemência divina / O templo o teatro o rolar de uma pinha / O ar cheirava a mel e a pedra a resina" Estou já nas "Ilhas", livro de 1989.
A uma das Ilhas - a Sicília, a grande Grécia - ainda fomos cinco (Sophia, o Alberto e a Helena Vaz da Silva, a Ana Maria e eu) na viagem mais inesquecível da minha vida, em 1990. A viagem seguinte, tantas vezes adiada, era a Grécia, a Grécia de Sophia. Sophia, doente, desistiu quase nas vésperas da partida, em 1999. Traçou-nos o itinerário, mas já não nos mostrou a safira no fundo do mar de Samos. Mas foram as palavras e os versos de Sophia que nos guiaram por Santorini ou por Delos, como foi o branco vinho dela que bebemos num restaurante diante da "pesada palidez sagrada do Parténon". "Clareza das ilhas que tanto busquei".
Um dia, em Epidauro, Sophia quis ouvir a própria voz "desligada de mim". Eu não consegui desligar dela a voz que ouvi esta semana toda, a voz que ouço no dia dos teus anos. Abriguei-me na memória. Mas o poema da Sophia, que se chama "Memória" ("Ilhas") diz: "Tão nobre espírito / em tão estreita regra / Tão vasta liberdade em tão estreita / Regra."
Eu não escapei à Regra. Nem na semana de Sophia.
João Bénard da Costa 7 de Novembro de 2003 in Público
Nunca tratei Sophia por tu. Ela também nunca me tratou por tu. Sempre nos tratámos por aquela terceira pessoa do singular, a que só a língua portuguesa se dá assim e que é a forma mais bonita de vocativo que conheço. "Sophia, o que é que a Sophia pensa de ..."; "João, o que é que o João acha de...". Mas não me deu jeito nenhum escrever "no dia dos seus anos" (seus de quem?) ou "no dia dos anos de Sophia", ou "no dia dos anos da Sophia". Os poetas, às vezes, exigem o tu, o tu que, por exemplo, Jorge de Sena usou quando se lhe dirigiu perguntando-lhe: "Versos e filhos como os dás ao mundo? / Como quem se parte? Como quem se reparte? / Ou como quem a ti não volte mais?" (cito de cor). E Jorge de Sena também não tratava Sophia por tu.
2 - Durante toda esta semana pensei muito em Sophia. A Maria convidou-me para ir com ela, com os irmãos e com alguns amigos de Sophia a Madrid, onde outra Sofia (da Grécia como ela, da Grécia diferentemente dela) lhe ia dar, na pessoa do Miguel, um dos maiores prémios que ela já recebeu, o Prémio Reina Sofia. Disse logo que sim. Mas, à última hora, uma angina áfona tirou-me a voz e a presença. Fiquei a ver "o filme" em vale de lençóis. Doeu-me ter faltado. Pensei se Tiepolo teria presidido à cerimónia. "Vénus a encomendar a Vulcano que forjasse as armas para Eneias" ou "Neptuno no seu carro com as Nereides e outras divindades do Olimpo e também as figuras alegóricas dos Vice-reinados americanos da Coroa Espanhola". As nuvens tão castanhas, os cavalos tão alados, tantos anjos a voar. A teatralidade barroca e a pompa espanhola (duas coisas que Sophia sempre detestou e eu sempre amei), inclinando a majestade para aquela que, como Antígona, "não aprendeu a ceder aos desastres" e para quem a obra de arte sempre "fez parte do real, e é destino, realização, salvação e vida". Terá sido "real" essa cerimónia? Mas a coroa espanhola curvou-se perante um poeta português. Sophia.
3 - Nunca me hei-de esquecer da primeira vez que vi Sophia.
Eu tinha 12 anos, ela casara poucos meses antes com Francisco Sousa Tavares. Nesses tempos, uma prima dela, grande amiga da minha Mãe, costumava passar os verões connosco na Arrábida. A Sophia e o Francisco foram visitá-la e visitar-nos. Jantaram em nossa casa. Nesses tempos, se bem me lembro, eu costumava sair logo a seguir ao jantar, para ir ter com amigos da minha idade. Mas, nessa noite, sei lá porquê, não fui. Fiquei na varanda com os crescidos.
Era uma noite de lua cheia. A Sophia, tenho a certeza disso, estava vestida de branco. Calças brancas, camisola branca. A certa altura começou a recitar. Seriam versos da "Poesia", publicado em 1944, ainda ela era solteira, ou do "Dia do Mar", publicado nesse mesmo ano de 1947, não sei se antes se depois dessa noite da Arrábida. Pela primeira vez, na minha vida, eu ouvia dizer versos assim, escandidas as sílabas, como só ela o sabe fazer, "numa nobreza de dicção que, como raras poesias do seu tempo, é irmã da majestade subtil de Pascoaes e das grandes odes de Álvaro de Campos, cuja linhagem continua" (Jorge de Sena). Foi nessa noite que ouvi, pela primeira vez, alguém falar das "aves repentinas". O poema existia, não o inventei e a referência está no poema "Paisagem" da "Poesia". "Passavam pelo ar aves repentinas, / O cheiro da terra era fundo e amargo, / E ao longe as cavalgadas do mar largo, / Sacudiam na areia as suas crinas." Sophia - como era bela Sophia aos vinte anos! - parecia-me uma aparição, tão repentina como essas aves que ela convocava. Na minha memória, toda a noite, todo o luar e toda a beleza se imobilizaram nesse momento e nessas palavras.
4 - Depois, passaram muitos anos.
Uma vez, fui ouvi-la ao Tivoli comentar a versão de Duvivier da "Anna Karenina", com Vivien Leigh. Ouvi-a recitar, em francês, o poema de Tolstoi "A Isnaia Poliana", que está gravado no túmulo do escritor. "Des myosotis au printemps". Lembro-me de a ouvir dizer que em Tolstoi havia perdão para toda a gente. "Só um homem não pede justiça e não pede verdade. Só um homem não foi perdoado." Napoleão. Para ela, sempre foi o primeiro dos abutres e mais tarde soube que sempre se recusou a entrar nos Invalides.
Mas foi só nos anos 60, depois dessa presença sonhada na Arrábida e vista, como vira Vivien Leigh, do fundo de um cinema para a tela dele, que eu comecei a ser "muito lá de casa" (essa casa da Travessa das Mónicas, onde sempre entrei com uma estranha emoção) e Sophia começou a ser "muito cá de casa", dos tantos jantares, das tantas noites de Sintra.
Entretanto, eu lera o "Coral" (1950), ainda hoje o meu livro secretamente favorito dela, "No Tempo Dividido" (1954) e "Mar Novo" (1958). Entretanto eu ouvira os discos dela, sobretudo aquele pequenino de 45 rotações, que tanto me tenho esforçado (sem conseguir nada) para que seja reeditado. Quantos dias, a ouvir "E agora ó Deuses que vos direi de mim? Tardes inertes morrem no jardim / Esqueci-me de vós e sem memória / Caminho nos caminhos onde o tempo / Como um monstro a si próprio se devora". A ouvir o "Marinheiro, sem Mar" ("Porque ele se perdeu do que era eterno / E separou o seu corpo da unidade / E se entregou ao tempo dividido / Das ruas sem piedade"). A ouvir a "Meditação do duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal" ("Nunca mais servirei senhor que possa morrer"). Entretanto, começara a publicar-se "O Tempo e o Modo" (1963).
E foi "O Tempo e o Modo" que fez o milagre. O António Alçada Baptista era amigo da Sophia e do Francisco e, um dia, levou-nos lá, ao Alberto Vaz da Silva e a mim, que há dez anos andávamos a escrever-nos cartas sobre Sophia e a recitar-lhe os poemas de cor e salteado.
Ela achou graça àqueles "miúdos" em êxtase, que lhe pediam incessantemente que "dissesse", ou seja nos desse, na voz dela, a poesia dela. Os filhos de Sophia (crianças ou adolescentes) queriam saber qual de nós era o tempo, qual de nós era o modo.
À Sophia e ao Francisco juntava-nos outra espécie de poética. O pranto por esses negros anos 60, pela "noite / densa de chacais / Pesada de amargura. Este é o tempo em que os homens renunciam". Os quatro, entre tantos outros, fomos réus num processo que o "velho abutre" nos moveu. As palavras a que ela, um dia, chamou "deslumbradas", são as que eu mais associo ao nosso combate político, às discussões na grande sala do Centro Nacional de Cultura, então dirigido por ela e pelo Francisco, ou pelos dois, aos abaixo-assinados que tão poucos se levantaram para assinar. "Pedra rio vento casa / Pranto dia canto alento / Espaço raiz e água / Ó minha pátria e meu centro / Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo."
Pranto ainda porque:
"Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Quem nem podem sequer ser bem descritas".
Juntos atravessámos o "Tempo de solidão e de incerteza. Tempo de medo e tempo de traição. Tempo de injustiça e de vileza. Tempo de negação".
Estou a citar, com abundância, o "Livro Sexto" (1962), o livro que lhe deu o primeiro prémio (Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores). E eu estive nesse almoço (1964) em que ela disse que "a poesia é uma moral" e falou da "maçã enorme e vermelha", "a coisa mais antiga de que me lembro".
O "Livro Sexto" como "Os Contos Exemplares" (1962) são os livros da nudez mais frontal e da insegurança mais forte. Muitos anos mais tarde, uma amiga dela, com posições contrárias, contou-me como se zangou quando leu o último livro. E disse-lhe que não percebia como ela atacava assim pessoas e um meio que "tu conheces por dentro". Resposta de Sophia: "Esqueces-te que essas pessoas não têm dentro. Só têm fora."
5 - "Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina / O pinhal a coluna a veemência divina / O templo o teatro o rolar de uma pinha / O ar cheirava a mel e a pedra a resina" Estou já nas "Ilhas", livro de 1989.
A uma das Ilhas - a Sicília, a grande Grécia - ainda fomos cinco (Sophia, o Alberto e a Helena Vaz da Silva, a Ana Maria e eu) na viagem mais inesquecível da minha vida, em 1990. A viagem seguinte, tantas vezes adiada, era a Grécia, a Grécia de Sophia. Sophia, doente, desistiu quase nas vésperas da partida, em 1999. Traçou-nos o itinerário, mas já não nos mostrou a safira no fundo do mar de Samos. Mas foram as palavras e os versos de Sophia que nos guiaram por Santorini ou por Delos, como foi o branco vinho dela que bebemos num restaurante diante da "pesada palidez sagrada do Parténon". "Clareza das ilhas que tanto busquei".
Um dia, em Epidauro, Sophia quis ouvir a própria voz "desligada de mim". Eu não consegui desligar dela a voz que ouvi esta semana toda, a voz que ouço no dia dos teus anos. Abriguei-me na memória. Mas o poema da Sophia, que se chama "Memória" ("Ilhas") diz: "Tão nobre espírito / em tão estreita regra / Tão vasta liberdade em tão estreita / Regra."
Eu não escapei à Regra. Nem na semana de Sophia.
João Bénard da Costa 7 de Novembro de 2003 in Público